A história por trás da trilogia Millennium, de Stieg Larsson, tem detalhes e reviravoltas que parecem saídas da ficção
Por Rodrigo Salem Publicado em 22/09/2010, às 18h09
Vender milhões de cópias com historinhas adocicadas sobre um príncipe encantado com dentes de vampiro e pele que reluz feito diamante é fichinha. Tomar a cultura pop de assalto com um pirralho que tem poderes mágicos e voa numa vassoura é brincadeira de criança. Agora, tornar-se um fenômeno literário mundial com uma heroína que é estuprada logo no início da trama e um herói cinquentão cuja maior aventura é publicar longos e didáticos artigos em uma revista politizada da Suécia, isso sim é algo surpreendente. Mas foi assim que a trilogia Millennium, formada pelos livros Os Homens Que Não Amavam as Mulheres, A Menina Que Brincava com Fogo e A Rainha do Castelo de Ar, espalhou-se pelo mundo com 40 milhões de cópias vendidas, ganhou três modestos filmes suecos (que já renderam mais de US$ 200 milhões) e se prepara para dominar Hollywood com um filme norte-americano (dirigido por David Fincher e estrelado por Daniel Craig).
O sueco Stieg Larsson começou a escrever as primeiras linhas do que um dia se tornaria Os Homens Que Não Amavam as Mulheres em 2002, durante um período de férias com a companheira, Eva Gabrielsson, quando rascunhou um thriller sobre um velho florista que é assassinado misteriosamente. A ideia dele era finalmente abandonar a carreira de jornalista investigativo. Em 9 de novembro de 2004, quando já trabalhava nos manuscritos das três primeiras histórias com a editora sueca Norstedts, Larsson sofreu um ataque cardíaco e morreu após subir sete lances de escada no escritório da revista onde trabalhava. Suas últimas palavras foram: "Estou com 50 anos, pelo amor de Cristo!", como conta Kurdo Balsi, colega de revista de Larsson e autor da biografia My Friend Stieg Larsson, publicada na Suécia e ainda inédita no Brasil. "Eu não acreditei [quando ouvi a notícia]. Foi muito inesperado", lembra Eva Gedin, a editora original dos livros.
Mas a surpresa mesmo quem teve foi a viúva de Larsson, que, no começo de 2005, recebeu um documento do governo sueco afirmando que não teria direito a nada do seu companheiro de 32 anos, já que não havia um testamento e a lei sueca não reconhece a união estável - o jornalista preferiu nunca casar no papel para não colocar o nome da parceira na mira dos grupos neonazistas que ele perseguia em seu trabalho. Eva não poderia nem mesmo morar no apartamento que dividia com o parceiro, já que metade dele passaria a ser de propriedade dos familiares do morto, o irmão, Joakim, e o pai, Erland Larsson. Inicialmente, os dois passaram o dinheiro que Stieg tinha na conta - cerca de US$ 20 mil - para Eva, mas não abriram mão da moradia.
A trilogia Millennium se tornou um fenômeno na Suécia, vendendo 3,5 milhões de unidades em um país com 9 milhões de habitantes. Logo em seguida, os livros se tornaram uma febre na França, onde superaram as vendas de Harry Potter. E aí a guerra começou. A viúva dizia ser a única capaz de manter o legado intelectual das obras, mantendo íntegra a ideologia do companheiro morto - segundo ela, Stieg nunca permitiria que mudassem o título para A Garota da Tatuagem de Dragão, como ocorreu nas versões americana e inglesa.
Quando os direitos cinematográficos foram vendidos para a produtora sueca Yellow Bird, os representantes do espóio de Larsson revelaram que as obras do autor estavam avaliadas em US$ 15 milhões e partiram para cima da viúva ao descobrir que ela possuía cerca de 200 páginas deixadas pelo escritor no laptop (e que servem de base para um quarto capítulo da Millennium). Ofereceram a metade do apartamento. Porém, após uma reação negativa popular na Suécia, recuaram e passaram a propriedade para Eva sem ônus algum. Em seguida, aumentaram a oferta para mais de US$ 2 milhões pelo computador. Ela nem se dignou a responder. "Eu não tenho uma disputa com ela. Ela que tem comigo. Queremos que ela tenha uma boa vida", alega Joakim.
No Brasil, a saga saiu antes mesmo da versão norte-americana, quando duas editoras da Companhia das Letras pesca- ram as edições francesas, em 2007, e não largaram os livros. De lá para cá, foram 270 mil cópias vendidas. "O risco estava nessa incerteza sobre o m ercado: eram três livros bem grandes e de um autor desconhecido por aqui. Não t ínhamos como prever como seria a r cepção da trilogia pelos leitores brasileiros", conta a e ditora-assistente Lucila Lombardi. "Mas os livros superaram nossas expectativas, tanto que tivemos que providenciar a primeira reimpressão de Os Homens... muito mais cedo do que imaginávamos."
Pena que para Larsson tudo foi muito tarde. Depois de sua morte, um culto ao redor do seu nome se formou com intensidade. Contos dos anos 70 do sueco estão sendo encontrados em revistas de ficção científica, e certamente verão a luz do dia em forma de livros mais luxuosos. Entretanto, como uma figura de texto tão didático se tornou um semideus nórdico? A resposta repousa no colo magro de sua heroína, Lisbeth Salander. "Ela é uma criação absolutamente original", acredita Sonny Mehta, da editora Knopf, que lançou a série nos Estados Unidos. "Uma heroína dos novos tempos." Isso significa que Lisbeth é um protagonista repleta de desvios da "normalidade". Considerada mentalmente impossibilitada de exercer uma vida normal, Lisbeth precisa lidar com tutores e homens que não compreendem a espécie de autismo leve da personagem, que não tem o mínimo tato social, porém é capaz de hackear qualquer computador. Não se considera bonita, usa piercings e tem uma enorme tatuagem de dragão nas costas. No começo do primeiro livro, ela é bolinada pelo novo tutor e, nas páginas seguintes, é estuprada por ele. Larsson, que fez vários artigos sobre a violência contra a mulher na Suécia e intercala capítulos com dados sobre a situação no país, não poupa o leitor do peso sexual e da violência e usa a vingança de Lisbeth como catarse literária.
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