Jeremy Strong: ‘Não acho que o algoritmo seja amigo do artista’
A experiência de composição e gravação de Bruce Springsteen em Nebraska é transposta para as telonas em Springsteen: Salve-me do Desconhecido. “Este disco me arrepia até os ossos”, confessa Strong
Ademir Correa
Estamos em uma tarde de sol de outono no The Stone Pony, em Asbury Park, Nova Jersey. No estacionamento do bar ainda havia a estrutura que abrigou o Summer Stage 2025, o festival que acontece durante o verão e que amplia a voz deste templo que é, há 51 anos, um território seguro da música independente e que carrega a fama de ser o endereço de correspondência de Bruce Springsteen — onde tocou em gigs surpresa. Este mistério de sua aparição ronda o ambiente. A camiseta com os dizeres “I Heard Bruce Must Show Up” (“Eu ouvi dizer que o Bruce deve aparecer”) é item obrigatório nas redondezas e ilustra a fama do mais famoso working class superhero da região.
Chegamos no outono para entrevistas sobre o filme Springsteen: Salve-me do Desconhecido, de Scott Cooper, baseado no livro Deliver Me From Nowhere, de Warren Zanes — publicado em 2023 e reeditado agora com um capítulo final sobre os detalhes que transformaram esta escrita em roteiro. A casa de shows é uma das locações e hoje está aberta apenas para a imprensa, abriga jornalistas estrangeiros que serão apresentados aos detalhes do longa-metragem que investiga a criação de Nebraska, disco de 1982 do The Boss — que traz uma sonoridade minimalista e crua produzida em seu quarto — o qual dá vazão a fantasmas de sua vida – e da observação de outras – que ele transformou em prosa poética, letra e melodias tão cinematograficamente possíveis que só poderiam resultar mesmo em um manifesto para ler ou ver – exatamente como aconteceu.
O fato conhecido é o de que, na época, o artista se isolou em Colts Neck, próximo de sua cidade natal, Freehold, para gravar demos de seu próximo trabalho com a E Street Band e, em vez disso, registrou um tracklist íntimo de 10 músicas ancoradas em suas composições e voz, e registradas em um gravador de fita cassete de quatro canais. O que se soube depois sobre este trabalho é que ele, pós-tour de The River, encontrava-se a alguns passos do superestrelato que culminava com expectativas elevadas de sua gravadora, a Columbia Records, à espera de mais e mais hits. Isolado, atravessado por marcas familiares e lidando com efeitos de uma depressão — que admitiu posteriormente — produziu um retrato do tormento a partir de referências como o filme Terra de Ninguém (1973), de Terrence Malick, o disco-debut homônimo da banda Suicide (1977), a odisseia selvagem de assassinatos causados pelos serial killers Charles Starkweather e Caril Ann Fugate — jovens que perderam a inocência para a delinquência e o true crime entre 1957 e 58 — e as histórias de Flannery O’Connor, mestre da literatura e autora da máxima “um escritor sério sempre usa uma falha na natureza humana como seu ponto de partida”.
Sabe-se que o musicista começou a ler O’Connor com quase 30 anos e isso influenciou sua musicalidade; no review de Darkness on the Edge of Town, Paul Nelson explicitou esta aproximação no artigo “Springsteen Fever” para a Rolling Stone (de julho de 1978) quando escreve: “Muitos dos personagens nas canções dele parecem estar presos em um estado de desespero tão intenso que precisam ou romper em direção a algo melhor — ou pelo menos ambíguo — ou sucumbir à loucura, ao assassinato ou a algo ainda pior”.
Quatro anos depois temos Nebraska, pós-The River e pré-Born in the U.S.A.. Inicialmente se chamaria Starkweather, como entendemos por seu biógrafo — “uma história pesquisada de forma forense sobre este disco de Bruce Springsteen que Zanes chama de ‘a maior guinada já feita por alguém que estava no topo das paradas’”, segundo reportagem do jornal britânico The Guardian — e seu cineasta — “queria um retrato profundo, mas épico em sua amplitude emocional”, confessou Cooper que é também o roteirista da obra. O ator Jeremy Allen White, que vive o The Boss nas telonas, era também um fã e via na canção “Reason to Believe” um fio de esperança. “Então ele me disse que ela era a mais desesperançosa de todas. Penso que este disco é sobre solidão e escuridão. Algo com que estou familiarizado”, contou.
A cidade sem a agitação e o calor da praia se encontra em um misto de espaços (que parecem) vazios e casas de madeira habitadas como se saíssem diretamente de realities de decoração. Nas ruas, um carro funerário estacionado anuncia as Ghost Tours do Museu Paranormal enquanto nos deparamos também com coleções de pedras de cura e cristais à venda como souvenirs. Este ambiente nem tão esotérico assim respira também a orla com um vento cortante que desequilibra até as gaivotas. Saímos do The Asbury, um prédio que foi um lar para idosos pertencente ao Exército da Salvação em 1956, acabou abandonado em meados dos anos 2000 e, desde 2016, converteu-se em um hotel-boutique reimaginado pelo escritório de arquitetura Stonehill Taylor. Ali, a aparência industrial da construção de tijolos aparentes traz um ar de encontro com seus ambientes coletivos com mesa de bilhar e sofás que incitam à leitura — com table books como “Rolling Stone – 50 Years” ou o “500 Maiores Álbuns de Todos os Tempos” (Nebraska ocupa a posição 150), além de uma parede-estante de vinis e fitas cassete que convidam à audição — uma placa chama para um “date com um disco” como parte da experiência. Anexo ao hotel está a Transparent Gallery, de Danny Clinch, onde Tina Kerekes nos relembra parte da carreira de Bruce emoldurada em uma galeria de fotos. “Veja como ele está feliz”, ela comenta ao mostrar registros do astro durante apresentações ao vivo em meio aos seguidores.

Entramos em um carro para nos dirigir ao The Robinson Ale House, onde encontraremos Jeremy Strong, o Kendall Roy da série Succession, que agora personifica o manager Jon Landau. A conversa é na sacada — ele com vista para o mar, eu voltado à fachada do Convention Hall, um farol do entretenimento, mistura de galeria com restaurantes locais — onde está a pop up Springsteen Archives — e casa de espetáculos. O Kiss tocou ali em 1975 durante a “Dressed to Kill Tour” (o cartaz ainda estampa as paredes cinco décadas depois) e Bruce também usava para ensaios. A entrevista aconteceu no 30 de setembro, exatamente no mesmo dia em que, 43 anos antes, The Boss lançava Nebraska. Ele me conta que estava na faculdade quando foi impactado pela obra. “É um daqueles álbuns que te arrepia até os ossos”, relembra. Questiono uma fala em que seu personagem comenta sobre a preferência dos fãs por “momentos” artísticos — uma sentença premonitória dos anos de 1980 que, agora, é regra vigente da indústria fonográfica para criar singles, virais, dance breaks, visuals e lyric videos a partir de lançamentos únicos disponibilizados de forma mais rápida do que o entendimento e quase tão veloz quanto a aceleração da nossa espera hiper estimulada.
“Neste caso, este álbum não podia ser mais analógico — ele gravou com um equipamento de merda, na sua própria cama, mas o que importava ali era o nível de honestidade. Gosto que este filme esteja sendo lançado em um mundo que se tornou cada vez mais sintético e artificial. É como trazer um som real [o longa em si] cercado de muito barulho. Muito do progresso tecnológico é, de certa forma, antiético e até hostil se pensarmos no que se precisa para se fazer arte. Não acho que o algoritmo seja amigo do artista”, comenta um tímido Jeremy Strong, conhecido por seu mergulho profundo nos textos e subtextos de seus personagens e discreto em um visual em tom de verde escuro e camiseta branca que contrasta com o azul do Jersey Shore.
Não longe dali está a Unwind Records and Comics, dividindo o Asbury Park Boardwalk com sorvetes, roupas e a médium Madam Marie, e também repleta de relíquias mais definitivas que o instante (como o livro de Daniel Johnston, o disco Buckingham Nicks, de 1973, e os stills de cena de Eraserhead, de David Lynch, de 1977). O proprietário, o colecionador Aaron Hochman, nos conta que a cidade respira punk, mas que Springsteen é uma espécie de isca para os turistas, enquanto comenta sua predileção pela Tropicália – ele tira da prateleira o vinil Transa, de Caetano Veloso, e lembra que soube do movimento brasileiro a partir do single de mesmo nome de Beck (do disco Mutations, de 1998). Me volto novamente a Strong, que transpôs para as telas Jon Landau, crítico musical ferrenho detentor de textos presentes já na edição número 01 da Revista Rolling Stone, de novembro de 1967, quando analisou Are You Experienced, de Jimi Hendrix, afirmando que “suas letras eram banais e sua capacidade de composição, muito ruim”. É dele também a resenha de 1974 que dizia “eu vi o passado do rock diante dos meus olhos. Eu vi futuro do rock and roll e seu nome é Bruce Springsteen”, publicada no jornal The Real Paper. Voltamos ao Stone Pony e recebemos a nova edição do livro de Zanes. Do nada, um carro preto chega no pátio e dele sai Bruce.
Ele realmente apareceu.
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