Desde o título, o filme evoca Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, sugerindo uma travessia de sobrevivência e criação que atravessa o corpo e a alma da protagonista. Madalena é uma mulher que precisa seguir em frente mesmo quando tudo à sua volta ameaça ruir. Cada contratempo no set se converte em um teste de resistência, um rito de passagem que a obriga a redescobrir forças onde já não parecia haver nenhuma.
O cansaço, o desespero e o improviso se acumulam, mas também revelam a capacidade de transformar sonho em premonição e ruína em insistência. O ato de filmar e continuar produzindo torna-se, assim, uma metáfora para a gestação — do filme e do filho —, como se as duas vidas que ela carrega dependessem uma da outra para existir. O caos da produção espelha a desordem emocional da personagem, unindo criação artística e experiência pessoal em uma narrativa sobre persistir quando tudo parece desabar.
Parente encontra comédia e humanidade em cada percalço: na equipe desorganizada, no abandono do diretor, nos problemas que se acumulam no set. Esse bom humor é o que sustenta o filme — um riso que brota da tensão e da persistência, celebrando o fazer cinema independente a partir de uma luta após a outra: conseguir financiamento, improvisar uma arma para uma cena, lidar com uma greve inesperada ou com os caprichos de uma equipe exausta e desmotivada. Tudo parece prestes a desabar, mas é justamente dessa precariedade que Morte e Vida Madalena extrai sua vitalidade — como na sequência em animação em que Madalena confessa o que a levou a fazer cinema. Parente transforma o caos e o sonho em energia, e a repetição do fracasso em resistência, uma forma de reafirmar que o cinema continua possível, mesmo quando tudo conspira contra ele.
Noá Bonoba, em uma performance cativante e espontânea, é o coração pulsante dessa tragicomédia. Sua presença é política: uma mulher trans no centro de uma narrativa que fala, acima de tudo, sobre trabalho, luto e criação. Parente a filma com respeito e ternura, permitindo que ela exista em toda a sua complexidade: frágil e determinada, caótica e lúcida, humana antes de tudo, com boas doses de ironia e sinceridade. “Eu só te dei uma chance porque não tinha outra alternativa”, diz a um ator problemático — uma fala que condensa o tom ácido e afetuoso do filme. Sua atuação confere à obra certa espiritualidade, enquanto Parente transforma sua jornada em espelho do próprio ofício: assim como Madalena e sua gravidez, o cinema independente também precisa de cuidado, tempo e gestação para continuar existindo — e resistindo.
A mise-en-scène de Parente reflete o equilíbrio entre realismo e fantasia vividos pela protagonista e também pelas sequências do filme B em produção. Luz, sombra e movimento reforçam a dramaturgia onírica, com ecos de horror e melancolia. As passagens de sonho e o gosto pelo sci-fi surgem aqui de forma autoconsciente, como se o próprio filme que Madalena tenta concluir contaminasse toda a realidade ao redor. Há algo de 8½, de Federico Fellini, nas passagens mais surreais e autorreflexivas — além de uma hilária referência direta —, mas não como citação vazia, e sim como apropriação afetiva de um clássico que também questionava o próprio ato de filmar. A trilha sonora, ora tensa, ora absurda, amplia essa confusão entre o set e a vida, tornando a filmagem uma extensão da ficção — ou vice-versa.
Ao final, Morte e Vida Madalena é uma homenagem bem-humorada ao cinema independente e a quem o faz existir. Entre o caos da produção e a força da protagonista, Guto Parente constrói uma obra sensível guiada pela ternura e pela consciência de que filmar, em tempos de incerteza, é um ato de resistência. Seu olhar sobre o cinema como espaço de invenção — onde o fracasso pode ser matéria-prima — revela que dar à luz um filho e dar à luz um filme são gestos da mesma natureza: triunfos da persistência, da dedicação e do amor pela arte, mas também da coragem de continuar acreditando no poder da criação, mesmo quando o mundo ao redor insiste em desabar.