HISTÓRIA

As obras que fizeram Raul Seixas ser torturado pela ditadura

Ícone do rock brasileiro ficou três dias sob tortura dos militares e depois acabou exilado em Nova York, de onde retornou após um ano

Guilherme Gonçalves (@guiiilherme_agb) com pauta de Igor Miranda

Raul Seixas em 1972
Raul Seixas em 1972 - Foto: Domínio público / via Wikimedia

Por diversas vezes, Raul Seixas e seu parceiro de composição, Paulo Coelho, conseguiram driblar a censura. Alguns de seus primeiros sucessos, como “Ouro de Tolo” e “Mosca na Sopa”, são exemplos bem-sucedidos de letras ácidas e críticas que passaram incólumes pela ditadura militar.

No entanto, o próprio nome de seu álbum de estreia em carreira solo, Krig-ha, bandolo! (1973) — “Cuidado, aí vem o inimigo!” —, já ligou o primeiro sinal de alerta. O título foi questionado pelos militares no Departamento de Ordem Política e Social (Dops), no início de 1974.

Para piorar, o disco vinha com um gibi encartado que citava uma tal Sociedade Alternativa. Esse seria o nome da música mais perseguida de Seixas, lançada no trabalho seguinte, Gita (1974).

Com ela, Raulizto entrou de vez na mira da ditadura militar. Em entrevista de 1988 ao jornalista André Barbosa, da rádio FM Record (via Aventuras na História), o cantor e compositor baiano relembrou os tempos de terror vivido no Brasil comandado pelos militares.

Raul Seixas em 1975
Raul Seixas em 1975 – Foto: João Castrioto

 

Inicialmente, ele falou de como estava vivendo na época e quais eram os planos da “sociedade”:

“Em 1974, eu estava com a Sociedade Alternativa, essa ideia estrutural, com os parâmetros todos desenvolvidos. Estava em uma época esotérica, frequentando tudo, participando de tudo, escrevendo para John Lennon. Não sabia que iria me encontrar com ele. Também não sabia que eu ia ser expulso do Brasil. Ordem de prisão do 1º exército!”

Segundo o artista, havia um plano real de colocar em prática a ideia de viver em uma comunidade marginal, alheia à sociedade tradicional:

“Ia ser doado para mim, por uma sociedade esotérica egípcia de Aleister Crowley, um terreno em Minas Gerais. E esse eu acho que foi o cume, culminou aí. Eu ia construir uma cidade, uma anticidade, o antitudo, o antiguarda. Ia fazer uma cidade modelo. Estávamos tão loucos pela ideia. Eu, Paulo Coelho, tinha um advogado, tinha um juiz. Tinha pessoas importantes de cada área na sociedade alternativa.”

A prisão de Raul Seixas

Os planos tiveram de ser alterados quando Raul foi preso pela ditadura militar no Rio de Janeiro. Ele relembrou:

“Fiquei um ano exilado do Brasil, sem poder voltar. Um carro do Dops barrou o meu táxi e eu fiquei nu com uma carapuça preta na cabeça. Fui para um lugar, se não me engano, Realengo. Eu sinto que foi por ali, Realengo. Um lugar subterrâneo, que tinha limo. Eu tateava as paredes e tinha limo.”

O artista, em seguida, descreveu detalhes da tortura. Ele afirmou:

“Tinha um bonzinho, um outro bruto que me dava murro, um que dava choque elétrico em lugares particulares e tudo. Eu fiquei três dias lá. Sabe, cada um tinha uma personalidade. Era uma tortura de personalidade. Eu não sabia quem vinha. Só sentia pelos passos.”

Retorno ao Brasil

No entanto, como Gita se tornou um sucesso comercial, com mais de 600 mil cópias vendidas, Raul Seixas foi autorizado a voltar ao Brasil depois de um ano. Seu disco mais vendido estourou com hinos como “Medo da Chuva”, a faixa-título e a própria “Sociedade Alternativa”, que acabaria sendo proibida de ser executada e veiculada.

Raul contou como lhe foi permitido voltar ao Brasil:

“Tinha feito muitas coisas nos EUA quando veio o Consulado Brasileiro no meu apartamento. Era quase em dezembro de 1974. Bateu na porta do meu apartamento dizendo que eu já podia voltar. Que o Brasil já me chamava, que eu era patrimônio nacional e que tava vendendo disco. Cinicamente, o cara falou assim.”

A alegação — falsa — de delação à ditadura

Em 2019, com o lançamento do livro Raul Seixas: Não diga que a canção está perdida, o jornalista e escritor Jotabê Medeiros levantou a possibilidade de que Raul, em um dos interrogatórios, acompanhados de torturas, teria entregado o parceiro Paulo Coelho aos militares.

No entanto, a hipótese não apresentou provas cabais e depois foi refutada a partir de outros documentos que mostraram que o Paulo Coelho em questão era outro, quase homônimo, mas não exatamente o parceiro de Raul Seixas.

Fernando Morais, biógrafo de Paulo Coelho, declarou à Folha de S. Paulo à época:

“Esses documentos e o novo personagem jogam luz sobre duas biografias – a do Paulo, porque põe fim a um mistério de meio século, e a do Raul, porque põe uma pedra sobre uma suspeita terrível, a de que ele teria delatado Paulo Coelho.”

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