O mundo fica mais normal – e menos interessante – sem Michael Jackson
Por Ricardo Franca Cruz Publicado em 25/06/2010, às 07h40
Se não é o homem mais famoso a surgir na Terra nos últimos 50 anos, Michael Jackson é certamente um dos mais. Nenhum outro artista da cultura contemporânea se manteve em evidência durante tantos anos, nenhum outro atingiu tão amplamente, seja com a música, a figura icônica, os atos e trejeitos, um público de variadas faixas etárias, procedências, crenças e culturas. Nenhum subiu tão alto. E nenhum afundou tão profundamente. Talvez apenas um astro com a grandeza universal de Michael Jackson conseguiria resistir a uma montanha-russa de superexposição tão intensa e agressiva como a que foi obrigado - talvez por seus próprios feitos - a suportar ao longo da carreira.
A humanidade foi testemunha ocular do maior reality show de todos os tempos: acompanhamos os primeiros passos do menino-artista, louvamos seus lampejos individuais de genialidade, pagamos para ver e ter tudo o que o astro poderia nos fornecer. No topo do mundo, Michael Jackson se encontrou. E se perdeu quando depois se viu acuado pelo medo de falhar . Como Ouroboros, a serpente que come o próprio rabo e representa o eterno retorno, passou ele mesmo a se cobrar cada vez mais, até o ponto em que, vendo daqui dos lugares mais distantes da plateia, parecia impossível suportar a carga e manter a sanidade. Mais números, prêmios, recordes quebrados. Continuamos a assistir ao Show de Michael com curiosidade pura e genuína, que se tornou mórbida quando sua metamorfose física e mental era evidente demais para ser ignorada.
Talvez o maior dilema para quem produz, consome e julga a arte seja a dicotomia entre o que é autêntico e o que é artificial. A arte deve refletir o homem da rua, com suas falhas e banalidades ou se espelhar em algo que não pode ser alcançado pelos meros mortais? Os engajados e puristas parecem não aceitar o lúdico e o fantasioso. Então, quando um indivíduo consegue unir esses opostos tão distantes em um só ponto, o sucesso é inevitável. Nesses termos, Michael Jackson será sempre o popstar definitivo. E seu maior show, tristemente, foi o último: a morte, no "11 de setembro" do pop.
O mundo sempre parou por Michael Jackson e em certos momentos, como no começo dos anos 80 e agora, girou em torno dele. Ele mudou a mídia e inventou a multimídia. Não era apenas a mais importante cara da cultura pop: Michael Jackson era pura cultura pop, com sua (im)perdoável e notável megalomania, sua ânsia infantil de fazer de tudo um pouco, de ser sempre o maior de todos, um personagem mítico e irreal - ora um Noé dos nossos tempos, ora um Peter Pan de carne e osso. E, nos últimos anos, uma caricatura de si mesmo, artística e humanamente, um fragmento do inteiro que um dia chegou a ser: um negro-branco, um homem-menino, uma pessoa-aparição, um cantor sem palco, um milionário-endividado, uma criança que não vivia nas ruas mas que delas absorveu o passo de dança que o consagraria. Mesmo longe dos grandes shows ou das páginas da crítica musical, e mais próximo dos flashes dos tabloides, saber que Michael Jackson habitava esse mundo era uma maneira de confirmar que tudo continuava em seu lugar. Os sãos continuavam sãos, os loucos continuavam loucos, e nós vivendo entre estes dois extremos igualmente tediosos. Se não conseguíamos ignorar sua presença em vida, muito menos o conseguiremos depois da morte, que resgata a humanidade que julgávamos que ele havia perdido em algum vácuo entre excentricidades pessoais, salas de cirurgia, bancos dos réus e seu zoológico pessoal. E, ao mesmo tempo, o endeusa.
Horas após a confirmação do fato, Michael Jackson passou a ser o que sempre quis: se tornou o único assunto que interessava. Uma overdose literal de meiasverdades, verdades inteiras, boatos, perdões e louvores, e como já lhe era praxe, os topos das paradas. Por mais contraditório que possa parecer, é muito provável que, agora que Michael Jackson realmente não mais existe como ser humano, saberemos ainda menos do que já sabíamos sobre ele.
Michael Joseph Jackson surgiu para o mundo durante uma época de turbulência, entre delicadas questões sociais, políticas e raciais. A música e a imagem do Jackson 5, porém, não refletiam nada disso. O grupo era contratado de uma das maiores gravadoras de soul music, mas a Motown não tinha pudor em homogeneizar seus artistas, empacotando-os para um público com bom poder aquisitivo e, de preferência, branco.
Quando os marqueteiros da gravadora cunharam a frase "o som da Jovem América", talvez estivessem fazendo um tratado de futurologia, criando a definição perfeita para o Jackson 5.
As raízes negras dos Jackson eram diluídas em um som pegajoso, cheio de fórmulas para fisgar pré-adolescentes. Os rapazes eram aclamados como jovens negros saudáveis e dedicados, um exemplo para o resto do país. Mas, para isso, foram anos de submissão à brutalidade e à disciplina feroz impostas por Joe Jackson, pai e empresário, um carrasco dentro e fora de casa.
Em 1972, foi oferecida ao pequeno Michael, beirando os 14 anos, uma canção que se tornou, por vias tortas, uma declaração de intenções. "Ben" era tema do filme homônimo e podia a princípio parecer uma canção romântica. Mas não, era uma ode a um rato assassino. O adolescente, que tinha como bichos de estimação cobras, aranhas e outras criaturas, se entregou integralmente à canção. Foi um sucesso.
Enquanto Michael e seus irmãos se ocupavam gravando e rodando o mundo (estiveram no Brasil em 1974), a música e a sociedade mudavam. Quando o grupo deixou a Motown e assinou com a CBS, as expectativas eram altas, mas não houve química e os discos decepcionaram. Tudo mudou quando o clã, com Michael à frente, teve a liberdade de produzir um novo trabalho. Destiny (1978) foi o sucesso que todos esperavam e "Shake Your Body (Down to the Ground)" e "Blame It on Boogie" mostravam um Michael crescido, confiante, esbanjando balanço e groove.
Elvis Presley e Frank Sinatra se transformaram em estrelas de cinema. Michael Jackson não conseguiu isso e por muito tempo reclamava que não ter feito sucesso na tela grande foi um dos seus poucos fracassos profissionais. Mas foi justamente a participação em um filme que lhe abriu novos caminhos. The Wiz, uma versão black de O Mágico de Oz, foi um desastre para todos os envolvidos. Menos para ele. Para encarnar o Espantalho, ele tinha que se submeter a horas de maquiagem. Era o único que não reclamava das sessões de tortura sentado em frente a um espelho. Pelo contrário, adorou a experiência de mexer no rosto que ele considerava feio. Foi durante o filme que ele travou o primeiro contato com o produtor Quincy Jones, que era diretor artístico do filme.
A dupla trabalhou junta em Off the Wall, de 1979, a cartilha para grande parte do pop como o conhecemos, um álbum dançante, eclético e comercial. Michael encontrara uma entonação vocal perfeita, interpretando de uma maneira expressiva, com suspiros, soluços e interjeições acentuando as canções aceleradas, e uma profunda tristeza pontuando as baladas.
Com o êxito, ele se viu mais requisitadodo que nunca. Se no palco e nos clipes ele era explosivo, na vida privada continuava religioso, tímido, humilde e virginal. Mas finalmente pôde deixar o estigma de estrela mirim. Seus irmãos não tinham crescido artisticamente e precisavam ser deixados para trás. Michael se livrou do insuportável Joe Jackson e enfiou na cabeça que se tornaria "o maior astro do mundo". Suas primeiras operações plásticas datam dessa época, e transformaram um nariz afro em um delicado nariz de princesa.
Ironicamente, Michael Jackson virou a bola da vez na celebração de 25 anos da Motown, que ele tinha deixado com uma certa amargura. O resto do clã Jackson estava ansioso em aparecer, mas Michael só aceitaria subir ao palco se pudesse promover "Billie Jean", que nem era uma música da Motown. O especial foi ao ar em março de 1983, assistido por 47 milhões de pessoas. A atuação dos irmãos foi eletrizante. Em seguida, Michael, com uma arrogância calculada, disparou: "É legal relembrar velhas canções. Mas prefiro as novas". E se lançou a dublar "Billie Jean". A performance, executando o moon walk (um passo de dança que dava a impressão que ele deslizava para trás) foi o assunto dos tempos seguintes. Também podia ser uma metáfora àquele momento: Michael Jackson conseguia andar para trás, louvando o passado, mas sempre olhando para o futuro.
A aparição foi um trailer para o massacre chamado Thriller. Lançado em novembro de 1982, o álbum a princípio não foi levado muito a sério. Mas, depois do Motown 25, o álbum explodiu como nenhum outro lançado antes - e depois. O clipe era o meio ideal para o artista perfeccionista exercitar sua criatividade. O diretor John Landis, de Um Lobisomem Americano em Londres, usou seus conhecimentos no horror para formatar o clipe de "Thriller". Nos 14 minutos de duração do clipe-curta, surgiu um novo Michael Jackson, uma estrela cadente, um belo jovem negro pronto para dominar o mundo - ao menos, o mundo pop. Foi o pontapé para que indústria do clipe faturasse milhões. Os passos de dança e o visual de Michael Jackson entraram para o DNA da humanidade.
Mas não adiantaria nada se o disco realmente não fosse bom. Thriller, também produzido por Quincy Jones, é menos sutil que Off the Wall, mas mais explosivo e eficiente em seu mix de elementos de R&B, pop branco e rock. Eddie Van Halen, então a maior estrela da guitarra, tocou em "Beat It", o que foi aval para muitos roqueiros perceberem que o álbum era muito especial. Se Off the Wall era generoso e relaxado, Thriller era paranóico, tenso e até flertava com o sobrenatural. Enfim, Michael tornou-se o que queria: a aura de criatura que pairava acima de outros artistas.
Se a década de 80 foi a mais pop de todas, culpe Michael Jackson e sua onipresença, sua luva branca, seu cabelo com gel, sua jaqueta vermelha. Thriller ainda vendia e tocava nas rádios quando a dominação mundial chegou ao máximo com "We Are the World", canção beneficente que ele escreveu com Lionel Richie, e se tornou o hino mundial de uma fraternidade idealizada pelos popstars norte-americanos da época. Michael estava no topo: era um ícone, o herói conquistador, o cara legal e de talento incomparável que dançava e cantava como ninguém e unia gerações, credos, nacionalidades, gostos e etnias. O que ele ignorava saber é que depois de atingido topo, o jogo passa a ser manter-se nele. Ou descer com dignidade.
Após Thriller, Michael ficou incomodado. Queria bater o sucesso em vendagens e influência global. Claro, isso nunca iria acontecer. Por isso, Bad (1987) foi considerado anticlimático, apesar de ter sido o único disco a ter conseguido cinco primeiros lugares na parada de singles - algo excepcional para qualquer artista, mas pouco para ele. E o pior era que os detratores não davam sossego, afi rmando que o conceito do disco beirava a autoparódia. Assim mesmo, na segunda metade da década de 80, Michael Jackson continuava no topo. Recebia prêmios, se dedicava a causas, queria ajudar todas as crianças do mundo. Em sua Neverland, misto de museu, parque temático e zoológico, Michael podia se refugiar e fazer o que quisesse com seu tempo e espaço, desprezando as regras que regem as vidas do restante do planeta.
Em 1991, enfim saía Dangerous, produzido por Ted Riley. O inesquecível clipe de "Black or White" ajudou a popularizar a técnica do morphing e ajudou o disco a chegar ao topo das paradas. Nos anos seguintes, em meio a uma turnê (que passou pelo Brasil, em outubro de 1993), Michael permaneceu na mídia, mais por motivos pessoais do que artísticos - acusações de pedofilia, divulgação sobre seu vício em remédios e o conturbado casamento com Lisa Marie, filha de Elvis Presley, que durou durou dois anos. Sua discografia volta a ter continuidade com o duplo History: Past, Present and Future, Book I (1995), misto de coletânea com canções inéditas, como a agressiva "They Don't Care About Us". Com o diretor Spike Lee, Michael filmou o clipe na favela Dona Marta (RJ) e em Salvador (BA). A terceira passagem de Michael no Brasil foi uma festa para a mídia, mas foi delicioso ver o ídolo trotando pelo Pelourinho, resplandecente com sua camiseta do Olodum e feliz como há muito não se via.
A derradeira turnê mundial, a History World Tour, foi finalizada em 1997. Nesse período, Michael encontrou tempo para se casar com Debbie Rowe, sua enfermeira particular. A união, que também não durou, gerou Michael Joseph Jackson, Jr. e Paris Michael Katherine Jackson (ela afirmou que Michael não era o pai biológico). Tempos depois, ele ainda teria mais um filho (Prince Michael Jackson II) por vias artificiais, só que de mãe desconhecida.
Seu último disco, o dispendioso Invincible (2001), foi soterrado em meio a críticas. Michael entrou em uma fase em que só virava notícia por causa de escândalos e problemas financeiros. Para limpar a barra, convocou o jornalista Martin Bashir para gravar um programa "revelador" que mostraria "o verdadeiro Michael". O tiro saiu pela culatra. Exibido em 2003, Vivendo com Michael Jackson só reforçou o que se sabia: que o astro vivia fora da realidade e não estava interessado em mudar isso.
A salvação para sua carreira seria um triunfal retorno às turnês. Se conseguisse êxito na hercúlea empreitada proposta - 50 shows em Londres, além de uma excursão mundial na mesma proporção -, ele talvez alcançasse um olimpo pop reservado a pouquíssimos ou a nenhum antes dele. A abandonada coroa de Rei do Pop, quem sabe, poderia voltar a lhe caber. Mas, durante a preparação para a maratona, a cortina se fechou de vez, em 25 de junho de 2009. Em 29 de agosto, completaria 51 anos - 40 dos quais, viveu como estrela.
Inevitável não recordar uma cena em especial de Vivendo com Michael Jackson. Em uma loja de quinquilharias, o cantor adquire objetos de arte com pouco critério. Depois que ele demonstra interesse por um objeto estranho - um sarcófago, o jornalista Bashir pergunta, impressionado: "Você pretende ser enterrado nisso?"
Michael hesita: "Não quero ser enterrado...Quero viver para sempre".
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