Homenagem

Diane Keaton não era nada boba

A atriz era excêntrica e adorável, mas tinha nervos de aço — e seus papéis marcantes nos anos 70 a tornaram um dos grandes nomes da Nova Hollywood

ROLLING STONE EUA

Diane Keaton sorrindo em evento
Diane Keaton em 2017, quando recebeu o 45º prêmio AFI de Conjunto a Obra (Life Archievement Award)

Quando pensamos no cinema americano dos anos 1970 — aquele período simbólico conhecido como Nova Hollywood, no qual estúdios tomavam grandes riscos e cineastas jovens ousavam quebrar as regras — diversos atores vêm à mente como ícones da época: Jack Nicholson. Al Pacino. Gene Hackman. Warren Beatty.

Um nome que talvez não seja o primeiro a surgir, mas deveria estar nessa lista: Diane Keaton. Mais adiante em sua trajetória, a querida vencedora do Oscar que faleceu no sábado, aos 79 anos, encantou o público em comédias como Presente de Grego (1987), O Pai da Noiva (1991) e Alguém Tem que Ceder (2003). Mas a essência de sua grandeza — e a amplitude de seu talento — já se revelava nos filmes incríveis que ela fez nos anos 1970, mesmo quando sua personagem não era o foco central.

Nascida em Los Angeles em 1946 e interessada pela atuação desde cedo, Keaton começou no teatro no final dos anos 60, antes de migrar para o cinema, ainda pouco confiante. Apesar disso, seu primeiro papel de destaque no cinema permanece entre os mais significativos de sua carreira: O Poderoso Chefão (1972), que, fora Cidadão Kane (1941), é provavelmente o filme americano mais emblemático entre os clássicos. A história é lembrada como a saga épica da família Corleone — o envelhecido Don Vito (Marlon Brando), e seu filho prodígio Michael (Pacino) —, mas a profundidade da tragédia do filme se manifesta de forma mais intensa através de Kay, personagem de Keaton, que aos poucos passa a entender como o poder transformará seu namorado Michael, o homem que viria a reinar.

“Eu não vivi O Poderoso Chefão. Nem uma vez. Foi tudo muito avassalador para mim”, admitiu Keaton mais de 30 anos depois, falando sobre a produção do clássico. “Eu estava com tanto medo. Só tinha 23 anos e era uma Keaton sem firmeza.”

É possível perceber um pouco dessa ansiedade em sua atuação. Mas isso apenas reforça a dor de Kay, uma mulher inocente querendo acreditar no melhor das pessoas e que é jogada em um mundo que a fará renunciar essa visão idealista. Quando ela e Michael se reencontram após o exílio dele na Itália, ela insiste que, ao contrário da máfia dele, senadores e presidentes não mandam matar pessoas. Claro que essa é uma visão ingênua, mas também reflete a mentalidade de um Estados Unidos que não queria confrontar sua própria escuridão — uma mentalidade abalada pelos escândalos de Watergate e pela Guerra do Vietnã.

Paralelamente, é o rosto sofrido de Kay que ocupa a cena final de O Poderoso Chefão: enquanto Michael assume o poder, o vislumbre do futuro que a personagem tinha chega ao fim. Ela é deixada do lado de fora, com seu destino selado tanto quanto o dele. Apesar da merecida aclamação do filme e de sua grandiosidade teatral, Keaton deu à saga uma consciência moral — ela representava a decência que estava sendo apagada da vida americana.

A destreza de sua atuação dramática — com tons de indignação por justiça e idealismo despedaçado — também foi evidente na sequência mais sombria da saga, mas pouco tempo depois o público iria abraçá-la como uma comediante. Reprisando um papel que fez no teatro na adaptação de Woody Allen para Sonhos de um Sedutor (1972), ela iniciou uma série de colaborações com o cineasta que ajudaram a definir a comédia cinematográfica dos anos 1970. Capaz de interpretar tanto socialites futuristas quanto intelectuais do período napoleônico, Keaton irradiava um espírito alegre e brincalhão que a tornava parceira ideal para Allen — sua joie de vivre era o contraponto perfeito para os personagens cansados do diretor.

Keaton e Allen na década de 70
Diane Keaton com Woody Allen em uma limusine, por volta de 1970, em Nova York (Foto: Art Zellin/Getty Images)

Mas assim como Kay se torna mais cautelosa à medida que se envolve mais na teia dos Corleone, Keaton logo começou a retratar personagens mais complexos na obra de Allen. Seu amadurecimento como cineasta — desde as primeiras comédias até explorações mais multifacetadas, que não poderiam ser reduzidas a um mero interesse romântico. Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (1977) é impensável sem Keaton, em grande parte porque Allen construiu a personagem de Annie Hall com base em sua trajetória pessoal. (O sobrenome original de Keaton era Hall.)

Se Noivo Neurótico, Noiva Nervosa é a história agridoce de um comediante neurótico (Allen) que amadurece um pouco, também é a narrativa de uma aspirante a cantora que finalmente desenvolve confiança suficiente para querer mais da vida do que apenas ser namorada. A interpretação de Keaton como Annie — discreta, naturalmente bela, adoravelmente atrapalhada — permanece maravilhosa, apesar de todas as terríveis comédias românticas que se inspiraram na ideia da “manic pixie dream girl”.

Nenhuma das personagens que vieram depois teve sequer uma fração da vitalidade que Keaton trouxe para Annie — nenhum teve seu senso de moda, sua comicidade cortante ou seu sorriso livre e sedutor. Nenhuma delas se tornou símbolo da libertação feminina que fervilhava culturalmente na época. É fácil ignorar ou subestimar essa atuação, classificando Annie como meramente “charmosa”. Muita gente é charmosa: Annie Hall era alguém que mudaria sua vida para sempre — para melhor. O papel também transformou a vida de Keaton, e lhe rendeu o Oscar de Melhor Atriz.

Notavelmente, esse foi apenas o primeiro de quatro papéis inesquecíveis que ela entregou em cerca de três anos. Keaton pode ter se tornado a queridinha dos EUA graças a Annie Hall, mas poucos meses depois ela explorava o lado mais sombrio das relações em À Procura de Mr. Goodbar (1977), sobre Theresa, uma professora aparentemente comum que deseja romper com sua rotina, encontrando sexo, perigo e morte no caminho. Theresa passa despercebida no dia a dia, e Keaton captou essa normalidade junto com o desejo profundo que impulsionava tantos anti-heróis insatisfeitos dos anos 1970. Mas À Procura de Mr. Goodbar mostrou como essa inquietação era ainda mais traiçoeira para uma mulher. Keaton trouxe à vida a jornada interna de Theresa, desconstruindo os clichês da “boa menina que se tornou má” no processo.

Sua atuação como irmã mais velha reprimida e furiosa no drama Interiores (1978), com estética à la Bergman, também é pouco reconhecida — Keaton se despoja de sua leveza para encarnar uma personagem tão frágil que poderia se despedaçar ao menor toque. Em seguida, ela alcançou outro grande êxito ao interpretar Mary, escritora insatisfeita envolvida em um caso com um homem casado em Manhattan (1979), de Allen. Nem vibrante como Annie, nem melancólica como Renata de Interiores, Mary era uma nova-iorquina ambiciosa, triste e espirituosa, cuja inteligência e beleza pareciam levá-la a lugar nenhum. Lançado no final dos anos 70, Manhattan soa como um tributo triste à promessa frustrada da década, com Keaton capturando os sonhos despedaçados de mulheres que esperavam por uma vida além da cerca branca, do marido sem graça e dos filhos.

Ao longo da década de 1970, tanto quanto os rebeldes de Nicholson ou os românticos incuráveis ​​de Beatty, os sonhadores de Keaton colidiram repetidamente com as realidades da época, medindo a distância entre o que a contracultura pensava ser possível e o que o mundo realmente permitiria. Sua abordagem como atriz era sempre simples, direta, quase ingênua —era como se ela não quisesse nada separando-a da personagem, e nada separando a personagem do público. Ela interpretava mulheres com corações partidos com frequência, e sempre dava a sensação de que também estávamos vendo Keaton partir o próprio coração na tela. Vem à mente aquele comentário meio condescendente que Kris Kristofferson teria feito quando Joni Mitchell tocou para ele seu álbum devastador Blue: “Oh, Joni. Guarde algo para você.” Keaton era parecida como artista: fazia você sentir o que suas personagens sentiam, sem barreiras.

Todos os grandes filmes que ela fez depois da década de 1970 decorreram disso: sua interpretação da autora feminista Louise Bryant em Reds (1981), em que ela e Beatty são amantes unidos por uma causa comum. A tímida Lenny na comédia sombria Crimes do Coração (1986). A mulher de carreira que se torna mãe improvável em Presente de Grego. Sua parceria com Steve Martin no remake de O Pai da Noiva. O papel indicado ao Oscar em Alguém Tem que Ceder, no qual Erica, sua personagem envelhecida, enfrenta a possibilidade de deixar o playboy de Nicholson entrar de forma significativa em sua vida. E os filmes de Do Jeito que Elas Querem (2018), que deram ao público uma última chance de saborear a estrela do cinema relaxando e deixar seu carisma carregar um filme.

Todos esses papéis — e muitos outros — se destacaram pela ternura e pela inteligência de uma atriz que ajudou a erradicar noções retrógradas sobre o que uma comediante de Hollywood podia fazer. Excêntrica, mas nada boba — adorável, mas com nervos de aço — Keaton possuía uma simplicidade tão natural que nunca foi totalmente reconhecida por sua arte. Estrelar muitas comédias pode fazer isso com você — assim como interpretar mulheres que, no papel, parecem apenas “a namorada”. Qualquer pessoa que estudou Keaton, ou acompanhou como suas personagens subestimadas frequentemente surpreendiam quem as subestimava, sabe que não era bem assim. Ela foi uma força e uma revelação, enquanto fazia parecer que era apenas sua companheira engraçada com uma grande risada e um estilo descolado.

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