Por que não conseguimos parar de discutir sobre ‘Nebraska’, álbum de Bruce Springsteen
Salve-me do Desconhecido é um filme divisivo sobre um álbum divisivo — acrescentando um novo capítulo a um debate que vem acontecendo desde os anos 1980
Rob Sheffield
Nebraska, de Bruce Springsteen, sempre foi um álbum que as pessoas adoravam discutir. Então faz sentido que estejamos discutindo sobre ele agora. Springsteen: Salve-me do Desconhecido decepcionou nas bilheteiras, arrecadando US$ 16,1 milhões no fim de semana de estreia. Isso poderia parecer um sucesso colossal para mim ou para você — exceto pelo fato de que o orçamento foi de inacreditáveis US$ 55 milhões, para um filme sobre um álbum gravado em um gravador de fita de US$ 400. As críticas têm sido extremamente divididas. Electric Nebraska deu aos fãs uma nova perspectiva sobre esse clássico álbum acústico de 1982 — e sobre como ele poderia ter sido diferente se Springsteen tivesse envolvido a E Street Band. É por isso que as discussões sobre o Boss estão explodindo — como “Chicken Man”.
Assim como Kid A, do Radiohead — um movimento extremamente parecido que aconteceu 18 outubros depois —, Nebraska sempre foi divertido de debater, quer você o ame ou odeie. Em uma das cenas mais engraçadas do filme, ouvimos Jimmy Iovine ao telefone, gritando com o empresário Jon Landau sobre o quão idiota seria lançar aquele disco folk. (Iovine interpreta a si mesmo — genial.) Há também um momento em que Landau diz que vai tocar o álbum para Iovine e Stevie Nicks; tragicamente, o filme não mostra a reação de Stevie.
O longa traz atuações com cara de Oscar, com Jeremy Allen White como o Boss e Jeremy Strong como Landau. Mas é um filme divisivo — como convém a um álbum divisivo —, e mesmo quem amou Salve-me do Desconhecido encontra muito do que reclamar. É basicamente um filme inteiro de homens falando sobre os problemas de Bruce Springsteen — um deles sendo o próprio Bruce. Há também algumas mulheres ali, fazendo acenos empáticos. O técnico de masterização tem mais falas do que toda a E Street Band. A mensagem é que homens preferem literalmente fazer álbuns conceituais acústicos sobre assassinos psicopatas a fazer terapia.
No centro da história de Nebraska há um melodrama clássico do show business: os engravatados malignos gritam “isso nunca vai vender”, enquanto o roqueiro rebelde responde “um artista tem que fazer o que um artista tem que fazer”. E é isso que a torna uma lenda tão boa. É por isso que existe um filme sobre Nebraska e não sobre o vencedor do Grammy de Álbum do Ano, Toto IV. (Eu, pessoalmente, assistiria com prazer à cena do “sabe o que essa música precisa? Cães selvagens uivando na noite.”)
Mas o filme só dá pequenos vislumbres da cultura rock de 1982 — e de por que Nebraska era tão cômica e completamente inadequada para tocar no rádio. No filme, Springsteen dirige ouvindo “Urgent”, do Foreigner, e “Winning”, de Santana — dois hits onipresentes de 1981. O álbum inteiro é cheio de homens suados dirigindo sozinhos à noite, rezando por uma salvação roqueira no rádio. Mas Nebraska era exatamente o que eles não estavam ouvindo.
A maior nova estrela de 1982, no rock radiofônico, era John Cougar, com American Fool — oferecendo o tipo de som básico e popular que Springsteen se recusava a entregar. “Hurts So Good” e “Jack and Diane” eram óbvios (mas eficazes) hits ao estilo do Boss, com Bryan Adams e John Cafferty logo vindo na sequência. (Cougar ainda estava a um ano de recuperar o nome “Mellencamp”.) American Fool tinha seis meses quando Nebraska foi lançado — mas ainda liderava as paradas há nove semanas. Para caras como Mellencamp e Adams, ouvir Nebraska deve ter sido um dos momentos mais felizes de suas vidas.
Mas foi Billy Joel, mais do que ninguém, quem colheu os frutos de Nebraska. Ele havia acabado de lançar seu próprio álbum artístico e pouco comercial, The Nylon Curtain, lançado uma semana antes — com a mesma proposta pouco radiofônica, pela mesma gravadora, e provavelmente gerando os mesmos surtos de raiva entre os executivos. Ironia do destino: The Nylon Curtain acabou se tornando um sucesso, porque Billy preencheu o vazio deixado por Springsteen. “Pressure” e “Allentown” se tornaram grandes hits justamente por serem o substituto mais próximo das canções acessíveis de Bruce que o Boss se recusou a oferecer.
Um anúncio de página inteira na Rolling Stone no fim de 1982 trazia apenas o nome de Billy Joel, um punho segurando uma chave inglesa e a letra completa de “Allentown”. Ele jamais teria conseguido lançar um anúncio assim se Springsteen tivesse dado ao público ao menos um agrado em Nebraska. “Pressure” era bastante anticomercial pelos padrões de Billy — um tributo às angústias de estrelas do rock tentando falar com seus fornecedores ao telefone, com o cantor cerrando os dentes como se estivesse preso nos 30 minutos finais de Os Bons Companheiros. (O excelente documentário de cinco horas Billy Joel: And So It Goes não menciona cocaína uma única vez — então ele provavelmente pesquisou o tema conversando com os figurões do Elaine’s.) Mas, comparada a Nebraska, essa música parecia “Just the Way You Are”.
As rádios de rock simplesmente se recusaram a tocar Nebraska, o que foi genuinamente chocante na época — afinal, era o novo disco de Bruce Springsteen. “Acho que vai acontecer uma de duas coisas”, previu um especialista de um boletim musical na Rolling Stone. “Ou isso vai consolidar a tendência de o rádio aceitar músicas mais suaves e pessoais, ou vai ser um completo fracasso.”
A emissora WBCN, de Boston — território fiel a Springsteen — tocou “Open All Night” por cerca de uma semana e desistiu. A música tinha guitarra elétrica, um riff à la Chuck Berry e um clima surpreendentemente animado (é quase a versão em universo alternativo de “State Trooper”), mas sem refrão — soava apagada no rádio. Chegou apenas ao nº 22 da parada Top Tracks da Billboard, um fracasso certificado, com colocações ainda piores para “Atlantic City” e “Johnny 99”. Naquela semana, os álbuns mais tocados nas rádios rock eram Rush (Signals, sua controversa fase synth), Billy Squier, The Who (seu péssimo disco de despedida, It’s Hard), Don Henley (em seu primeiro álbum solo), Bad Company, Kenny Loggins, Steve Winwood e Men at Work.
Quando uma estrela se torna um superstar, como Springsteen após The River, a piada clichê é que ele poderia fazer sucesso até soltando um pum no microfone — mas Nebraska foi a prova definitiva de que essa teoria não se sustenta. Ele não conseguiu tocar nada no rádio, embora o disco vendesse bem. Estreando no nº 29, subiu direto para o nº 4 na semana seguinte — um ritmo rápido para 1982. (Foi o segundo álbum que mais subiu rápido no ano, atrás apenas de Tug of War, de Paul McCartney.) Chegou ao nº 3, atrás de Cougar, Fleetwood Mac e Steve Miller, e logo à frente de Michael McDonald. Mas o rádio não mordia a isca.
O filme mostra brevemente a MTV, de forma zombeteira, apenas para uma piada rápida, enquanto Bruce zapeia entre reprises de Badlands. Mas foi a MTV, ironicamente, que abraçou Nebraska depois que o rádio o rejeitou completamente. A emissora novata apostou em “Atlantic City”, que tinha um clipe cru do qual Bruce (sabiamente) não participa. MTV tocava “Atlantic City” como se fosse um enorme hit — simplesmente porque estavam gratos por ter qualquer conteúdo de Bruce —, mas a música acabou se encaixando surpreendentemente bem entre os artistas de synth-pop britânico esquisitos de 1982/1983 — que o rádio também ignorava. Ouví-la entre Soft Cell e The Human League fazia muito mais sentido do que entre Rush e Journey. O que tornava Nebraska inadequado para o rádio é exatamente o que o tornava perfeito para a MTV — e faz todo sentido que os garotos da New Wave tenham sido os que acolheram “Atlantic City” de coração, especialmente considerando como Springsteen se inspirou no som eletrônico de vanguarda do Suicide e em “Frankie Teardrop”.
Mas o principal motivo pelo qual Nebraska se tornou um sucesso duradouro é que as pessoas se viam naquelas músicas. De forma curiosa, Ronald Reagan não é mencionado uma única vez no filme — nem mesmo em um noticiário de fundo entre as reprises de Badlands. Praticamente tudo o que se disse ou escreveu sobre Nebraska nos anos 1980 — inclusive pelo próprio Springsteen — o enquadrava como o lado sombrio da América de Reagan. No fim de 1982, o desemprego era de 10,8%, o mais alto desde a Grande Depressão. Springsteen já havia escrito uma canção de protesto sobre o tema, “Out of Work”, para o roqueiro sessentista Gary U.S. Bonds — que, incrivelmente, chegou ao Top 40 naquele verão, com uma terceira estrofe endereçada diretamente a “Hey Mr. President”, provocando: “Talvez você tenha um emprego pra mim — só de te levar pra lá e pra cá?”
Então como agora, o presidente não se importava. Em março de 1982, Reagan chegou a perguntar: “É notícia o fato de que algum sujeito em South Succotash tenha acabado de ser demitido, e que ele deva ser entrevistado em rede nacional?” Mas Nebraska retrata esses “perdedores” de South Succotash como pessoas reais. Como Springsteen disse à Rolling Stone:
“Nebraska falava sobre esse isolamento americano: o que acontece com as pessoas quando elas se veem alienadas de seus amigos, de sua comunidade, de seu governo e de seu trabalho. Porque são essas coisas que te mantêm são — que dão algum sentido à vida. E se tudo isso escapa, e você passa a existir em um vazio onde as regras básicas da sociedade viram piada, então a vida também vira uma piada. E qualquer coisa pode acontecer.”
Hoje, ninguém quer admitir que zombou de Nebraska na época — assim como ninguém admite ter vaiado Bob Dylan no Newport Folk Festival, como mostra outro grande biopic do ano, Um Completo Desconhecido. Mas muita gente zombou, sim. Um leitor reclamou na seção de cartas da Rolling Stone: “Eu gostava muito mais dele quando ele era uma reedição dos anos 1950.” Esse não era o Bruce que o público queria — aquele que já era uma caricatura afetuosa na cultura pop, como na esquete “Elmer Fudd canta Springsteen”, de Robin Williams, ou na paródia do programa Dr. Demento Show, em que “Bruce Springstone” cantava o tema de Os Flintstones.
É por isso que o álbum abriu as portas para todos os clones de bar dos anos 1980 tentando imitar o estilo do Boss. Hollywood, inclusive, estava produzindo Eddie, o Ídolo Pop, um filme fanfic sobre a E Street Band que virou febre na TV a cabo durante o longo hiato entre Nebraska e Born in the U.S.A. (O filme até tem seu próprio subenredo ao estilo Nebraska, em que Eddie enfrenta o sistema lançando um álbum artístico e nada comercial, A Season in Hell.)
Mas, ontem como hoje, as pessoas valorizavam o aspecto de azarão do disco — o artista que assume uma posição, desafia as probabilidades e mantém a fome criativa. Como se dizia com frequência em 1982, Bruce havia recuperado “o olho do tigre”. É por isso que o álbum ficou para a história: o caso definitivo de um superstar que rasga tudo para recomeçar — no mesmo espírito de Kid A ou Achtung Baby, ou como Bowie em Berlim e Neil Young pegando a estrada rumo ao abismo.
Em 2007, quando chegou a hora de Kelly Clarkson lançar o sucessor de “Since U Been Gone”, ela irritou a gravadora com o pessoalíssimo My December — e o chamou de “meu Nebraska” — um sinal claro de que esse mito cultural havia entrado em um novo território. E é justamente isso que faz de Nebraska um dos maiores debates da história do rock & roll.
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