Com vários acertos, ‘Springsteen: Salve-me do Desconhecido’ é um filme sobre depressão
Longa-metragem dirigido por Scott Cooper foge do padrão de cinebiografias musicais ao desmistificar Bruce Springsteen na pouco glamurosa ‘era Nebraska’
Igor Miranda (@igormirandasite)
Estima-se que quase 5% da população mundial tenha depressão. E não há distinção: qualquer um pode ser acometido. Até Bruce Springsteen no auge da fama. Mesmo no início da década de 1980, com o álbum The River no topo das paradas nos EUA, ele começou a sentir um vazio.
O resultado foi Nebraska: álbum acústico captado de modo amador em casa e lançado sob resistência da gravadora, mas insistência do artista e seu empresário, Jon Landau. A história do período ganhou contornos dramáticos ao virar a cinebiografia Springsteen: Salve-me do Desconhecido, inspirada no livro Deliver Me from Nowhere, de Warren Zanes.
Como prometido pelo diretor Scott Cooper, o filme foge do formato tradicional de biopic, seja pelo recorte temporal delimitado ou por sua temática obscura. Há vislumbres da glória de Bruce, mas o foco está nas batalhas internas e a conexão disso à sua infância, frequentemente abordada por flashbacks.
Este não é um filme sobre Bruce Springsteen ou Nebraska. É um filme sobre depressão, com o músico americano de personagem principal. Por isso, boa parte de suas cenas mais importantes ocorre com o protagonista ainda criança (representado por Matthew Anthony Pellicano) junto à calorosa mãe, Adele (Gaby Hoffmann), e ao pai abusivo e alcoólatra, Douglas (Stephen Graham). A relação tensa entre Douglas e pequeno Bruce guia a trama.
Mas, claro, as cenas com potencial para despertar maior interesse do público trazem Jeremy Allen White. O intérprete de Springsteen adulto evita imitações caricatas. Por vezes, parece até Carmy Berzatto, seu personagem na série The Bear, que o alçou à fama. E na maior parte do tempo funciona, pois soa espontâneo.
Jeremy Strong (da série Succession) arrasa como Jon Landau, homem que começou como crítico musical feroz para, no meio da década de 70, enxergar o “futuro do rock” em Springsteen e virar seu empresário/produtor. Sem a firmeza de Landau no trato com a gravadora, Nebraska seria só uma coleção de demos descartadas. E sem a atuação sólida de Strong, Springsteen: Salve-me do Desconhecido perderia força.
Outro acerto: Scott Cooper e elenco não perdem tempo ao ditar o ritmo. Em 10 minutos de filme já estamos em Colts Neck, cidade em que Bruce se isola e cria Nebraska. Em 20 o processo de composição se inicia, com direito a mostrar o modesto equipamento de gravação das demos. Dá gosto de ver.
Surgido em meio a questões existenciais de maior peso, o dilema artístico que muitos acreditariam ser o gancho principal do longa até perde importância. Falo da disputa para guardar as músicas de Born in the U.S.A. e lançar Nebraska como Springsteen queria. Mas a situação está lá, e é quando a performance de Strong se impõe.
O grande equívoco ocorre quando Cooper se rende às demandas de Hollywood ao inventar uma personagem que tem um romance com Bruce. Interpretada por Odessa Young (A Filha), Faye Romano busca agregar elementos de outras mulheres da vida do artista. Na história real, Springsteen estava solteiro no período e, dado seu estado mental, sequer dava para imaginá-lo com alguém. Boa atuação de Young à parte, Romano fica “sobrando” na trama. Só serve para reforçar a existência dos sentimentos negativos do músico e entregar um casal, algo exigido em dramas de grandes estúdios.

Tem quem possa se incomodar ainda com o número reduzido de momentos musicais, mas dado o direcionamento escolhido, era esperado. White canta de verdade — e bem — enquanto os atores que representam a E Street Band aparecem quase tanto tempo quanto os músicos aleatórios do bar The Stone Pony, frequentado por Springsteen em meio aos intervalos de composição. Como curiosidade: Jake e Sam Kiszka, respectivamente guitarrista e baixista do Greta Van Fleet, e Jay Buchanan, vocalista do Rival Sons, integram a banda de “desconhecidos”.
Fato é que Springsteen: Salve-me do Desconhecido está voltado ao interior. Logo, suas passagens mais fortes ocorrem quando aposta-se em silêncio, diálogos econômicos ou música. Talvez a direção pudesse desafiar os paradigmas do showbiz como Bruce o fez com Nebraska, mas o resultado é honesto e faz jus a The Boss.
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