CURIOSIDADE

A grande mentira de Stranger Things: Por que Vecna não nasceu mau

Documentos canônicos da peça ‘The First Shadow’ revelam como uma infecção alienígena e um amor perdido moldaram o maior vilão da série

Giulia Cardoso (@agiuliacardoso)

A grande mentira de Stranger Things: Por que Vecna não nasceu mau
A grande mentira de Stranger Things: Por que Vecna não nasceu mau - Crédito: Reprodução

Durante anos, fomos levados a acreditar que o horror em Hawkins era um acidente da Guerra Fria. Uma menina com poderes, um tanque de privação sensorial e um erro de cálculo em 1983 que abriu uma porta que não deveria ter sido aberta. Acreditávamos que o “Mundo Invertido” era apenas um lugar ruim que encontramos. Estávamos errados.

A chegada da peça teatral canônica Stranger Things: The First Shadow não serve apenas como um complemento para os fãs mais dedicados; ela recontextualiza fundamentalmente toda a espinha dorsal da série. Ao cruzar as informações da quarta temporada com as revelações do palco, uma nova verdade emerge: o mal não é apenas algo que veio para Hawkins. O mal foi fabricado lá. Para entender para onde vamos na quinta e última temporada, precisamos parar de olhar para Eleven e começar a olhar para 1943.

1943: O marco zero e o legado de sangue

Se você acha que a história começa no Laboratório de Hawkins, você está olhando para o capítulo errado. A verdadeira gênese do horror retrocede ao auge da Segunda Guerra Mundial, com um evento histórico que mistura lenda urbana e ficção científica: o Experimento Filadélfia.

Dentro do cânone da série, a operação — codinome “Projeto Rainbow” — tinha o objetivo tático de usar campos eletromagnéticos para tornar o navio USS Eldridge invisível ao radar. O experimento funcionou, mas a um custo terrível. O navio não ficou apenas invisível; ele foi transportado fisicamente para fora da nossa realidade, entrando momentaneamente na Dimensão X.

Este é o primeiro ponto de distinção crucial que a nova mitologia estabelece: a Dimensão X não é o Mundo Invertido. É um reino antigo, intocado pela humanidade, habitado por predadores e dominado por tempestades de partículas sencientes.

Quando o USS Eldridge retornou, a maioria da tripulação estava morta ou fundida ao casco do navio. Mas houve um sobrevivente significativo: o capitão da embarcação. Este homem voltou biologicamente alterado, seu sangue transformado pela exposição à atmosfera daquela outra dimensão. Esse capitão não era um estranho qualquer. Ele era o pai do Dr. Martin Brenner.

Essa revelação muda tudo o que sabemos sobre o “Papa”. A obsessão de Brenner em Hawkins nunca foi puramente patriótica ou científica no sentido abstrato. Era pessoal. Ele passou a vida tentando replicar o incidente que consumiu seu pai, buscando acessar e controlar a força que veio “do outro lado”. As crianças numeradas do laboratório, incluindo Eleven, não são apenas armas contra os russos; são tentativas desesperadas de um filho de entender o legado envenenado de seu pai.

Henry Creel e a infecção de nevada

Se a história do pai de Brenner estabelece o cenário, a infância de Henry Creel preenche as lacunas com uma tragédia humana devastadora. Durante a quarta temporada, ouvimos a versão de Vecna: a narrativa de um garoto que nasceu “errado”, um sociopata inato que via a humanidade como uma praga e as aranhas como a ordem divina.

Mas The First Shadow nos obriga a questionar a confiabilidade desse narrador. Henry não nasceu um monstro; ele foi feito um.Na década de 1950, a família Creel mudou-se para Nevada, para uma região próxima de onde o governo continuava os estudos do Projeto Rainbow.

Foi lá, e não em Hawkins, que o contato inicial ocorreu. O jovem Henry, uma criança isolada e sensível, encontrou uma caverna onde um cientista desertor havia escondido tecnologia roubada e recipientes com “material exótico” da Dimensão X.

Ao interagir com esse material, Henry não ganhou superpoderes como quem ganha na loteria genética. Ele foi infectado. O cânone expandido sugere que ele foi “esfolado” (flayed) pelas partículas do Devorador de Mentes — a mesma entidade de fumaça e sombra que aterrorizaria Hawkins décadas depois.

A obsessão de Henry por aranhas, especificamente as Viúvas Negras, ganha uma nova camada sinistra: não foi uma admiração infantil que moldou o monstro, mas talvez a mente de uma criança tentando dar forma a uma entidade alienígena incompreensível que invadia sua consciência.

Patty Newby: A luz que a série esqueceu

A peça teatral introduz a peça mais dolorosa deste quebra-cabeça: Patty Newby. Irmã adotiva de Bob Newby (sim, o nosso querido “Bob Super-Herói” da segunda temporada), Patty era a contraparte de Henry. Enquanto ele se afundava na escuridão da Dimensão X, ela oferecia uma âncora na realidade. Patty e Henry compartilharam uma conexão profunda, um romance juvenil marcado pelo reconhecimento mútuo de serem “forasteiros” em uma cidade que valorizava a normalidade acima de tudo.

A existência de Patty reescreve o caráter de Henry. Ele demonstrou empatia, vulnerabilidade e até heroísmo ao tentar usar seus poderes — que a essa altura já estavam saindo de controle — para encontrar sua mãe biológica. A tragédia de 1959 não foi um massacre calculado por um psicopata entediado; foi o colapso de um menino lutando contra uma possessão demoníaca.

Quando Henry matou sua mãe e irmã, e subsequentemente mutilou seu pai, Victor Creel, ele já não era mais o piloto de seu próprio corpo. A “Sombra” exigia violência. O massacre na Casa Creel e o confronto final na escola, onde Patty foi ferida, foram os últimos suspiros de Henry Creel antes de ser totalmente consumido e sedado por Brenner, acordando como o Prisioneiro 001.

O arquiteto das dimensões

Essa distinção temporal é vital para os fãs que buscam precisão técnica. Henry Creel foi banido para a Dimensão X em 1979, um reino de céus alaranjados e tempestades perpétuas. Ele passou anos lá, explorando, sobrevivendo e dominando as criaturas locais.

O Mundo Invertido que conhecemos — a cópia cinzenta e decadente de Hawkins — só nasceu em 6 de novembro de 1983. Foi o contato psíquico de Eleven com o Demogorgon que agiu como uma câmera fotográfica cósmica, capturando uma “imagem” de Hawkins naquele exato momento e fundindo-a com a realidade sombria da Dimensão X.

Isso explica o mistério que perdurou por quatro temporadas: por que o Mundo Invertido está congelado no tempo? Porque ele não é um mundo paralelo evolutivo; é um cenário estático, um palco construído (acidentalmente ou não) para a invasão que Vecna planejaria meticulosamente.

A chave chamada Patty Newby

Com todas as peças no tabuleiro, a Quinta Temporada deixa de ser apenas sobre destruir um monstro superpoderoso e torna-se uma missão de resgate — ou de misericórdia. Se a peça teatral provou que Henry Creel foi, em algum momento, capaz de amar e de ser altruísta, então a estratégia de Eleven para vencer pode não residir na força bruta, mas na memória.

Patty Newby sobreviveu aos eventos de 1959. No cânone, ela é a única pessoa viva que conheceu o homem por trás do monstro, a única que viu humanidade onde o resto do mundo via apenas perigo. Isso levanta a questão crítica para os episódios finais: Patty retornará?

Há teorias robustas circulando nos bastidores. Alguns sugerem que ela pode aparecer como uma idosa, confrontando seu antigo amor nos dias atuais. Outros teorizam que Eleven, ao invadir a mente de Vecna, poderá usar as memórias de Patty como uma arma, não para feri-lo, mas para “acordar” o menino Henry da transe da Sombra, separando o hospedeiro do parasita.

Se a série seguir a lógica emocional estabelecida em The First Shadow, a batalha final não será vencida com bolas de fogo ou telecinesia, mas com a restauração daquilo que Henry perdeu há décadas: a conexão humana.

A integração dos eventos de The First Shadow com a narrativa da Netflix eleva Stranger Things de uma aventura infanto-juvenil para uma tragédia geracional. Vecna não é um vilão de desenho animado que quer dominar o mundo “porque sim”. Ele é o produto de um ciclo de abuso que começou com a arrogância militar de 1943, passou pela negligência parental dos anos 50 e foi cristalizado pela crueldade científica de Brenner.

Ele construiu o Mundo Invertido como um santuário para sua dor, um lugar onde o tempo parou no momento exato em que ele assumiu o controle. Para salvar Hawkins — e o mundo — a missão final de Eleven, Mike, Will e companhia será, inevitavelmente, fazer o relógio voltar a andar.

Resta saber se, ao final das badaladas, o que restará de Henry Creel será um monstro a ser executado ou uma vítima a ser finalmente libertada.

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Jornalista em formação pela Universidade Cruzeiro do Sul, em São Paulo, Giulia Cardoso começou em 2020 como voluntária em portais de cinema. Já foi estagiária na Perifacon e agora trabalha no núcleo de cinema da Editora Perfil, que inclui CineBuzz, Rolling Stone Brasil e Contigo.
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