Com uma espécie de estética circense de protesto, a apresentação do ex-baixista do Pink Floyd passou pelo estádio do Morumbi neste domingo, 1
Todas as hipérboles positivas que se pode pensar para um espetáculo artístico cabem na descrição do que é The Wall Live. Claro que a simples informação de que há um muro montado com 424 tijolos em cima do palco já faz com que se espere mais do que um simples show da apresentação do ex-baixista do Pink Floyd. Mas a quantidade de estímulos visuais, ideias e simbologias que couberam em duas horas de performance em São Paulo neste domingo, 1, (divididas em duas partes mais ou menos iguais, com um intervalo de 20 minutos entre elas) fizeram o estádio do Morumbi lotado se curvar diante da genialidade do músico e de toda a cenografia desenvolvida para a turnê.
Não era necessário ser fã de longa data do Pink Floyd ou um profundíssimo conhecedor do icônico disco The Wall (1979) para apreciar a peça. Sim, porque o show lembrou mais um teatro. O setlist, claro, não se altera, não há qualquer surpresa: o disco é sempre tocado na íntegra e o roteiro foi seguido à risca, como se fosse uma daquelas óperas visualmente deslumbrante.
A ópera-rock foi composta majoritariamente a partir da vida de Waters, as letras tratam de temas pesados – abandono, medo, isolamento – e que foram captados magistralmente, transformados em imagens e exibidos por meio de uma combinação de projeções e cenografia, sendo que estas sempre interagiam de forma a envolver o Morumbi lotado nos dramas de Pink, o garoto que encara todos essas sensações arrebatadoras no álbum. À época do lançamento do disco, umas poucas dezenas de shows foram realizados – uma turnê caríssima que nunca viu a cor de um lucro. O espetáculo com o qual Waters viaja o mundo foi atualizado. Carrega em si aquelas emoções em seu modo mais primitivo para buscá-las dentro de um público de 2012, que continua tocado e vivendo em um mundo em que os temas originais persistem de forma bastante semelhante. As guerras a que ele faz referência são outras, mas a sensação despertada ao se assistir, por exemplo, a vídeos de crianças reencontrando seus pais recém-retornados da guerra continuam tão arrepiantes quanto poderiam ser na Segunda Guerra (fonte de inspiração original de Waters e conflito no qual morreu o pai do músico, que é devidamente homenageado também).
A sensação que o artista deixou ao final de duas horas de devaneios visuais coloridos, bandeiras, bonecos gigantes, animações e imagens tão fortes e carregadas de significados é que ele deu conta de algo que muitos tentam e poucos conseguem: dar vida e expressar visualmente de forma compreensível a todos seus mais profundos pensamentos, ideologias e teorias. O ponto alto, claro, era o muro, o tão comentado muro que serve de telão (um deles, já que há mais de um e em cada um são projetadas imagens diferentes). O muro que é atingido por um avião logo no começo, erguido e destruído parcialmente durante a performance impecavelmente.
Os temas de protesto abordados por Waters foram adaptados para os brasileiros. A homenagem a Jean Charles de Menezes, o brasileiro morto pela polícia em um metrô de Londres em 2005, teve destaque maior. Assim como em Porto Alegre e no Rio de Janeiro, o discurso de Waters (em um dos poucos momentos de fala dele, entre "Another Brick in the Wall Part 2" e “Mothers”), quase inteiramente dito em português, dedicou o show à família dele e de todos que foram vítimas de terrorismo de estado. O já famoso porco que sobrevoa o público durante “In the Flesh” – e que invariavelmente acaba destruído pelo público em um curto catártico - trazia dizeres como “- Copa + educação” e “O Brasil é laico”.
Apesar de fortemente teatral e poético em suas analogias, com muitas críticas à religião, comunismo, totalitarismo e políticas internacionais, o espetáculo, claro, é uma grande performance musical também, com Waters e banda, servidos de um som impressionantemente claro e limpo, entregando uma apresentação impactante. Sem dúvida, as faixas mais conhecidas do público deixaram certos momentos do show ainda mais espetaculosos. As três partes de “Another Brick in the Wall”, "Hey You" e “Comfortably Numb” se destacaram – mesmo com o coro das crianças de Heliópolis apenas dublando o áudio original. Esse som cristalino também reforçou a grandiosidade quando, por exemplo, durante “The Happiest Days of Our Lives”, os sons de helicópteros fizeram com que muita gente ficasse esquadrinhando o céu atrás da fonte do barulho. Não era questão de não saber que aquilo fazia parte da sonoplastia de The Wall, mas soava tão real que por reflexo o público ficou procurando pelas hélices em vão.
A megalomania que o Pink Floyd sempre teve em seus discos está mais do que bem representada nesta turnê. A experiência, que custou R$ 900 pra quem exigiu ver dos melhores lugares, é de marcar para o resto da vida. A deliciosa psicodelia usada para retratar o que tem de mais feio nas relações humanas deu vida ao disco e suas letras da forma mais grandiloquente que a imaginação humana poderia conseguir transformar em realidade palpável.
Roger Waters volta a cantar todas as faixas de The Wall na próxima terça, 3, também no Morumbi, em São Paulo.
Clique aqui para ler a resenha do show de Porto Alegre e aqui para saber como foi a apresentação no Rio de Janeiro.