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Menos namoro, mais ousadia

Baseado no primeiro livro da trilogia de Suzanne Collins, o surpreendente Jogos Vorazes apresenta temas como sociedade do espetáculo e totalitarismo em embalagem pop

Stella Rodrigues Publicado em 23/03/2012, às 01h18 - Atualizado às 14h06

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Jennifer Lawrence
Jennifer Lawrence

Vender uma saga teen estreante como o novo Crepúsculo é uma via de duas mãos. Apesar de irresistível, já que é uma descrição que certamente atrairá a atenção dos adolescentes já conquistados pela saga dos vampiros, pode despertar uma reação igualmente forte de preconceito em quem despreza a trama muitas vezes moralista e água com açúcar desenvolvida por Stephenie Meyer. Ou, em geral, em quem se cansou das abundantes opções para o público juvenil que acabam chovendo no molhado. Jogos Vorazes, baseado no primeiro livro da trilogia da norte-americana Suzanne Collins e que estreia mundialmente nesta sexta, 23, é a grande aposta de novo blockbuster. E, mesmo sendo essencialmente para o público jovem fã de aventuras épicas, trazendo com isso todas as limitações que essa condição acarreta, poderá agradar até aqueles que tremem só de ouvir falar em bruxos, vampiros, fadas, etc.

A história não é exatamente nova em folha. Com toques, entre outras coisas, de 1984, O Senhor das Moscas e o que parece ser uma inspiração baseada no conto A Loteria, de Shirley Jackson, traz elementos já conhecidos do público, mas adaptados para o gosto dos jovens atuais. Aos 16 anos, Katniss (a ótima Jennifer Lawrence, de X-Men: Primeira Classe) deve cuidar dela mesma (assim como Harry Potter, outra comparação fácil), já que perdeu o pai e não pode contar com quem deveria ser responsável por ela, a mãe. O melhor amigo de Katniss, Gale (Liam Hemsworth, que estará em Os Mercenários 2), cumpre um papel parecido na família dele. A relação deles não é romântica, a princípio, e lembra, claro, a de Bella e Jacob, em Crepúsculo. A realidade dos dois é um mundo distópico em que a antiga América do Norte, agora chamada Panem, foi dividida em 13 distritos controlados por um governo tirânico. Durante uma rebelião, algum tempo antes, o tal governo venceu o povo. Consequentemente, a população ficou ainda mais miserável e o 13º Distrito acabou dizimado. Katniss e Gale moram no 12º, o mais pobre de todos os Distritos, já que é o mais afastado da cruel e despótica Capital, habitada por uma elite comandante intocável e com um senso de moda peculiar. A protagonista aprendeu a caçar com o pai, que morreu em uma explosão ocorrida na mina onde trabalhava. Desde então, cabe a ela cuidar da mãe, que demorou a se recuperar da perda do marido, e da irmã mais nova. A garota tem todos os traços tradicionais de uma heroína, carregando tudo de nobre e, algumas vezes, piegas que isso acarreta. É uma representação tão inspirada nas antigas que a habilidade especial dela está na pontaria que demonstra ao empunhar um arco.

O que torna a trama interessante é a forma como esse governo age para manter a população na linha e ciente de sua inferioridade e incapacidade de se voltar contra os abusos. São os Jogos Vorazes, uma espécie de reality mandatório cujo prêmio é a manter a própria vida e em que a mudança nas regras acontece ao sabor do desejo dos patrocinadores e da direção do programa, sedenta por audiência. Cada distrito dá como “tributo” dois de seus jovens entre 12 e 18 anos, que devem se digladiar em um ambiente hostil, absolutamente controlado pelo diretor, até restar apenas um deles vivo. Tudo isso é transmitido em telões para que seja consumido pela população de Panem como entretenimento. Katniss acaba como o tributo de seu distrito e vai para lá acompanhada de Peeta (Josh Hutcherson, de Minhas Mães e Meu Pai), um garoto com quem ela teve apenas um encontro mais significativo. Para sua surpresa, antes da entrada dos dois na competição, ele se revela em rede nacional apaixonado por ela. Fica estabelecido um triângulo, mas também a dúvida: seria o interesse de um pelo outro real? Porque qualquer participante de reality show menos esperto sabe que, embora eles não estejam lá para fazer amigos, não custa nada arrumar um romance para conquistar a opinião pública.

Jogos Vorazes está despertando a mesma resposta intensa no público que outras obras do (milionário) segmento “young adult”, termo criado para afastar a ojeriza causada ao se categorizar algo como “adolescente” ou “chick lit” (algo como “livro de mulherzinha”). A adoração é mostrada por adolescentes tomando a internet para debater quem é mais legal, a Bella, a Hermione ou a Katniss, e usar camisetas estampando um “team Vorazes”.

Se for para comparar – já que os próprios comerciais de TV que promovem o filme o fizeram – Jogos Vorazes tem metáforas superiores e personagens mais profundos que Crepúsculo. É mais adulto e com performances mais maduras – destaque para os coadjuvantes Stanley Tucci e Elizabeth Banks (já a participação do cantor Lenny Kravitz é sofrível). Para a alegria dos devoradores dos 13 milhões de exemplares do livro que já foram vendidos só nos Estados Unidos, a versão cinematográfica é bastante fiel, embora a classificação indicativa tenha deixado a violência bem mais sutil – algo que faz sentido, pois não teria cabimento deixar de fora dos cinemas o público alvo da obra. Outra grande diferença é que o filme, ao contrário do livro, não é narrado pela protagonista, o que permite mostrar os bastidores do reality e dos jogos de poder na Capital. Contudo, há de se dizer que, enquanto a produção foi contida visualmente para evitar uma sensação de violência glamourizada, Tarantinesca, exagerou em alguns aspectos de direção de arte com os figurinos, cabelos e maquiagens, que chegam a distrair nessa transcrição da estética futurista.

No mais, são retratados alegoricamente temas pesquisados por pensadores e teóricos políticos consagrados, como sociedade do espetáculo, política do pão e circo e totalitarismo, mas com uma trama de apelo jovem e embalagem pop. Ao mesmo tempo, a obra dá conta de fazer isso sem ser de forma condescendente ou que simplifique tudo demais dentro de uma metáfora qualquer que enfraqueça esses conceitos. O que a autora colocou no papel e o diretor Gary Ross (Seabiscuit – Alma de Herói e roteirista de Quero Ser Grande) conseguiu levar para a tela é um alívio ao mundo teen de heroínas que só sabem sofrer de amor e serem vítimas. O universo de Jogos Vorazes pega o pior (no sentido de mais cruel) da Roma Antiga, da nossa sociedade, da mitologia, do capitalismo e do patriotismo e coloca isso tudo em uma fórmula batida, mas campeã de bilheteria: a que diz que o amor, a devoção à família e a lealdade são as armas mais poderosas de uma guerra, por mais injusta que ela seja.