Rosalía quebra todas as convenções do pop em ‘Lux’ e mostra que, para disco bom, não há receita pronta
A Rolling Stone Brasil ouviu em primeira mão o quarto álbum da catalã, que sai na próxima sexta, 7, e garante que ela entrega uma obra-prima operística que redefine o que significa ser popstar — e é absurdamente genial
Daniela Swidrak (@newtango)
Há momentos na história da música pop em que um artista decide abandonar completamente o mapa e traçar um território novo. Rosalía Vila Tobella já havia feito isso antes, quando transformou o flamenco em algo contemporâneo com El Mal Querer (2018), quando reimaginou o reggaeton e as tradições caribenhas em Motomami. Mas com Lux, seu quarto álbum de estúdio, a catalã não está apenas redesenhando fronteiras: ela está construindo uma catedral inteira do zero, pedra por pedra, nota por nota, idioma por idioma. E que catedral!
Lux — que significa “luz” em latim — é um projeto radicalmente diferente, mais ambicioso que Motomami e infinitamente mais arriscado. Onde Motomami era horizontal, expandindo-se pelo mundo em batidas de reggaeton e experimentações urbanas, Lux é vertical: uma ascensão espiritual, uma busca pelo divino através da música. E se alguém espera ouvir um quê de Motomami, já podemos adiantar: tem NADA parecido.
O álbum conta com 18 faixas divididas em quatro movimentos — como na música clássica, cada um com sua própria estrutura, carácter e tempo. No streaming, haverá acesso a 15 delas; três (“Focu ‘ranni“, “Jeanne” e “Novia Robot“) ficarão exclusivas da versão física. Uma pena, porque “Focu ‘ranni” é uma música sobre não se casar (hmmm, parece familiar), enquanto “Novia Robot” é uma faixa bem-humorada que fala de feminismo e faz referência em rima até para um Labubu.
Talvez o aspecto mais audacioso (e francamente insano) de Lux seja o fato de Rosalía cantar em 13 línguas diferentes: espanhol, catalão, português, inglês, japonês, latim, alemão, italiano, hebraico, chinês, ucraniano, árabe e francês. Não são apenas palavras soltas, são versos inteiros, melodias complexas, pronúncias perfeitas que ela dominou após um ano dedicado exclusivamente às letras. É algo tão ambicioso que beira o absurdo. E é exatamente por isso que funciona de maneira tão brilhante.
Sua voz nunca esteve tão divina. Quase angelical, Rosalía alcança tons de ópera com perfeição, navegando entre o sussurro íntimo e o canto lírico com uma maestria desconcertante. Este é, sem dúvida, o trabalho vocal mais impressionante de sua carreira — e talvez o mais impressionante que qualquer popstar fez em décadas.
Gravado com a Orquestra Sinfônica de Londres sob a regência de Daniel Bjarnason, Lux é sublime na sua grandiosidade. O primeiro movimento é o mais orquestral, com cordas intensas que envolvem como um abraço divino — essa atmosfera se mantém até “Berghain”, primeira faixa do segundo movimento e primeiro single do álbum. A orquestra é sublime e, ao mesmo tempo, ganha umas viradas de música com beats e distorções, trazendo modernidade para o som. É como se Bach fosse jogado num clube de Berlim às 4h da manhã. E funciona de um jeito assustador, tão perfeitamente que surge a pergunta: por que ninguém pensou nisso antes?
A produção é tão meticulosa, tão absurdamente bem construída, que cada escuta revela novas camadas. É um disco dramático que exige atenção — e aqui vai uma dica importante: ouça este disco com um bom equipamento de som, um bom fone, porque ele merece que você ouça cada detalhezinho, cada distorção, cada percussão, violino. Este não é um álbum para ouvir no shuffle enquanto se lava a louça. É uma experiência imersiva que recompensa a atenção total, e quando isso acontece, a experiência é transcendental.
É assim que Rosalía consegue aproximar a juventude a temas de fé sem soar panfletária ou datada. Ela canta sobre temas divinos, mas com pitadas de modernidade. Lux é um disco sobre amar a Deus e também é um disco mais introspectivo, traçando um arco emocional que se move entre a intimidade e a escala operística para criar um mundo radiante no qual som, linguagem e cultura se fundem em uma só expressão.
Rosalía vai reeducando a gente sonoramente: nos aproximou do flamenco, achou novas maneiras de fazer pop, mas agora ela nos ensina a ouvir uma ópera, orquestra, e prova que não existe uma fórmula para fazer um bom álbum, porque ela quebra os paradigmas e traz algo antes jamais visto. É como quando ela fez a live do Motomami em formato vertical no TikTok no lançamento e levou esse elemento nos shows ao vivo. E isso levanta uma dúvida muito grande: como serão os próximos shows?
O álbum traz colaborações que fazem todo sentido dentro da proposta: Björk (claro), Yves Tumor, Carminho, Estrella Morente, Sílvia Pérez Cruz, Escolania de Montserrat, Cor de Cambra do Palau de la Música Catalana e Yahritza. Cada uma dessas vozes adiciona camadas de significado e beleza ao projeto.
Por baixo de toda a teatralidade operística, Lux também é profundamente pessoal. Algumas músicas fazem referência clara a um relacionamento que não deu certo e as fases de dor, conformidade, a busca por algo maior e enfim a superação. Estaria ela fazendo referência ao seu ex-noivo Rauw Alejandro? As entrelinhas sugerem que sim.
“La Perla” tem uma sonoridade que lembra circo (não por acaso) numa faixa que cita um ex-relacionamento em que ela enxerga que a pessoa era “um monumento à desonestidade” e uma “red flag ambulante”. Já “Sauvignon Blanc” é sobre afogar as mágoas e superar um término. Em “Dios Es Un Stalker” (melhor nome), ela mistura um pouco de ritmos latinos com flamenco. “Memória” é uma canção em português de Portugal que tem a participação de Carminho e é de uma delicadeza de partir o coração. Em “Relíquias”, ela cita várias cidades do mundo — infelizmente, nenhuma do Brasil. E “Magnólias” fecha o álbum tão lindamente que é impossível não se emocionar.
Sim, Lux é um disco dramático. É introspectivo. Talvez as pessoas sintam falta de faixas mais dançantes, mas Lux carrega uma dança na alma, aquele tipo de movimento interno que faz fechar os olhos e balançar a cabeça mesmo quando se está sozinho no quarto.
Rosalía traça aqui um arco emocional ambicioso que desafia qualquer lógica da indústria musical contemporânea. É pop? É clássico? É avant-garde? É tudo isso e nada disso ao mesmo tempo. Lux não é apenas um disco, é uma declaração de intenções. É Rosalía dizendo: “Eu posso fazer o que eu quiser, e vocês vão me acompanhar”. E a verdade é que sim, vamos. Porque quando uma artista tem coragem suficiente para construir uma catedral onde ninguém esperava, a única coisa que resta é entrar, ajoelhar e agradecer pela luz que ela trouxe.
Lux é, simplesmente, um dos álbuns mais ousados e extraordinários já feitos por qualquer artista pop na história recente. Um disco feito sem fórmulas prontas, que vai redefinir conversas sobre música pelos próximos anos.
Nota: ★★★★★ (5/5)
Lux chega aos streamings na próxima sexta-feira, dia 7 de novembro, pela Sony Music, com versão física contendo três faixas exclusivas.
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