O jornalista Lúcio Flávio precisa sobreviver às ameaças dos políticos e empresários mais poderosos do norte do país
André Vieira Publicado em 01/02/2007, às 00h00 - Atualizado em 20/02/2013, às 14h57
Como combinado, às 7 da manhã Lúcio Flávio Pinto estava à minha espera na portaria do hotel, no centro de Belém. Quem escolheu a hora foi ele, não imaginava que seria tão cedo, ainda mais por ser um domingo. É a primeira vez que o encontro. Antes só havíamos falado três vezes, por telefone. Cumprimentamo-nos e saímos em busca de um lugar para tomar café da manhã.
A primeira vez que ouvi falar em Lúcio Flávio foi por volta das 4 da madrugada do dia 22 de janeiro de 2005. Estava no aeroporto de Marabá, localizado na borda do que hoje conhecemos como o "buraco negro da Amazônia". Para ajudar a esquecer do tempo e do calor infernal, comprei uma edição do jornal Diário do Pará, o segundo mais importante do segundo maior estado do Brasil. E lá estavam duas fotos de Lúcio Flávio estampadas no alto da primeira página, logo abaixo da manchete de página inteira: "O jornalista Lúcio Flávio Pinto foi agredido fisicamente e ameaçado de morte pelo diretor do jornal O Liberal, Ronaldo Maiorana, no Restô do Parque. Seguranças do empresário, policiais militares, também participaram do espancamento".
Jornalista levar surra e ser ameaçado de morte não é coisa muito rara em nosso país, sobretudo no Pará, estado campeão de vários rankings nacionais não muito edificantes - maior número de mortes de lideranças políticas, maior número de casos de trabalho escravo, maior centro brasileiro de crimes pela internet, maior número de mortes por conflito no campo, um dos piores índices de violência policial do país e ainda com um problema mais que sério de prostituição infantil. Mas o fato de os socos e as ameaças terem partido de um dos donos da maior empresa de comunicação do norte do país, o Grupo Liberal, controlador de O Liberal, o maior jornal paraense, e de uma afiliada da TV Globo, pareceu algo inusitado. Para levar pessoa tão poderosa a partir para a ignorância na frente da fina flor da sociedade belenense (o Restô do Parque é um dos points locais), algo muito sério o jornalista deveria ter feito, imaginei.
Lúcio Flávio Pinto tem 57 anos e há 20 é dono, editor e único repórter de um pequeno tablóide quinzenal chamado Jornal Pessoal, com tiragem de modestos 2 mil exemplares. O jornal não é bonito. Os textos de suas 12 páginas são quase sempre pesados, a diagramação é ultrapassada e quase não há fotos ou ilustrações. Os erros de digitação e paginação são freqüentes. O jornal é vendido somente em algumas bancas de Belém, a maioria no centro, e custa salgados R$ 3. Como o editor de tal jornal pode ter irritado tanto um dos Maiorana?
Nosso primeiro contato não deu pistas. Lúcio Flávio, além de ser pontualíssimo, é uma figura extremamente gentil e educada. Camisa pólo listada impecavelmente passada para dentro da calça cáqui, óculos de pesados aros redondos, pasta de couro debaixo do braço, cabelo cuidadosamente penteado, parece perfeitamente inofensivo. Saímos do hotel conversando amenidades, para quebrar o gelo. Belém ainda mantém um pouco do charme do início do século passado, quando era chamada de Paris da América, e a riqueza da borracha podia ser vista em avenidas arborizadas ladeadas por palacetes e sofisticados salões. Apesar de a maioria do casario histórico estar em petição de miséria, a cidade mantém uma certa sofisticação, com algumas boas livrarias, uma cena intelectual ativa e uma boemia aguerrida.
Meu interlocutor parece conhecer cada detalhe de Belém e mostrou ter desfrutado imensamente desse universo intelectual em seus anos de formação. "Quantas vezes não amanheci aqui no Café do Parque (tradicional bar da Praça da República, a principal do centro de Belém, hoje área de gringos e prostitutas atrás deles). Bebíamos e bebíamos, mas para discutir alta literatura", recorda. Lúcio Flávio é um personagem raro nos dias de hoje, um verdadeiro iluminista, um devorador de livros capaz de conversar com autoridade sobre qualquer assunto. E, sem pedantismo ou intenção, fazer nos sentirmos completamente ignorantes em todos eles.
Sentamos para tomar nosso desjejum numa das padarias mais tradicionais do centro da cidade. O movimento é intenso e, por estarmos sentados perto do balcão, não passam cinco minutos sem que meu interlocutor se levante para cumprimentar e trocar algumas palavras com alguns dos compradores de pão daquela manhã. A gentileza de lado a lado é a regra, e não ouvi Lúcio Flávio proferir um palavrão sequer. Difícil imaginar alguém mais simpático. É quando os interlocutores se afastam que começo a entender melhor com quem estou dividindo a mesa. "Esse eu denunciei no jornal por uma sentença que ele assinou", me diz depois de cumprimentar um juiz federal. A maioria dos encontros resulta em explicação semelhante. "Sou persona non grata aqui. Se o dono me vê nesta mesa, me mata. Denunciei ele e o filho por envolvimento no assassinato de Bruno Meira. Eles também estavam envolvidos com tráfico de drogas." Decido pedir a conta.
O caso Meira foi o Watergate do Jornal Pessoal. Bruno, 35 anos, era filho de um proeminente advogado de uma das famílias mais tradicionais e bem relacionadas da cidade, também Secretário de Interior e Justiça do Governo do Estado. Num belo dia do final de 1991, seu carro foi encontrado à beira de uma estrada de acesso a Belém com ele morto ao volante com uma bala na cabeça. A imprensa local cobriu o caso como apenas mais uma ocorrência policial e depois esqueceu o assunto.
Bruno, quando mais jovem, já havia sido associado a um nebuloso escândalo envolvendo outros elementos suspeitos da elite local, caso que, como costuma acontecer quando essa categoria demográfica está envolvida, não deu em nada. O fato de o suposto assassinato ser praticamente ignorado pelos colegas da imprensa paraense intrigou Lúcio Flávio, que começou suas próprias investigações, facilitadas pelo fato de ser amigo pessoal do delegado encarregado do caso. A primeira edição do Jornal Pessoal após o crime chegou às bancas com o impacto de um desabamento de túnel de metrô. A matéria de capa, que ocupava quase a edição toda, afirmava que o rapaz usava sua empresa de câmbio e turismo na cidade para lavar dinheiro do tráfico internacional de drogas. Esperto como o brasileiro gosta de se achar, Bruno teria começado a passar a perna em seus sócios na empreitada, entre eles seu cunhado e filho do dono da padaria onde Lúcio Flávio e eu comemos nossos sanduíches de ciabatta, acompanhados de vários cafés expresso. A edição de 2 mil exemplares foi disputada quase a tapa e logo se esgotou. Centenas de fac-símiles passaram a circular de mão em mão pela cidade. "Só fiquei com um exemplar do jornal", conta.
Por quatro solitários meses as edições quinzenais do JP traziam novidades comprometedoras sobre o caso, envolvendo um número cada vez maior de membros das altas esferas da sociedade paraense, vários deles parte do círculo de relacionamento do jornalista. A cobertura escancarou a crescente importância da Amazônia brasileira como rota do tráfico internacional de drogas e o envolvimento das elites locais com o negócio. Temendo mexer em tamanho vespeiro completamente sozinho, em várias ocasiões Lúcio Flávio, que costuma classificar seu estado natal de uma "Sicília verde (cada vez menos verde)", tentou dividir as descobertas com colegas em outras redações, mas era sempre recebido com indiferença. "Não queria dar o furo, queria era que saísse na grande imprensa. Em uma coletiva que o delegado deu, fiquei até o final sem fazer uma pergunta. Quando acabou, meus colegas questionaram meu silêncio. Eu disse: 'É agora que vai começar minha apuração'. Ia me reunir sozinho com o delegado para conversar. Os colegas insistiram em ir junto, mas argumentei que não existia furo coletivo. Propus um acordo: deixaria que todos participassem com a condição de que publicassem no dia seguinte tudo o que ouvissem. Não ficou nenhum."
Se para a plebe a cobertura causou rebuliço e marcou a época de maior popularidade do Jornal Pessoal, nas rodas mais aristocráticas da Georgetown amazônica, onde o jornalista tinha boa circulação - ele mantinha relações cordiais com vários Meira, inclusive o pai de Bruno -, a violação do pacto de silêncio por parte de Lúcio Flávio causou tremendo mal-estar. Os salões foram se fechando para ele, alguns amigos ficaram cada vez mais distantes e conhecidos passaram a evitá-lo como se estivesse possuído pela peste. "Foi um dos momentos mais difíceis da minha vida. Todo mundo era do meu círculo de relacionamento. Eu olhava para o Jornal Pessoal e pensava: 'Sou maluco, estou me condenando à morte!'."
O silêncio do resto da imprensa só foi quebrado quando, mais de 120 dias depois do crime, a viúva revelou ter encontrado em uma das roupas de Bruno um bilhete em que ele manifestava sua intenção de fazer um desembarque prematuro desta vida. O fato era relatado nos três principais jornais da capital paraense em textos exatamente idênticos, coincidentes até nas vírgulas mal colocadas. Bastou ao Jornal Pessoal em sua edição seguinte expor o laudo da perícia para a versão do suicídio ser completamente desmoralizada. "Seria um caso único na história", diz Lúcio Flávio. "O Bruno, que era destro, foi atingido do lado esquerdo da cabeça por uma bala disparada de uma distância de aproximadamente 1,5 metro, enquanto dirigia um carro a 90 quilômetros por hora." Dois meses depois a Polícia Federal deu ainda mais credibilidade às acusações do jornalista ao apreender um carregamento de 1 tonelada de cocaína numa cidade próxima a Belém, na época a maior apreensão já feita em território nacional, reforçando a ligação do estado com o tráfico internacional. O assassinato de Bruno, no entanto, permanece um crime insolúvel até hoje.
Lúcio Flávio vem de uma família tradicional na região de Santarém, hoje terceira maior cidade do Pará, às margens do Tapajós, um dos rios mais bonitos da Amazônia. Seu pai era líder do histórico PTB na região e Getúlio Vargas teria sido padrinho de batismo de seu irmão caso não tivesse se suicidado antes que sua agenda permitisse marcar a data do batizado. "Minha primeira memória de um fato político foi o suicídio de Getúlio. Meu pai foi para o enterro em São Borja (RS) e voltou com um disquinho da carta-testamento. Decorei inteira. Papai me colocava para recitá-la, mas eu me entusiasmava e queria era discursar."
Em 1966, na primeira eleição após o golpe militar de 1964, o patriarca dos Pinto se elegeu prefeito de Santarém pelo recém-fundado MDB, um dos dois únicos candidatos eleitos no estado pelo partido de oposição ao regime militar, mas acabou cassado pouco depois e a cidade sendo alvo de intervenção federal. O sonho do velho Pinto era que o filho mais velho seguisse seus passos na política, mas nessa altura o jornalismo já o havia contaminado. O primeiro emprego foi aos 16 anos no jornal A Província do Pará, parte da cadeia Diários Associados de Assis Chateubriand, mas desde os 14 o menino precoce, que se alfabetizou lendo dicionários e que aos 6 anos já lia seu primeiro livro "de adulto" (História da Revolução Francesa, de François Miguet), já fazia seu próprio jornal mimeografado, O Social, que depois do golpe militar passaria a se chamar O Combate. "O Social era um nome muito neutro. Eu imprimia 500 exemplares do jornal no mimeógrafo do curso de letras da Universidade Federal do Pará. Seu Alonso, um funcionário, me ajudava. No primeiro ou segundo número já ameaçou dar processo. Chamei uma colega de gorda e o pai dela não gostou.
Depois de uma rápida passagem pelo Rio de Janeiro para realizar o sonho de trabalhar no lendário Correio da Manhã, em 1969, Lúcio Flávio trocou Belém por São Paulo para se colocar no centro dos acontecimentos pós AI-5. Arrumou um emprego no Diário de São Paulo, onde ficou quatro meses sem receber salário, e, nas horas vagas, estudava sociologia na USP, onde foi aluno de Fernando Henrique Cardoso. "Era excelente professor, mas era um boneco, devia ficar uma hora se arrumando para dar aula."
Em 1971 foi convidado para participar da edição especial que a revista Realidade, que então disputava com O Cruzeiro o posto de revista mais importante do Brasil, preparava sobre a Amazônia, a primeira grande reportagem que a imprensa nacional dedicou à região, que até então não passava de um grande branco nos mapas do país. "A revista foi um marco, algo nunca antes visto por aqui", lembra Lúcio Flávio.
Foram 300 páginas ocupadas por textos e fotos dos melhores jornalistas e fotógrafos da época. Não se economizou dinheiro em sua produção e mais de 500 mil exemplares foram vendidos. Pela primeira vez o Brasil era apresentado ao Éden tropical que cobria boa parte do norte do país, com flora luxuriante, fauna exuberante e povos exóticos. O trabalho na edição serviu a Lúcio Flávio como uma pós-graduação sobre a região, que para ele até então era apenas uma fonte de agradáveis memórias de sua infância de bicho solto às margens do Tapajós.
Só que a visão da revista ecoava a percepção que os militares e uma boa parte do empresariado paulista (e por conseqüência nacional) tinham da região. Aquele Éden era uma anomalia que precisava ser conquistada e desenvolvida para o bem do Brasil, e o começo dessa conquista seria feito pela pata do boi. "Me dei conta de que a Amazônia ia ser liquidada. São Paulo ia fazer o mesmo que os bandeirantes fizeram", se recorda. Essa constatação lhe permitiu encontrar sua grande vocação, a de cronista e principal denunciador desse processo. "Transformei aquilo em minha razão de ser."
A participação na edição histórica também lhe abriu portas profissionais. O Estado de São Paulo o convidou para trabalhar como coordenador nacional de reportagem e em 1974 o jornal lhe daria a oportunidade de seus sonhos: voltar para Belém para coordenar a primeira sucursal regional do jornal. O desenvolvimento da Amazônia virara prioridade nacional e a família Mesquita, proprietária do Grupo Estado, queria que seu jornal se destacasse na cobertura da região. "A idéia era acabar com a cobertura exótica. Nada de cobras gigantes ou onças nas ruas", conta Lúcio Flávio.
Os grandes projetos na região e seu impacto passaram a ser o principal foco de sua cobertura, o que levaria as assessorias de imprensa das empresas responsáveis à loucura. Em alguns desses empreendimentos, como o fitzcarraldiano Jarí, um projeto do norte-americano Daniel Ludwig, que trouxe navegando do Japão, numa viagem de 87 dias ao redor do mundo, duas fábricas flutuantes de celulose para produzir papel na calha do rio Jarí, entre o Pará e o Amapá, chegou a ser proibido de colocar os pés por ordem da direção. Minucioso e curioso, o jornalista mergulhava nos detalhes técnicos dos projetos para poder contestá-los. Rebater suas acusações não era fácil. Por ocasião da construção da hidrelétrica de Tucuruí, a primeira a ser construída na Amazônia e até hoje cercada de polêmicas, aproveitou o convite de uma universidade dos Estados Unidos para um sabático de seis meses e visitou oito das principais hidrelétricas do país, conversando longamente com seus projetistas e administradores. "Voltei um especialista", recorda sem falsa modéstia. "Li tudo que havia sobre o assunto. Passei a escrever todos os dias sobre Tucuruí."
A vida nunca mais foi a mesma para a companhia Eletronorte, estatal responsável pelo empreendimento. Vários dos muitos problemas que marcariam a construção e o funcionamento da enorme usina foram previstos nas matérias do jornalista. Sobrecarregada com o trabalho de repercutir todas as reportagens de Lúcio Flávio, a empresa mandou uma comissão para pedir que ao menos se limitasse a escrever sobre a obra duas ou três vezes por semana, para que pudessem ter tempo suficiente para responder às reportagens. Em troca do acordo conseguiu que a empresa lhe prometesse avisar quando finalmente fechasse as comportas da barragem para começar a encher o lago, o que mudaria para sempre o rio Tocantins, um dos mais importantes da bacia amazônica. O acordo não foi cumprido, mas o jornalista acabou sabendo mesmo assim. "Fretei um avião e fui para Tucuruí. Como o aeroporto era dentro da usina, o piloto teve que dizer quem transportava antes de pousar. Mandaram então um engenheiro me aguardar para me acompanhar. Desci do avião puto. Eu estava em transe. Quando vi aquilo, comecei a chorar compulsivamente. Veio em mim o caboclo da beira do Tapajós, que nadou no rio antes de ter conhecimento do mundo. É o meu drama, a minha história. A região está sendo crucificada."
O bombardeio não vinha só nas páginas do Estadão. Aproveitando a grande quantidade de material que chegava às suas mãos no cargo de coordenador das pautas do jornal paulista, e de seu hábito de ler de cabo a rabo quantos Diários Oficiais chegassem às suas mãos, Lúcio Flávio começou a mandar para seu ex-empregador em Belém, "A Província do Pará", uma coluna em que fazia um apanhado crítico do que estava se passando no país, em plenos anos de chumbo, a qual chamou de Jornal Pessoal. Quando o editor do A Província foi contratado pelo concorrente O Liberal, o principal jornal do estado, a coluna foi junto, transformando Lúcio Flávio, aos 24 anos, num dos jornalistas mais respeitados do Pará.
Ao voltar para Belém, Lúcio Flávio passou a dividir suas reportagens pela região entre o Estadão e o Liberal, com os dois rachando os custos de mantê-lo boa parte do tempo rodando pelas péssimas estradas de uma Amazônia em formação. "Até 1989 não teve um evento de importância para a região que eu não tenha testemunhado. Meus cadernos de reportagem são a história da Amazônia", se orgulha.
O dono de O Liberal, Rômulo Maiorana, era uma espécie de Cidadão Kane do Pará, famoso por seu temperamento explosivo. Além de administrar seu império, escrevia uma coluna social no jornal e adorava fazer investidas como repórter. Seu sonho era que um dos sete filhos lhe herdasse o gosto pelo jornalismo, mas nenhum se interessou pela profissão.
A cobertura de Lúcio Flávio deu prestígio ao seu jornal, e o magnata começou a ver no jornalista o herdeiro que não teve. "Ele me tratava como um filho, me fazia inúmeras confidências", recorda.
Apesar dos vários compromissos de Maiorana com os diferentes grupos políticos e econômicos que dominavam o estado, Lúcio Flávio tinha carta branca para bater em quem bem entendesse. "Uma vez, depois de uma briga por causa de uma reportagem, ele me disse: 'Tu és o meu lado bom, deixa o meu lado ruim comigo'."
Jader Barbalho, que chegou ao governo do Pará com a bênção de O Liberal, foi um dos que mais sofreram nas mãos do jornalista, que foi seu colega no segundo grau e um de seus cabos eleitorais na primeira eleição que disputou, para presidente do grêmio estudantil do Colégio Estadual Paes de Carvalho. "Boa parte da imagem negativa do Jader vem das porradas do Lúcio", me garante um amigo do jornalista que trabalha no Diário do Pará, de propriedade de Barbalho.
Eleito deputado federal pelo PMDB em 2006, Jader é uma espécie de Paulo Maluf paraense, mas com muito mais habilidade política, eternamente perseguido por inúmeras denúncias de corrupção, mas adorado por uma parte significativa da população mais pobre do estado. Governador do Pará por duas vezes, é um dos políticos mais poderosos e ricos do norte do país e tem sob seu controle postos-chave da administração federal na região. Não há grande escândalo ao norte do Mato Grosso em que seu nome não esteja envolvido. O apoio e o know-how político de Barbalho foram fundamentais para o sucesso da campanha de reeleição de Lula no norte do país.
Em 1984, em meio à cobertura de um desses escândalos, o diretor de redação de O Liberal foi chamado ao telefone. Uma voz anônima queria lhe ditar a manchete do dia seguinte: "Lúcio Flávio Pinto foi assassinado". Receber ameaças era rotina quase diária para o jornalista, mas essa alarmou até mesmo Rômulo Maiorana, que mandou dois seguranças (recusados pelo ameaçado) para defenderem seu protegido das ameaças que supostamente partiam de um de seus aliados políticos. Lúcio Flávio ligou para o assessor de imprensa de Jader, então governador, e lhe disse que havia escrito uma carta em que culpava Jader Barbalho por tudo o que eventualmente lhe acontecesse. A carta estava guardada no cofre de Júlio de Mesquita Neto, um dos donos do Estado de São Paulo, o outro patrão do jornalista, e seria tornada pública no dia seguinte. Dez minutos depois o governador pessoalmente ligou para ele, dizendo que tinha Lúcio Flávio como amigo e que jamais faria uma coisa dessas. "Eu sei que tu não farias, mas não diria o mesmo de quem está do teu lado", respondeu o jornalista, que hoje conta: "Jader parou um pouco, pensou e disse: 'Me dê 24 horas que vou me informar e se for verdade vou tomar providências para impedir isso'".
Em córneres opostos do ringue da vida paraense, a relação entre os dois ex-colegas de escola sempre foi respeitosa e cordial. "Gosto do Jader, nunca me agrediu", afirma o editor do Jornal Pessoal. "É um talento desperdiçado. Está sempre um lance à frente do político comum. É um cara incrível. O povo adora ele, a elite odeia - não por ser ladrão, mas por não ser elite. É um Robin Hood deturpado. Só distribui trocados. Se tivesse grandeza, seria um dos grandes líderes do Pará."
Ao assumir seu primeiro mandato, Jader chegou a oferecer a Lúcio Flávio o cargo que ele escolhesse no governo. "Ele me disse: 'Tu vais ser no meu governo o que tu quiseres'. Respondi: 'Jader, vou continuar jornalista e se tu errares vou sentar o pau'."
Passadas as 24 horas, Jader Barbalho ligou. "Ele disse: 'Lúcio, é verdade o que me contaste, eu comprovei, mas já tomei as providências devidas. Você pode ficar tranqüilo que não vai te acontecer nada'", conta o ameaçado. Segundo as apurações do jornalista, o governador reuniu todo o seu aparato de segurança e avisou: "Quem fizer qualquer coisa contra ele, eu corto o saco!" Lúcio Flávio poderia voltar a dormir em paz.
Se a relação com seu maior alvo sempre foi civilizada, o mesmo não se pode dizer com o grupo que sempre o abrigou. Rômulo Maiorana morreu de câncer em 1986. Pouco antes, Lúcio Flávio tinha rompido com o ex-chefe por ter sido censurado em uma de suas matérias e pedido demissão. Apesar do rompimento, o jornalista sofreu muito com a perda de seu "pai" no jornalismo e continuou colaborando eventualmente com O Liberal. Em 1987, mais um caso que ninguém em Belém queria ver elucidado atravessou seu caminho, o assassinato do ex-deputado estadual e advogado de posseiros no violento sul do estado, e também seu amigo, Paulo Fonteles.
As investigações identificaram os mandantes do crime entre um grupo de poderosos fazendeiros bem conectados com a aristocracia belenense e acusavam os dois homens mais ricos do estado na época - Jair Bernardino de Souza e Joaquim Fonseca, ambos hoje mortos - de haverem mentido em seus depoimentos à polícia. Lúcio Flávio levou a bomba a uma das filhas de Rômulo, Rosângela Maiorana Kzan, agora à frente do Liberal. Ela se impressionou, mas afirmou não poder publicar material tão comprometedor. Se ofereceu, no entanto, para deixar que o próprio jornalista publicasse a matéria (que viria a ganhar o Prêmio Fenaj de jornalismo no ano seguinte, um dos dois de sua carreira) num jornal que poderia imprimir de graça na gráfica do grupo, sob a condição de a mesma não ser identificada. Nascia o Jornal Pessoal.
Já no segundo número a cumplicidade com a herdeira desandou. Dessa vez o jornalista acusava o presidente interino do Banco da Amazônia, Augusto Barreira Pereira, de liderar uma quadrilha que já havia roubado 30 milhões de dólares do banco estatal. Só que o acusado era diretor do banco e procurador de O Liberal. Dessa vez a gráfica não estaria disponível e a relação com os Maiorana começaria a se encaminhar ladeira abaixo.
No ano seguinte, Lúcio Flávio pediu para ser demitido do Estadão e usou o vultoso fundo de garantia para se dedicar a seu novo jornal, que dependia exclusivamente da venda em banca. Para complementar a renda, o jornalista fazia matérias como free-lancer e dava palestras ao redor do mundo, desfrutando do status de grande especialista em Amazônia acumulado ao longo de seus anos de grande imprensa. Os dias de abundância, quando os empregos nos dois jornais acumulados com a função de comentarista político e apresentador de um programa de entrevistas na TV Liberal, retransmissora da Globo, lhe permitiam um padrão de vida invejável, haviam acabado. "Eu tinha um poder impressionante. E ganhava muito bem, em valores de hoje cerca de 15 mil dólares por mês. Fiz minha biblioteca, minha casa", conta.
Com a nova aventura, Lúcio Flávio se sentia livre para finalmente fazer o jornalismo de seus sonhos. Agora não precisaria mais defender suas matérias de possíveis censuras nem se preocupar com a quem estava incomodando. "Já fui execrado pela direita, pela esquerda e pelo centro. Sou do lado onde está a verdade. Adoro uma briga."
Como importantes integrantes da elite do estado, os Maiorana passaram a fazer parte do noticiário do Jornal Pessoal normalmente em relatos sobre as brigas entre os herdeiros pelo controle da empresa. "Esses Maiorana, os herdeiros, são medíocres", garante. Em 1992, reagindo a uma reportagem particularmente incômoda, os herdeiros de Rômulo retaliaram com um processo, o primeiro de outros 18 (quatro pedindo indenizações) com que a família tentaria aniquilar o jornalista. Os processos estão quase conseguindo o que as várias ameaças de morte não conseguiram: calar Lúcio Flávio. Não por medo, mas por falta de tempo. "Fui processado 32 vezes desde 1992, só que nunca contestaram os fatos que apresentei. É sempre por difamação."
Dos 18 processos já movidos pelos Maiorana, 14 ainda estão em andamento. Em uma das ações um dos herdeiros chega a pedir que o jornalista seja proibido de pronunciar seu nome - "Como é que vão fazer cumprir uma sentença dessas?"
Por outro lado, hoje o nome de Lúcio Flávio é tabu nas dependências do grupo Liberal. "Todo mundo que entra no grupo sabe que Lúcio Flávio é persona non grata na casa", me diz uma jornalista que trabalha para a empresa. Tentei conversar com algum dos herdeiros sobre Lúcio Flávio, mas a secretária da presidência foi logo me avisando: "Vai ser difícil, o nome desse senhor não é muito bem recebido por aqui. Mas vou ver se algum deles fala com você". A resposta nunca veio.
Com inimigos tão poderosos, Lúcio Flávio tem dificuldades de encontrar um advogado que o represente. "Cada um inventa uma desculpa para não me defender." Em alguns casos é difícil até mesmo encontrar quem o julgue. "Muitos juízes e desembargadores já se afastaram de casos contra ele por conflito de interesses", me explica Carlos Lamarão, procurador do Estado, diretor jurídico do Instituto de Terras do Pará e grande amigo de Lúcio Flávio.
O conflito de interesses se deve ao fato de vários membros do judiciário local já terem sido alvo de matérias no Jornal Pessoal. Porém, mesmo tendo sua vida na mão dos magistrados do estado, Lúcio Flávio não alivia em sua marcação ao povo de toga. Na segunda edição do Jornal Pessoal de novembro do ano passado, uma matéria de página inteira acusa o recém-inaugurado prédio do Tribunal de Justiça do Estado de ser um novo Palácio de Versailles, erguido ao custo de R$ 32 milhões do bolso do contribuinte. Não é de se espantar que o jornalista não conte com muita simpatia ali dentro. "Digo pro Lúcio Flávio que ele é um camicase", ri Lamarão. "Ele acabou brigando com figuras tão poderosas que algumas pessoas têm receio de dizer que são amigas dele."
O amigo procurador defendeu Lúcio por cinco anos, de graça, mas diante do crescente volume de processos o jornalista o "demitiu" com a justificativa: "Minha demanda é a de um escritório de advocacia inteiro". Hoje é o próprio Lúcio Flávio que cuida de sua defesa, com a orientação de Lamarão para as questões jurídicas.
Atualmente a maior parte dos muitos livros que atravancam a pequena redação do Jornal Pessoal, que ocupa um quarto no 20 andar do único imóvel próprio do jornalista, onde também vive sua mãe, são sobre temas jurídicos. Além da casa, o jornalista tem apenas um outro bem em seu nome, um velho Passat 1987 azul da série histórica feita para ser exportada para o Iraque de Saddam Hussein, comprado zero quilômetro nos tempos de vacas gordas. "Essa foi minha última aquisição patrimonial. Tá lá morrendo, mas vai morrer comigo."
Boa parte do tempo do jornalista é dedicada a tentar se manter fora da cadeia. Três vezes por semana ele se encontra com Lamarão para discutir os próximos passos de suas defesas. O resto do tempo é passado redigindo petições e enfrentando a jornada interminável por tribunais e cartórios. Para o Jornal Pessoal sobra apenas o fim de semana. "Cada edição é um orgulho e uma frustração. Se eu tivesse um pouco de tempo, faria um jornal melhor."
Em 1994 Lúcio Flávio parou de viajar, depois de, enquanto estava fora de Belém, quase perder uma audiência marcada de surpresa pelo juiz encarregado de um de seus processos. Desde então passou a evitar se ausentar da cidade por mais de 48 horas. Isso o força a recusar convites para palestras ou frilas, uma fonte que está lhe fazendo falta. Sua renda hoje não é sombra da que era. "Meus amigos me dão presentes. Eu não tenho cartão de crédito. Ando de ônibus e quase não tenho vida social. Eu levo uma vida franciscana."
Em 2005 o Comitê de Proteção aos Jornalistas, uma respeitada ONG americana de defesa da liberdade de imprensa ao redor do mundo, concedeu a Lúcio Flávio seu prêmio máximo, mas o jornalista não pôde ir a Nova York recebê-lo por causa de seus processos. O mesmo aconteceu em 1997, quando recebeu o Colombe d'Oro per la Pace, um dos prêmios jornalísticos mais importantes da Itália - além desses prêmios e dos dois Fenaj de jornalismo dados ao Jornal Pessoal, Lúcio Flávio também já recebeu dois Prêmios Esso pelo trabalho no Estadão. "Estou em prisão domiciliar não declarada", lamenta.
Fora os processos ainda ativos dos Maiorana, o jornalista responde a uma ação movida por um desembargador a quem acusou de facilitar a grilagem de terras no estado e outra movida pelo empreiteiro Cecílio do Rego de Almeida, dono da construtora C.R. de Almeida. Cecílio, que enriqueceu graças à sua proximidade com o governo militar e ficou conhecido nacionalmente pela quantidade de contratos conseguidos no governo Collor, é desafeto antigo, desde o tempo em que o jornalista, num breve período como consultor do Instituto de Terras do Pará, ajudou o órgão a questionar sua apropriação indevida de uma área de quase 6 milhões de hectares de terras públicas, um dos maiores roubos de terras da história.
Numa recente entrevista concedida à revista Caros Amigos, o empreiteiro, apresentado como o maior grileiro do mundo, chamou a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, de "indiazinha analfabeta e doente"; ao ex-ministro das Cidades, Olívio Dutra, se limitou a chamar de um merda, mesmo título desrespeitoso dado ao presidente do Grupo Abril, Roberto Civita. Ironicamente, na ação contra Lúcio Flávio, Cecílio pede indenização por ter se sentido ofendido ao ser chamado de "pirata fundiário" pelo Jornal Pessoal. Essa é a única ação que o jornalista perdeu até agora.
Caso perca algum dos processos, Lúcio Flávio corre o risco de ir para a prisão, já que não tem condições de pagar as indenizações pedidas e muito menos aceitaria fazer algum acordo em que fosse obrigado a se retratar. "Isso é uma desumanidade. O Lúcio Flávio enfrenta uma situação em que O Processo, de Kafka, parece brincadeira de criança. Joseph K (personagem principal do livro) se queixava à toa", me diz Lamarão, que teme pelo futuro do amigo.
Rodando por Belém com Lúcio Flávio, foram raros os momentos em que ele deixou transparecer desânimo ou cansaço. Anoitecia quando nos despedíamos no portão da casa que serve de redação ao Jornal Pessoal, ele baixou a guarda e se comparou ao mito grego de Prometeu: "A justiça me amarra as mãos enquanto meus inimigos vêm todo dia tirar um pedaço do meu fígado".
Naquele fatídico janeiro de 2005, quando levou a surra de Ronaldo Maiorana, supostamente por causa de uma matéria do Jornal Pessoal que afirmava que Rômulo Maiorana iniciara sua vida nos negócios como contrabandista, Lúcio Flávio estava prestes a sepultar o tablóide e procurar outro rumo para sua vida. "Foi uma covardia. Ele veio pelas minhas costas e me agrediu. Quando me dei conta, já estava sendo espancado por Ronaldo e seus seguranças, que são pagos pelo estado para dar proteção a ele. Quando fui na delegacia dar queixa se recusaram a registrar a ocorrência."
A surra acabou motivando o adiamento do fim do Jornal Pessoal. "Não pode parecer que estou me acovardando. Tenho que escolher o momento certo, tem que ser de maneira digna", diz. Mas esse momento está mais próximo. O preço de continuar sua briga contra todo um estado está ficando alto demais para o jornalista suportar. "Ou morro eu ou morre o Jornal Pessoal."
O repórter fotográfico André Vieira escreveu sobre o garimpo de brasileiros clandestinos na Guiana Francesa na edição 4 da Rolling Stone (jan. 2007)
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