Bolacha de Água e Sal

Os bastidores da cobertura jornalística do G20, o encontro dos países mais industrializados do mundo e das nações emergentes

Por Rodrigo Álvares Publicado em 12/06/2009, às 13h04

Estou em frente à embaixada brasileira em Londres. Acabei de sair da coletiva do presidente Lula após o encontro da cúpula do G20 - grupo das 20 maiores economias do mundo - e preciso desesperadamente encontrar um pub para tentar processar o que acabei de ouvir dele. "Você não acha chique o Brasil emprestar dinheiro ao FMI?" não é exatamente o que se espera de alguém que passou boa parte da vida política lutando contra o Fundo Monetário Internacional, bicho-papão do imaginário brasileiro. Mas, quando você é chamado de "O Cara" pelo presidente dos Estados Unidos, tem o luxo de falar isso e passar bonito. Como chegamos a esta situação, entretanto, é uma outra história.

Entre todos os alertas e listas do que poderia dar completamente errado assim que eu desembarcasse no Aeroporto de Heathrow no dia 31 de março, é preciso confessar que não me preparei para ouvir "Você veio para Londres trabalhar no encontro do G20 para não ganhar nada? Isso é muito suspeito". Discutir semântica com o oficial da imigração não estava nas minhas piores previsões.

O fiscal se recostou na cadeira. Releu os documentos que comprovavam a existência do evento e da organização que financiou a viagem, a G20 Voice, que convidou 50 blogueiros de todo o mundo para cobrir o encontro em uma parceria com o governo britânico. Eu era um deles. Separou uma das folhas, se levantou e me pediu para ler em alto e bom inglês a seguinte frase, pinçada de um email: "Let's make some noise (Vamos fazer um barulho)".

"Pode me explicar que tipo de barulho você pretende fazer?" Expliquei que a intenção era promover o encontro. "O 'barulho' é apenas uma gíria", argumentei. Ele se aproximou do balcão: "Você acredita que o encontro do G20 seja algo benéfico ou maléfico para a humanidade?"

Essa pergunta deixou claro que eu precisava cair fora de lá rápido, e a solução para isso foi bem brasileira: "Bom, tem o telefone do gabinete do primeiro-ministro em meio aos papéis que entreguei. Quem sabe você não liga para lá?"

"Bem-vindo a Londres, senhor."

Depois de me instalar no hotel, na zona leste da cidade, peguei um trem rumo ao centro da cidade. Um protesto estava agendado para o dia 1º de abril. Barracas em frente à Abadia de Westminster faziam parte da estratégia para burlar a segurança, apesar dos 10 mil policiais - divididos em cinco grupos ao custo de US$ 10,5 milhões.

Era visível a tensão dos policiais em não permitir que tudo descambasse em gritaria, vitrines quebradas e sangue. Retornei ao hotel com a certeza de que aquelas barricadas e grades não iriam funcionar.

Tentei não pensar muito nisso na manhã seguinte, enquanto conversava com o coordenador da campanha online do então candidato à presidência dos EUA Barack Obama, Sam Graham-Felsen, sobre o abismo digital do uso político da internet nos Estados Unidos e no Brasil.

"Como assim, os políticos não podem fazer campanha na internet?"

"A imprensa é obrigada a cobrir todos os candidatos, mas ao mesmo tempo não pode criticá-los?" Constrangedor.

A entrada reservada à imprensa estava concorrida na manhã do dia 2 de abril. Dali foi necessário pegar dois ônibus para chegar à tenda onde as credenciais eram dadas. Os policiais praticaram diversas técnicas de revista nos jornalistas estrangeiros. Entre elas, deixar todos descalços, levantar camisas e retirar cintos.

Pouco depois de Obama dizer a todos que Lula era "O Cara", soube que a comitiva brasileira deixaria a cúpula antes do encerramento. Estava liquidada a fatura ou o presidente não queria arriscar sua popularidade frente à imprensa mundial?

"E tem alguma coisa que faça sentido nessa comitiva brasileira?", me perguntou o correspondente Silio Boccanera. Entre ficar e descobrir isso, acabei por subir no ônibus da imprensa brasileira.

"Perguntaram umas 500 vezes se você era confiável", me disse a assessora de imprensa da presidência da República quando finalmente entrei no Mandarin Oriental Hyde Park, onde o presidente chinês, Hu Jintao, estava hospedado e receberia Lula para uma reunião. "Vê lá se não vai perguntar alguma bomba", alertou.

Tudo isso para testemunhar dois minutos de conversa. Seguranças começaram a empurrar os repórteres para fora da sala, com direito a tapões na nuca de um cinegrafista.

Mais tarde, na embaixada brasileira, Lula marcou uma coletiva para as 18h e apareceu às 19h30. Para matar o tempo, a equipe da elegante casa na esquina da Rua Green com a Dunraven poderia ter oferecido algo mais elaborado do que "cream crackers" na bandeja. Não que elas tenham sido renegadas, pelo contrário.

Deve ser a crise. Ou não.

Quando o presidente finalmente surgiu, risos. Muitos risos. Até piada com a falta de educação dos chineses ele fez. "Eu tive de salvar o Tuquinha [Ricardo Stuckert Filho, fotógrafo oficial da presidência,] deles", gracejou.

Questionado sobre a quota brasileira no FMI - no caso do Brasil, de US$ 4,5 bilhões -, Lula retrucou: "Você não acha chique o Brasil emprestar dinheiro ao FMI? Não é uma coisa extraordinária?" E completou, automaticamente: "Eu passei metade da minha juventude no Centro de São Paulo com faixas de 'Fora FMI'".

Em plena falência global, não deixa de ser perturbador que o presidente tente arrotar caviar depois de comer bolachas de água e sal e ainda receba palmas.

LULA DISSE NO G20

"Não é fácil você ver o presidente dos Estados Unidos falar: 'Olha, sei que sou o mais novo aqui, vim para aprender'"

"Ele [Obama] é o primeiro presidente latino-americano... dos Estados Unidos que tem a cara da gente"

"Além de pagar a conta dos outros, emprestei um pouquinho" (sobre o FMI) "Tenho uma tese de que parte desta crise é a crise da desconfiança. Se

o Cassius Clay tivesse medo de cara feia nunca teria nocauteado o Joe Frazier. (...) Eu me considero o Cassius Clay desta crise"

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