‘Cloud – Nuvem de Vingança’ transforma o ódio em resposta brutal a um mundo sem empatia
Novo filme do diretor japonês Kiyoshi Kurosawa entra em cartaz nos cinemas brasileiros a partir desta quinta-feira, dia 17 de julho
Angelo Cordeiro (@angelocordeirosilva)
O cinema do diretor japonês Kiyoshi Kurosawa sempre capturou um tipo de mal-estar silencioso. Em filmes como A Cura (1997) e Pulse (2001), o horror não vinha de monstros ou vilões, mas da contaminação invisível que se espalha pelas relações humanas, pelo colapso da comunicação, pela sensação de isolamento em um mundo onde todos parecem estar à deriva. Seus personagens habitam corredores vazios, apartamentos impessoais e cidades onde o silêncio é mais ameaçador do que qualquer grito. Mesmo quando flerta com o sobrenatural, como em Crimes Obscuros (2006), Kurosawa se interessa mais pelo que desaparece — conexões, vínculos, empatia, humanidade — do que pelo que aparece.
Em Cloud – Nuvem de Vingança, seu mais novo longa, Kurosawa retoma os thrillers de estrutura mais direta e mergulha numa paisagem social em que o ódio se tornou linguagem corrente. O filme parte de uma premissa banal: um revendedor online vive de aplicar pequenos golpes em consumidores vulneráveis para escalar, pouco a pouco, rumo ao caos absoluto. Mas nada aqui é gratuito. A violência que explode no terceiro ato não vem do acaso: é a consequência natural de uma cultura que perdeu qualquer senso de compaixão. Em Cloud, o ódio não é exceção. É regra.
O protagonista Ryosuke Yoshii (Masaki Suda, O Menino e a Garça) vende qualquer coisa, de equipamentos médicos a bonecas colecionáveis ou bolsas falsas, sem qualquer preocupação com quem está do outro lado da tela. Não é exatamente o dinheiro que o move, mas o jogo, a sensação de controle, a alegria cínica de ver desconhecidos sendo enganados em tempo real. Ele é um produto puro do seu tempo: isolado, apático, desconectado do que sente e do que causa. Mas sua rede de vítimas, movida pelo ressentimento, começa a reagir. Aos poucos, a tela deixa de ser proteção e vira alvo. O que era impunidade vira punição.
Cloud começa como uma crônica da indiferença: fraudes digitais, armadilhas invisíveis, pequenas humilhações. Aos poucos, Kurosawa vai retirando as camadas e revelando que a violência virtual tem um peso que pode se tornar real. E se o primeiro ato é silencioso e quase banal, o segundo vira um espetáculo de vingança descontrolada. O filme se transforma em um thriller de perseguição e massacre. A vingança explode sem misericórdia e ninguém parece interessado em pará-la, mas em se alimentar dela.
O que torna Cloud tão inquietante é sua constatação amarga: ninguém aqui é inocente. Yoshii é cínico, seus compradores são vingativos e seus cúmplices não se espantam com a violência. Ninguém perdoa, ninguém hesita. Todos estão dispostos a esmagar o outro assim que a oportunidade aparece. Kurosawa filma esse universo com distanciamento quase clínico: a mise-en-scène é limpa — sua marca na carreira —, os enquadramentos são secos, os ambientes parecem desabitados. E mesmo assim, tudo pulsa com tensão. Quando a violência explode, não há clímax, há diagnóstico: é uma sociedade adoecida.
Como em Pulse, o cineasta propõe que a virtualidade é uma nova forma de fantasmagoria. Yoshii se apaga enquanto age, esconde-se atrás de perfis, boletos e galpões. Ele é uma espécie de poltergeist do e-commerce, uma presença que destrói vidas com cliques. Mas o mais assustador é perceber que ele não está só. Todo o universo de Cloud é feito de fantasmas disfarçados de gente real, todos agindo por interesse, rancor ou omissão.
Mesmo com esse peso, Cloud tem ritmo, humor sarcástico e uma sequência final brilhante com tiroteios e perseguições encenados com elegância e uma geometria exemplarmente decupada. Kurosawa parece se divertir com a insanidade do próprio filme, sem nunca perder a consciência do que está dizendo. E o que diz é duro: vivemos em um tempo em que a empatia foi substituída, e o ódio virou resposta automática. A vingança, nesse mundo criado pelo cineasta, não é exceção. É o padrão. E Cloud — Nuvem de Vingança mostra isso sem piedade.
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