Daniel Caesar mergulha nas próprias raízes em Son of Spergy, disco de fé e maturidade
Um álbum de fé, herança e marés interiores — onde Daniel Caesar coloca o passado no banco do motorista e convida o presente a tentar alcançá-lo
Kadu Soares (@soareskaa)
Na madrugada da última sexta, 24, Daniel Caesar deu mais um passo em sua carreira — não necessariamente para frente, mas certamente para dentro. O quarto álbum de estúdio, Son of Spergy (2025), tem 52 minutos de R&B, neo-soul e gospel — uma sonoridade que sempre esteve circulando a vida de Caesar.
Com produção majoritária própria e uma lista de colaboradores de alto nível, o disco chega com um título que remete a “Spergy,” apelido de seu pai — e sinaliza que este trabalho é, acima de tudo, sobre família, herança e identidade.
O álbum foi gravado durante uma viagem à Jamaica, terra natal de seu pai, o que amplifica o tom de retorno às raízes. Neste cenário, Caesar não apenas revisita sua linhagem, mas coloca-se como filho e aluno, buscando entender de onde veio antes de decidir para onde vai. O resultado é um disco menos preocupado com o sucesso imediato e mais interessado em despertar ecos — ecos de história, de fé, de voz e de silêncio. Son of Spergy é denso, belo, contemplativo.
Se Never Enough (2023) era o espelho da vulnerabilidade moderna — um disco sobre amor não correspondido, perda e reconstrução —, Son of Spergy surge como o contraponto espiritual. Lá, Daniel Caesar parecia tatear no escuro da dúvida; aqui, ele parece caminhar guiado por uma lanterna interna.
Essa guinada de dentro para fora molda a espinha dorsal do projeto. O álbum mistura confissão e contemplação. As letras são bastante reflexivas, autopunitivas, com metáforas bíblicas e desabafos íntimos, e o ritmo parece lento de propósito, como se cada verso fosse uma respiração controlada entre lembranças. Caesar ora soa como filho arrependido, ora como um homem em comunhão com as próprias falhas.
Faixas de destaque
A sequência inicial é incrível, da oração de “Rain Down,” onde ele suplica: “Senhor, deixa Tuas bênçãos choverem sobre mim,” até “Baby Blue,” uma das faixas mais sensíveis de toda a discografia de Caesar, o disco desenha uma viagem de autoconhecimento e dos seus familiares.
Em “Who Knows,” ele se entrega à dúvida de se um dia vai casar ou se ele é uma perda de tempo para os outros, mas sempre com um tom apaixonado. É a síntese da vulnerabilidade madura — não o amor que promete eternidade, mas o amor que aceita o imprevisível. O mesmo espírito volta em “Touching God,” canção que leva o nome do gesto e o peso da dúvida: tocar o divino sem saber se ele ainda responde. Já em “Emily’s Song,” Caesar está destruído depois de um término. Já em “Emily’s Song,” Caesar está destruído após um término. A voz trêmula e o arranjo acústico revelam que, depois disso, ele voltou a ser prioridade na própria vida.
Outros pontos interessantes que Daniel desenvolve bem são a parte mais rimada em “Sign Of The Times,” a guitarra suja de “Call On Me” que acompanha grande parte da música, em especial no refrão; e as participações de outros artistas, que vão desde Sampha, Yebba, Blood Orange e Bon Iver, até seus familiares Nordwill Simmonds, seu pai e 646yf4t, seu primo.
No final do projeto, “Sins of the Father” encerra o ciclo com uma força simbólica tremenda. É a música que melhor define o espírito de Son of Spergy — o perdão como herança, o peso do sangue e a paz em aceitar que alguns erros não são para apagar, mas para compreender.
Reflexões profundas, ainda que por vezes excessivas
Son of Spergy é, acima de tudo, um álbum de coragem — e talvez por isso mesmo, de risco. Daniel Caesar entrega aqui uma das produções mais coesas e bem arquitetadas de sua carreira. A escolha por timbres quentes, reverbs sutis e arranjos de sopro e cordas que soam quase como orações instrumentais reforça o caráter espiritual do trabalho. Tecnicamente, o disco é impecável: cada faixa parece construída com cuidado artesanal, como se o artista polisse os detalhes sonoros do mesmo modo que lapida suas próprias feridas.
A única fragilidade de Son of Spergy está justamente no tamanho de sua ambição. Caesar mira a transcendência — e às vezes, nesse esforço, se distancia da emoção imediata que o consagrou. O álbum é mais contemplativo do que catártico, mais meditativo do que explosivo. Há momentos em que a produção se repete nas mesmas paisagens sonoras — vocais etéreos, texturas lentas, harmonias suspensas — e, embora tudo soe belo, o disco por instantes parece se perder dentro de sua própria imensidão.
Mas esse é um pequeno preço a pagar por uma obra que ousa ser sincera e espiritual em tempos de superficialidade. O minimalismo que poderia soar morno em outros contextos aqui serve como ferramenta de profundidade. Caesar não canta para agradar o ouvinte — canta para se entender, e o resultado é um álbum que recompensa quem escuta com atenção. Son of Spergy não é feito para consumo rápido ou para entender tudo de uma vez; é feito para decantação lenta, ouvir algumas vezes e apreciar cada faixa.
Há uma beleza rara nessa paciência. O disco tem alma, e é isso que o mantém vivo mesmo em seus instantes mais herméticos. Son of Spergy é menos um produto e mais um testemunho — o retrato de um artista que não busca perfeição, mas comunhão. Um trabalho que, se não é o mais acessível de sua carreira, certamente é o mais verdadeiro.
Caesar ciente da sua história
Em seu novo disco, Daniel Caesar não busca redenção — busca continuidade. Já consolidado como um dos nomes mais respeitados do R&B contemporâneo, ele não precisa mais provar domínio vocal, sofisticação harmônica ou relevância cultural. Aqui, ele se permite desacelerar e olhar para o espelho com serenidade. O álbum é menos uma tentativa de se reinventar e mais um gesto de reconhecimento — um tributo às vozes e às memórias que o moldaram.
Son of Spergy é um projeto lindíssimo em conceito e execução. Caesar une técnica e emoção em doses equilibradas, explorando timbres quentes, camadas vocais sutis e uma produção que alterna entre o devocional e o moderno. O disco tem a medida exata entre o R&B e o pop, entre o gospel e o neo-soul. Tudo sem jamais perder a essência da sua discografia. É um trabalho que exige entrega — mas recompensa quem se dispõe a mergulhar nele. Para os fãs de longa data, é um retorno e tanto; para os novos ouvintes, uma imersão densa, quase espiritual.
Por outro lado, essa densidade também pode afastar quem espera imediatismo. Son of Spergy é mais subjetivo e atmosférico que qualquer outro álbum de Caesar — e, por isso mesmo, pode soar cansativo a quem busca refrões marcantes ou melodias radiantes. Ainda assim, é uma obra que merece ser sentida, não apenas ouvida. Daniel Caesar entende o poder da contenção — e prova, mais uma vez, que grandeza e delicadeza podem ocupar o mesmo espaço.