Ilustração Lézio Júnior -

Batendo Forte no Tabu

Filme que discute a descriminalização das drogas recruta políticos de peso e reabre o debate sobre a questão

Por Camilo Rocha Publicado em 20/07/2011, às 19h51

O debate sobre as drogas tem tudo para ganhar fôlego no país neste mês, com a estreia do documentário Quebrando o Tabu, dirigido por Fernando Grostein Andrade e que tem como protagonista e principal apoiador o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. FHC começou a falar publicamente sobre o tema a partir de 2008. Ele defendeu a descriminalização do uso da maconha em palestras, congressos e em entrevistas para a imprensa nacional. Sua posição deve receber uma projeção bem maior agora com a distribuição do filme em diversas salas pelo Brasil e a esperada repercussão midiática em cima do lançamento.

O timing é bom. No fim de maio, ocorreram várias Marchas da Maconha pelo Brasil. A de São Paulo foi a que mais repercutiu: proibida judicialmente, seguiu em frente após os organizadores acordarem com a PM que seria reclassificada como ato pela liberdade de expressão e que símbolos referentes à maconha não seriam usados. Mesmo assim, acabou duramente reprimida pela polícia, que usou bombas e balas de borracha e chegou a agredir jornalistas que cobriam o evento. O governador do Estado, Geraldo Alckmin, condenou a ação policial. A PM e a Guarda Civil Metropolitana prometeram apurar.

Em abril, repercutiu no noticiário a posição pró-descriminalização do deputado federal Paulo Teixeira, líder do PT na Câmara, embora não fosse exatamente novidade. Em 2009, quando foi nomeado interlocutor do governo para revisão da lei sobre drogas, Teixeira defendia "que o Brasil também faça a descriminalização do uso e do porte para consumo próprio". Enquanto isso, em Porto Alegre, o governador e também petista Tarso Genro declarava: "Nunca vi ninguém matar por ter fumado maconha". No mesmo mês, manchetes do noticiário nacional soaram o alarme para uma droga até então pouco conhecida dos brasileiros, o oxi ou oxidado, variante mais forte do crack e de preço ainda mais barato.

Segundo a lei 11.343, em vigor desde agosto de 2006, o uso de qualquer entorpecente no Brasil ainda é crime. A principal mudança que a lei apresentou em relação à legislação anterior era que usuários e dependentes teriam tratamento diferente do traficante. "Adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo drogas para consumo pessoal", sem autorização legal, permaneceram passíveis de punição - mas através de medidas sócio-educativas e não mais de detenção, como era antes. Apesar desse abrandamento, a lei brasileira ainda é mais severa que a de outros países latino-americanos, que deixaram de punir a posse de quantidades consideradas de uso pessoal.

Em 2009, o México descriminalizou a posse de pequenas quantidades de todas as drogas, incluindo ecstasy, cocaína e heroína. A Colômbia também permite a posse de pequenas quantidades de todas as drogas (a de maconha é de 20 gramas). Há dois anos, a Argentina seguiu caminho semelhante, com uma corte federal argumentando que a punição de usuários "criava uma avalanche de casos judiciais cujo alvo era os consumidores e que não atingia os traficantes". E, neste ano, o Uruguai aprovou a regulamentação do uso e plantio da maconha. Até oito plantas de cannabis por "agregado familiar" serão permitidas.

Três anos atrás, FHC - ao lado dos ex-presidentes da Colômbia (Cesar Gavíria) e Ernesto Zedillo (México) e de 18 personalidades de vários países, como o vice- -presidente das Organizações Globo, João Roberto Marinho, os escritores Paulo Coelho e Mario Vargas Llosa e o general Alberto Cardoso - participou do lançamento da Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia. Conforme descrito em seu site oficial, a Comissão nasceu com o objetivo de "avaliar a eficácia e o impacto das políticas de combate às drogas e formular recomendações para políticas mais eficientes, seguras e humanas".

Entre estas recomendações, de acordo com o documento intitulado "Rumo a uma Mudança de Paradigma", está "avaliar, com um enfoque de saúde pública e fazendo uso da ciência médica mais avançada, a conveniência de descriminalizar a posse de maconha para consumo pessoal". Outra recomendação do documento é "transformar os dependentes de compradores de drogas no mercado ilegal em pacientes do sistema de saúde".

A criação da comissão inspirou outro Fernando, o Grostein Andrade, diretor de clipes e do documentário Coração Vagabundo (com Caetano Veloso). Andrade guardava na gaveta o projeto de um filme sobre a questão das drogas, inspirado por situações que presenciou nos coffee shops de Amsterdã e na favela da Rocinha. "Toda vez que falava com pessoas sobre fazer o filme, me olhavam com cara desconfiada, como se estivesse querendo fazer apologia da maconha", conta o diretor. "Um dia vi no Jornal Nacional o William Bonner anunciando a criação da Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia. Uma de suas conclusões era a de que a guerra às drogas tinha fracassado. Falavam em 'avaliar a conveniência de descriminalizar o uso da maconha'. Falavam em dar ênfase à saúde e ao tratamento, não apenas na repressão, na erradicação pela via militar. Fiquei fascinado com essas ideias." Estava ali o fio condutor do filme. "Pensei: 'Taí o personagem que pode fazer esse filme ser viável. Ele tem a credibilidade para tratar disso sem que seja um tema de gueto, tabu, sem fazer apologia ao uso de drogas'". Ele conta que conseguiu uma reunião com o ex-presidente, que de cara abraçou o projeto. Há dois anos, a dupla começou a realização do documentário. O nome de FHC aparece nos créditos como coautor do argumento.

Quebrando o Tabu traz entrevistas com personalidades de diversas áreas, como o já citado Paulo Coelho, o médico Drauzio Varella, a ex-presidente da Suíça Ruth Dreifuss e os ex-presidentes norte-americanos Jimmy Carter e Bill Clinton. Além disso, o filme é produzido por uma estrela global, Luciano Huck, irmão de Andrade. Mas o filme sai a campo também. A equipe falou com traficantes no gueto de Baltimore, nos Estados Unidos, visitou favelas brasileiras, esteve com viciados na Holanda e entrou na selva colombiana para mostrar um campo de papoula das Farc.

Apesar de FHC já ter deixado claro que sempre que opina sobre esse tema não o faz como líder político, e sim como intelectual, a reverberação na área política será inevitável. Tanto que um dos pedidos do ex-presidente, segundo Andrade, foi para que fosse "um filme de tema, não de personagem". Fez parte da estratégia também lançá-lo em um ano não eleitoral. "Tivemos esse cuidado, primeiro para mostrar que não tem nada a ver, porque Fernando Henrique tem 80 anos e não é mais candidato. E durante a eleição existe também uma tendência de 'emburrecimento' coletivo, todo mundo com medo de falar do assunto. É um ambiente muito improdutivo para conclusões, para o debate", explica o cineasta.

Para Bruno Covas, secretário de meio ambiente do Estado de São Paulo e ex-presidente nacional da juventude tucana, a presença de um dos ícones do seu partido no filme não dá "motivo para polêmica". Por e-mail, ele diz que a participação de FHC, "assim como a dos demais ex-presidentes norte-americanos, foi responsável e criteriosa. No entanto, se causar polêmica, também será positivo, pois chamará a atenção que o assunto merece". Covas garante que o filme foi recebido "positivamente" no PSDB. "O assunto precisa ser debatido. É preciso buscar alternativas e a melhor forma é falando sobre o assunto, tocando na ferida."

Outro indicativo de que Quebrando o Tabu não deve ser mal recebido no tucanato paulista é uma entrevista dada por Alckmin à Record News, em 24 de maio: o governador, que um dia antes havia condenado a repressão policial contra a Marcha da Maconha, foi mais longe e criticou a própria decisão judicial que proibiu a manifestação.

A opinião de Covas harmoniza com as palavras do deputado Paulo Teixeira, do PT. Ele avalia a participação de FHC no documentário como "saudável", acrescentando que "o debate a respeito da política brasileira sobre drogas deve envolver todas as forças políticas e vertentes de pensamento da sociedade". Teixeira chama a atenção para o efeito que as leis atuais têm sobre a segurança pública: "Na minha visão, a política exclusiva de repressão ao tráfico e ao usuário não tem surtido efeito. A população carcerária segue aumentando, principalmente de réus primários, e, do ponto de vista da segurança pública, perdemos foco no combate aos grandes criminosos". E completa: "O cenário que milhões de pais, como eu, temem - de drogas sendo oferecidas a seus filhos na esquina - já existe. Não é uma possibilidade futura. Hoje, é mais fácil um jovem comprar maconha do que um antibiótico. A regulação pelo Estado, do consumo de qualquer substância, poderá ajudar a conter seu uso".

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