ENTREVISTA RS

Miguel Góes: ‘Fazer música instrumental no Brasil? Tem que ter um parafusinho a menos’

Músico exorciza demônios em Pequenas Lembranças, seu primeiro disco solo, onde cada faixa é um filme que só existe na cabeça dele

Kadu Soares (@soareskaa)

Miguel Góes
Foto: @ceciliabuenops

Cena um, take um: cidade minúscula na Itália, Udine, fim de semana à noite. As ruas estão vazias. Um grupo de brasileiros jovens procura onde comer após chegar tarde num ônibus de turnê. Encontram uma viela estreita, quase um túnel, um bar minúsculo aberto. O jantar é pão com salaminho. Depois de algumas horas conversando, o bar fecha e os donos expulsam os clientes, mas deixam que terminem a cerveja do lado de fora. Uns 15 coroas conversando na rua. De repente, um deles levanta a mão: “Cala a boca! Cala a boca!”. Todo mundo se assusta. Até que entendem: ele quer cantar. Começa uma canção irlandesa, a voz bonita, a melodia hipnotizante. Ninguém se mexe. A única frase que todos conseguem memorizar é “Venham todos vocês sonhadores!”. Corta!

Cena dois, take um: viagem muito curta para fazer de avião, o ônibus de Gilberto Gil quebra no meio da Europa. O outro, onde estão os jovens, vai buscá-los. Gil entra no ônibus com todo mundo. Os meninos sobem, pegam violão, ficam tocando com ele por horas. Um deles, Miguel, de 17 anos, desce. “Não aguento mais música”, pensa. Senta-se ao lado de Caetano Veloso. Alguém coloca um computador na frente dos dois. Passam cinco horas vendo filmes: um documentário sobre neoliberalismo e um filme do Godard analisando outros filmes. Enquanto lá em cima o violão não para, embaixo Miguel e Caetano conversam sobre cinema. Corta!

Cena três, take um: Caetano e Gil no palco durante a turnê, enquanto os brasileiros jovens de outra banda acompanham de longe os dois maiores músicos da história do país. Doze shows ao longo da turnê europeia. Um show a cada 36 horas. Corta!

Agora imagina: qual seria a trilha sonora desse filme? Desse tanto de memórias, experiências, trocas, sentimentos.

Ela existe. Chama-se Pequenas Lembranças. É o primeiro disco solo de Miguel Góes, aquele mesmo que não aguentava mais música. Ele é músico, compositor e produtor e passou anos trabalhando para outros artistas até agora precisar, finalmente, exorcizar os próprios demônios. Aquelas cenas não são ficção, mas memórias reais. E cada faixa do disco foi concebida como trilha sonora para filmes que só existem na cabeça dele.

“Fiquei um tempo ajudando os outros a exorcizar seus demônios”, conta Miguel em entrevista à Rolling Stone Brasil. “Chegou uma hora que estava entalado. Tinha umas coisas que eu precisava jogar para fora e aí eu sou músico, fui para música.”

Jazz, MPB, cinema. Uma elegia dedicada à memória, à infância, ao sonho. Como escreve Antonio Puppin, amigo de Miguel, “um mundo feérico se revela, um mundo onírico, pueril, onde reside a possibilidade de ser-se tudo”. E tudo começa com aquela frase cantada por um senhor italiano numa viela escura: “Venham todos vocês sonhadores”.

Durante quase dez anos, Miguel foi integrante da Dônica — banda com Zé Ibarra, Lucas Nunes, André Almeida e Tom Veloso — que acompanhou Caetano Veloso e Gilberto Gil em turnê na Europa. Depois trabalhou com diversos artistas, sempre como músico de apoio, arranjador, produtor. Mas algo estava entalado.

“Sabia que alguma hora eu ia ter que fazer o meu trabalho, o meu projeto, tratar das minhas questões, abrir as discussões que eu quero discutir. Muito mais do que só trabalhar na obra dos outros.” Ele adora trabalhar na obra dos outros, quer continuar fazendo isso. “Mas tinha uma hora que eu precisava da minha visão ali.”

Não foi questão de ego. Foi necessidade existencial. “Foi a primeira vez que eu realmente senti um peso saindo de dentro de mim enquanto eu estava trabalhando. Eu não estava só ganhando dinheiro — muito pelo contrário, estava gastando dinheiro porque estava fazendo um disco ali.” Não tinha objetivo específico. Não tinha plano de carreira. “Era só: estava fazendo porque eu queria fazer. Não tinha nada mais para expressar, então só me restava expressar.”

Pequenas Lembranças é o resultado dessa urgência.

Então veio o jazz

Miguel não acordou um dia decidido a fazer um “disco de jazz”. Acordou decidido a fazer um disco. “Na verdade, eu percebi: tem um disco. Tem composições que formam uma estrutura coesa. E aí: como que eu vou apresentar elas? Como que vai ser a roupagem delas, a instrumentação?”

Foi aí que o jazz apareceu. Naturalmente. Ele tentou colocar letras, mas não funcionou. “A letra queria fugir da melodia, a melodia queria fugir da letra. Eu falei: ‘Não, é a melodia só, ela se sustenta’.” E o tipo de música instrumental que Miguel mais escuta é jazz. Naquela época, inclusive, ele estava entrando bastante no gênero.

Ajudou ter Marco Steinberg como produtor musical. “Um cara que cresceu no jazz, nas rodinhas de jazz aqui da zona sul, de ficar fazendo o show cinco vezes por semana.” O jazz veio como a roupagem perfeita.

Todas as composições foram feitas no violão. “Eu não canto bem, então era só violão mesmo. Eu estava com a melodia enquanto fazia harmonia nas cordas do violão.” Só de ser primordialmente violão de nylon já leva um pouco para MPB. Quando trouxeram o jazz e a orquestração, as referências de música de cinema vieram junto.

“Como a própria MPB não é nenhum gênero musical, né? É quase um movimento. Você tem discos do Caetano que são discos de rock, tem da Betânia que são de samba, e é tudo MPB.” É um guarda-chuva gigante. “O jazz entra de maneira tranquilíssima, a música de cinema também entra super tranquila. Não foi um desafio, foi bem tranquilo juntar essas questões.”

Fazer música instrumental jazzística no Brasil, aliás, exige certa dose de loucura. “Só de estar fazendo música no Brasil hoje em dia, você já tem algum tipo de sonho, você está acreditando ali. Você já é um pouco doido, de certa forma”, resume Miguel. “E numa música instrumental, então, você está apostando num mercado que é quase inexistente. Tem que ser um pouco sonhador, tem que ter um pouquinho de um parafusinho, talvez, um pouco a menos.” É esse parafusinho a menos que mantém o disco vivo, que justifica o ponto de exclamação em “Venham todos vocês sonhadores!”. “Eu acho que tem que sonhar. Não adianta, porque sem isso não vai restar nada.”

Amálgama de memórias

Pequenas Lembranças é exatamente isso: uma amálgama de tudo que Miguel viveu. “Muita coisa da infância, memórias que eu tenho com o meu avô e com o meu pai, em casa de serra. Natal, que é de onde é a família do meu pai.”

Tem memórias da Dônica. Tem a turnê com Caetano e Gil — aquela viagem que aparece nas cenas de abertura deste texto. “Essa viagem foi um antes e depois na minha vida. A cada 36 horas tinha um show dos dois maiores músicos da história do meu país, que eu, pelo menos, considero. O Caetano é a minha maior referência como artista, ponto. Independente de ser músico, de cinema, de qualquer coisa. É um cara que molda o jeito que eu penso.”

Tem também aquela noite no bar minúsculo de Udine, quando um senhor mandou todo mundo calar a boca e cantou uma canção irlandesa. Foi um momento hipnotizante, irracional, mágico. “A única frase que todo mundo lembrou foi ‘Come All You Dreamers’ [Venham todos vocês sonhadores]. Todo mundo passando os anos lembrando e cantando só essa frase.”

Essa frase virou título da única música com voz no disco: “Venham todos vocês sonhadores!” — com ponto de exclamação para deixar ainda mais exclamativa, mais urgente, mais maluca. “É para realmente não dizer que o disco é baixo astral.”

Miguel Goés
Foto: @ceciliabuenops

Outra canção chamativa é a faixa-título, que nasceu na mesma noite italiana. Ela foi composta com Tom Veloso (parte A e B), com Lucas Nunes e Zé Ibarra terminando outras partes.

Passaram os anos. Ensaiaram com a Dônica. Nunca colocaram letra. Quando Miguel foi fazer o disco, a música estava difícil de organizar dentro da linguagem jazzística. “Justamente porque ela foi feita para ser tocada com uma banda de rock.” Tentou botar piano fazendo a voz principal, sopro, corda. Nada funcionava.

“Aí uma hora eu pensei: ‘Eu vou chamar o moleque para cantarolar. Não vai botar letra nenhuma’. E aí deu certinho.” Chamou Deco, da formação antiga da Dônica, porque a música foi feita naquela época. Gravaram todos juntos. “É uma faixa mais alegre, chamei os meninos, ficou mais alegre ainda. A gente ficou rindo durante a sessão, tem umas risadas também, tem umas coisas meio maluquinhas.”

É uma destoada proposital. “Mas que acaba reforçando o conjunto.”

Inspirações cinematográficas

“As pessoas falam comigo: ‘Pô, parece que eu estou inventando um filme enquanto escuto'”, conta Miguel. “Porque realmente não é uma trilha específica. Eu não criei o filme. E não é igual The Dark Side of the Moon (1973) com O Mágico de Oz (1939)”. Mas há filmes que o influenciaram profundamente.

A trilha de Carlos Lyra para O Padre e a Moça (1966) informou a instrumentação e os arranjos de corda. A trilha de Trama Fantasma (2017) (Paul Thomas Anderson / Johnny Greenwood) trouxe uma estética de época gravada com som contemporâneo. “Essa estética eu usei muito de referência, tanto para instrumentação e orquestração quanto para mixagem.”

Mas o filme que melhor resume o disco é O Espelho (1975), de Tarkovsky. “Um filme bastante abstrato, bastante autobiográfico e biográfico de certa forma. É um filme sobre uma pessoa sem mostrar aquela pessoa, a partir das referências dela, das sensações dela, das memórias dela.” O disco é um pouco isso.

A instrumentação veio toda pensada cinematograficamente. Miguel chamou o arranjador Antonio Puppin — que depois escreveu um belíssimo texto de apresentação do disco — e mostrou as referências. “Veio muita coisa de música de cinema.”

Outras influências: Nick Drake nos arranjos de corda, Milton Nascimento, Chico Buarque. No jazz: Bill Evans, Miles Davis, Thelonious Monk. Na última faixa, que tem elementos mais eletrônicos, Anna von Hausswolff e seu trabalho com sintetizador.

De músico de banda a diretor de cinema

Ainda seguindo a ideia de cinema, Miguel conta que a transição da Dônica para o projeto solo não foi fácil. Ele sentiu falta dos meninos. “Às vezes eu estava de saco cheio, só queria falar: ‘Tom, vem aqui, arranja isso para mim. Lucas, arranja isso aqui também, pelo amor de Deus’.”

Numa banda, você pega o banco do carona e vai dando opiniões. “Tem uma hora que você fica ali olhando os meninos trabalharem e eles são músicos geniais. Eu acho muito mais geniais do que eu, inclusive.” Sentiu falta. Mas foi o desafio necessário.

Foi então que Miguel montou seu próprio time. Sabia que tinha a visão para o disco, mas que sozinho não chegaria lá. “Eu não ia conseguir escrever todos esses arranjos sozinho.”

E aí veio a epifania. “Às vezes eu falo que me senti como um diretor num set de filmagem. Você tem a sua visão, você quer concretizá-la, mas você precisa de uma equipe para isso. Você sabe como você quer que essa cena seja iluminada, mas você não sabe exatamente onde você tem que botar o refletor, onde tem que botar o rebatedor. Você precisa de um fotógrafo para concretizar a sua visão”. Na Dônica, esse processo já era coletivo. Nesse disco, Miguel teve que montar o grupo.

A gravação sumiu

Por fim, tem uma história que resume tudo.

Quando foram gravar as bases do disco, passaram três dias fazendo takes. Até que tudo sumiu. O HD pifou. Só sobraram os últimos oito minutos — os que realmente entraram. “Ninguém fica puto. O cara ficou pedindo desculpa três dias. Eu falei: ‘Está tudo certo, irmão, a melhor parte a gente salvou’.”

Os takes descartados sumiram, mas o que importava estava lá. Miguel e o time ficaram se olhando: isso está acontecendo mesmo? “Não existe coincidência.” O arquivo sumiu e não foi achado até hoje.

Teve um piano também que sumiu no meio do processo, mas esse acharam no final. O take de bateria não. “Deus tirou do HD e falou: ‘Essa aqui, ó. Vocês vão usar esse take, não vão escolher. É esse que eu estou dando para vocês’.”

É uma história que poderia estar no disco. Aliás, está — de certa forma. Porque Pequenas Lembranças é sobre isso: aceitar o que a memória escolhe guardar, as coisas que somem e as que ficam, Deus (ou o acaso, ou a vida) decidindo o que merece permanecer.

Como escreve Antonio Puppin: “O sonhador, expelido por fim do mundo imaginário, retorna à fastidiosa realidade, não sem apelar, embora inutilmente, outra vez ao sonho. No entanto, é preciso persistir e, a todo custo, sonhar.”

Pequenas Lembranças é uma elegia à memória, à infância, ao sonho. Canta melancolicamente a tudo o que, passado, permite o encontro com a pureza. É a trilha sonora de um filme que não existe, mas que todo mundo já viveu de alguma forma. É o que sobra quando Deus apaga o HD e diz: “Isso aqui é o que importa.”

Miguel Góes exorcizou seus demônios. O resultado é cinema para os ouvidos.

Venham todos vocês sonhadores!

O filme está pronto. A trilha também. E você nem precisa de imagens para vê-lo.

Kadu Soares é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, possui um perfil no TikTok e um blog no Substack, onde faz reviews de projetos musicais.
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