Matuê tinha todas as desculpas prontas em XTRANHO (mas não precisou usar)
O rapper entrega álbum que cumpre o que promete e dá visibilidade ao underground — mesmo que pudesse ir ainda mais longe
Kadu Soares (@soareskaa)
Ele tinha todas as desculpas prontas. “Ah, álbum ruim”: é um álbum estranho. “Ah, a sonoridade não combina”: é um álbum estranho! “Ah, que maluquice é essa, muito barulho”: é um álbum ESTRANHO! O título XTRANHO poderia funcionar como escudo perfeito para qualquer crítica, um salvo-conduto artístico que transformasse falhas em características. Afinal, é isso que está prometido, certo? Estranheza, desconforto, ruptura.
Mas corta. Respira. Escuta de novo.
Porque a verdade é que Matuê não precisa dessas desculpas. XTRANHO é bom, seja um álbum experimental ou não. Não é interessante “considerando a proposta”. É simplesmente um bom álbum. Decidido, coeso, que cumpre exatamente o que promete e ainda entrega algo a mais: uma plataforma gigante para o underground do trap brasileiro respirar. E isso, por si só, já vale o ingresso.
Após quatro meses de produção e uma audição única — e histórica — no Vale do Anhangabaú na noite de quarta, 10, XTRANHO finalmente chegou.
“REI TUÊ” abre o disco como uma declaração de intenções promissora — e é uma das melhores faixas do álbum. A produção suja, as batidas cortantes, o flow confiante. Matuê está avisando: “Eu represento o meu bando”. Não é só sobre ele. Nunca foi. É sobre a 30PRAUM, selo que o rapper fundou com Clara Mendes, sobre a cena, sobre quem ficou de fora do mainstream enquanto o trap brasileiro virava commodity.
“TALKING ABOUT” vem logo depois e traz uma familiaridade proposital. É impossível não ouvir ecos sutis de 333, o álbum anterior que quebrou recordes no Spotify e consolidou Matuê como o maior nome do trap nacional. Mas aqui, a nostalgia é estratégica. É como se o rapper estivesse dizendo: “Lembra disso? Pois é, agora esquece”. Porque XTRANHO não quer ser 333 Deluxe. Quer ser outra coisa, melhor, mais ambiciosa.
E aí vem “MEU CEMITÉRIO”, o single que antecedeu o disco e que, convenhamos, é bem superior ao descartado “JAPONÊS” (que sequer entrou na tracklist). A faixa constrói uma paisagem sombria, quase ritualística, com influências claras de Aphex Twin — não apenas na produção, mas na forma como o desconforto é usado como ferramenta estética. É feiura proposital, é sangue no crucifixo, é a recusa em ser palatável.
A partir de “ÍCONE FASHION”, o disco abre suas portas. Kouth, Cashley, N.A.N.A., FAB GODAMN, Okie, Phl Notunrboy, LPT ZLATAN — não são feats decorativos. São vozes que trazem autenticidade, que vêm de um lugar não contaminado pela máquina empresarial da música. E é aqui que XTRANHO cumpre talvez sua função mais importante: dar visibilidade a quem está fazendo o trabalho sujo enquanto o mainstream polvilha purpurina.
“AUTOBAHN” (com Cashley) sintetiza isso no refrão: “Baby, eu tenho um plano pra gente ficar gigante”. O plano é óbvio: crescer sem se render às fórmulas. Elevar a vanguarda. Fazer o underground virar grandeza sem perder a essência. É ambicioso, mas soa honesto.
Já em “FACAS E MACHADOS” (com FAB GODAMN e Okie) é onde o disco atinge seu ápice de estranheza, falando nada com nada, de “bobby godies” a “iFood”. “O bagulho já tá perdendo até o sentido”, como cantam. É um sonho febril, agressivo, disforme. Fluxo de consciência virado beat com os versos super carismáticos de GODAMN.
“BACKSTAGE” era queridinha dos fãs desde as prévias, e não é difícil entender por quê. Por fim, “TODAS AS LUZES” e “OS MELHORES” fecham o disco com uma declaração de vitória. “Somos os melhores”, canta Matuê — não como arrogância, mas como afirmação. Eles são, sim. Pelo menos nesse momento, com esse recorte, nessa cena específica que ele escolheu representar.
Tudo isso embalado por interlúdios divertidíssimos: as reclamações sobre a bagunça dos shows logo na primeira faixa, as crianças dizendo que Matuê é passado e não faz mais trap em “ÍCONE FASHION”, ou a ligação entre os NaNa em “NANANANA”.
Influências estranhas
Além de Aphex Twin, como já citado, é impossível ouvir XTRANHO sem pensar em outros projetos e álbuns que claramente orbitam sua concepção: MUSIC (2025), do Playboi Carti, e Birds In The Trap Sing McKnight (2016), do Travis Scott. Não apenas sonoramente (embora as batidas minimalistas e agressivas de Carti ecoem em várias faixas), mas visualmente. XTRANHO é um álbum visual que entende que trap não é só som — é estética, é moda, é comportamento.
Travis Scott há anos entendeu isso. Transformou álbuns em universos, em experiências imersivas onde cada detalhe conta. Matuê faz o mesmo aqui. O website interativo, o evento no Anhangabaú, o palco em formato de X, a direção de arte sombria — tudo conversa. É cinema, é desfile, é ritual.
E assim como Carti fez em MUSIC (ainda que de forma mais radical), Matuê usa o desconforto como linguagem. Só que onde Carti vai até o limite da ininteligibilidade, Matuê ainda mantém um pé no acessível. Para o bem e para o mal.
Mas Podia Ser Mais Estranho
E aí chegamos em um dos pontos principais: XTRANHO podia ser mais estranho. Se “FACAS E MACHADOS” tivesse ditado a direção sonora do álbum inteiro, estaríamos falando de um disco verdadeiramente disruptivo. Um Yeezus (2013) brasileiro — ainda que esse tinha outras ideias em mente. Um Atrocity Exhibition (2016) do trap. Mas não é. A maior parte das faixas, embora competentes, ainda flerta com o acessível. Ainda tem refrões. Ainda tem estrutura. Ainda quer que você dance.
E olha, não tem nada de errado nisso. Mas quando você promete estranheza, quando você diz que vai quebrar as regras, a expectativa é outra. É jogar tudo pela janela. É fazer o ouvinte se sentir genuinamente desconfortável. E XTRANHO, por mais que tente, ainda é confortável demais em vários momentos.
As produções são excelentes (Sapjer, Neckklace, BNYX), mas poderiam ser mais sujas, mais experimentais, mais agressivas, mais rock n’ roll. O disco flerta com a vanguarda, mas não se casa com ela. Namora o caos mas não o assume completamente.
Dito isso, seria injusto julgar XTRANHO apenas pelo que ele não é. Porque pelo que ele é — um manifesto do underground, uma plataforma coletiva, uma recusa ao óbvio — já é significativo.
Matuê não está tentando agradar. Está tentando provocar, e pensando assim, o álbum voa. E em 2025, num mercado que valoriza o algoritmo acima de tudo, isso já é um gesto político. Quando “MEU CEMITÉRIO” usa imagética satânica e grotesca, quando “PENSAMENTOS PERIGOSOS” questiona a indústria cultural, quando todo o disco se recusa a ter um hit fácil — isso importa.
O evento de lançamento no Anhangabaú, gratuito, para 10 mil pessoas, foi uma declaração: essa música é para quem está na rua. Para quem não tem grana pro ingresso VIP. Para o bando.
Se o futuro do gênero passa pela vanguarda — e XTRANHO aposta que sim —, então esse disco é um manifesto importante, um passo significativo. E às vezes, é isso que importa: não dar o salto completo, mas mostrar que o abismo existe e que vale a pena olhar para ele.
TRACKLIST: XTRANHO — Matuê
- “REI TUÊ”
- “TALKING ABOUT”
- “MEU CEMITÉRIO”
- “ÍCONE FASHION” (feat. kouth)
- “AUTOBAHN” (feat. Cashley)
- “NANANA” (feat. N.A.N.A.)
- “FACAS E MACHADOS” (feat. FAB GODAMN, okie)
- “ALTERADO” (feat. PHL Notunrboy)
- “PENSAMENTOS PERIGOSOS” (feat. LPT Zlatan)
- “XTRANHO” (feat. BRANDÃO85)
- “BACKSTAGE”
- “TODAS AS LUZES”
- “OS MELHORES”
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