Ídolo dos barzinhos, Djavan mantém a popularidade enquanto preza por uma vida reclusa
Mauro Ferreira
Publicado em 13/01/2015, às 14h40 - Atualizado em 01/04/2015, às 17h17Quando tentou a sorte no rio de janeiro em 1972, vindo de Alagoas com a cara, a coragem e o dinheiro arrecadado com a venda de tudo que tinha na cidade natal, Maceió, o então desconhecido Djavan Caetano Viana conseguiu o contato do radialista Adelzon Alves por intermédio de Edson Mauro, um locutor esportivo conterrâneo. Levou um mês indo à emissora quase diariamente até ser recebido pelo radialista e ouvir dele uma frustrante declaração: “A música que você faz é tão estranha”. Também por intermédio do amigo conterrâneo, o cantor chegou a João Mello, produtor da gravadora Som Livre. O veredicto foi similar: “Sua música é diferente”. Só que, na mesma gravadora, o músico ouviu do maestro Waltel Blanco que essa diferença não era defeito. “Esse é o seu trunfo! Você tem que manter essa estranheza na música”, sentenciou Waltel.
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Djavan manteve a assinatura de sua obra autoral e começou a gravar faixas para trilhas sonoras de novelas da Globo, já que o diretor da Som Livre, João Araújo, pai do futuro roqueiro Cazuza, gostou da voz do cantor. “João foi uma pessoa determinante na minha vida. Ele achou que eu tinha uma boa voz, me alugou um apartamento e, através de um amigo, me arranjou um emprego de crooner na boate Number One. Depois, me incentivou a sair da Som Livre, quando o Mariozinho Rocha quis me levar para a EMI”, enumera Djavan, com gratidão, sentado no estúdio de sua casa, onde recebeu a Rolling Stone Brasil para falar da caixa que embala reedições de seus primeiros 18 álbuns.
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A primeira gravação de Djavan, feita e lançada no segundo semestre de 1973 no LP que trazia a trilha sonora da novela Os Ossos do Barão, foi “Qual É?”, uma música de Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle. Mas o sucesso só chegou em 1975, ano em que o cantor ficou em segundo lugar no festival Abertura, promovido pela Globo, com o samba “Fato Consumado”. Foi naquele ano também que gravou a canção “Alegre Menina”, parceria de Dori Caymmi com o escritor Jorge Amado para a trilha da novela Gabriela. Quatro décadas depois, com 66 anos de vida completados neste mês de janeiro, Djavan colhe os frutos com a reedição de obra que fez diferença na MPB pela estranheza que, de início, assustou os primeiros ouvintes. “O meu som impressiona os músicos. Eles têm interesse de ler as partituras para conhecer melhor os detalhes”, conta. Segundo Djavan, a música que faz é fácil de ouvir, mas difícil de executar. “Isso complicava para mim”, comenta. “Ouvi muita gente dizer: ‘Você tem talento, mas sua música é complicada’. Até hoje, dá trabalho a quem for executá-la.”
No circuito de bares, há quem não pense assim. O cancioneiro de Djavan é hit certo nos barzinhos em vozes de cantores que simplificam essa música de harmonias rebuscadas com acordes pouco usuais. “Ouço as pessoas tocando errado. Às vezes, até em gravações profissionais. Mas me alegra vê-las felizes de cantar e tocar minha música”, observa o compositor, seletivo na hora de frequentar lugares onde há música ao vivo. “Se tem música ao vivo, é certo que vão me pedir para cantar”, afirma.
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Se o sucesso começou há 40 anos, a independência artística foi declarada há dez. Em 2004, Djavan criou sua própria gravadora, a Luanda Records, para editar e distribuir os próprios álbuns. Vaidade foi o primeiro feito em casa. Mas o grito de independência, alto demais para quem havia construído discografia sob o abrigo das gravadoras EMI-Odeon (de 1978 a 1981) e CBS/Sony Music (de 1982 a 2001), foi logo abafado com a dificuldade de distribuição dos discos, ainda um problema para o mercado independente. “Este é um obstáculo quase intransponível”, avalia. A independência continua declarada e a Luanda Records permanece aberta. Mas Djavan vem firmando parcerias temporárias com gravadoras como a Biscoito Fino e a Sony Music, que distribui a caixa comemorativa dos 40 anos de carreira fonográfica do cantor. O controle artístico da obra, contudo, continua sob sua responsabilidade, como acontece desde o segundo álbum. O primeiro, A Voz, o Violão, a Música de Djavan, lançado em 1976 pela Som Livre, é a exceção, porque o produtor Aloysio de Oliveira priorizou os sambas dentre as 60 composições de ritmos diversos que foram mostradas. “Pode parecer maluco, mas nunca fiz disco visando o mercado. Sempre achei que esse negócio de vendas era com os outros. O álbum duplo ao vivo de 1999 vendeu 2 milhões de cópias à minha revelia. Não foi uma coisa minha”, sublinha. Mas Djavan não recusou a experiência de gravar com a tecladeira que, nos anos 1980, era quase sinônimo de boas vendas. Lilás (1984), que sucedeu o eletroacústico Luz (de 1982, com “Samurai”, “Pétala” e “Sina”), lhe rendeu as primeiras críticas incisivamente negativas por causa do tom eletrônico. “Fiz um disco radicalmente diferente, usando uma tecnologia que começava a ser difundida no mundo”, explica. “Lilás tem muito teclado e eu fui criticado por isso. Mas ele precisava ser feito. Eu queria aquele som”, ele se defende.
Assim como Luz, Lilás foi gravado em Los Angeles. Mimos oferecidos ao (então) novo contratado pela gravadora CBS, que o tinha tirado da rival EMI-Odeon a peso de ouro, as gravações em estúdios norte-americanos facilitaram a participação de Stevie Wonder, que toca gaita em “Samurai”, faixa de Luz. Na época, a música de Djavan começava a seduzir o mercado dos Estados Unidos, sobretudo o circuito de jazz. “Quando aceitou gravar comigo em Luz, Stevie já conhecia meu disco anterior, Seduzir. Ele foi muito solícito, sensível, reservou o dia para ficar conosco no estúdio”, rememora o cantor. A explicação para escolhas rítmicas inusitadas talvez resida na diversificada formação musical de Djavan e no seu gosto pelas fusões. “A graça da minha música sempre foi a mistura. Um samba com jazz. Um bolero com toque de baião”, enumera. Se o compositor se revelou hábil artesão ao “djavanear” o jazz de Alagoas, pode ser que a chave do mistério esteja na capacidade autodidata para apreender todos os ritmos. Mas o destino também colaborou. Menino pobre que aprendeu sozinho o toque do violão nas cifras das revistas vendidas em bancas de jornal, Djavan cresceu ouvindo a voz aguda de Dalva de Oliveira, cantora preferida da mãe dele. Mas teve abertas para si todas as portas do universo musical quando lhe foi franqueado o acesso à discoteca e ao equipamento de som quadrifônico de Ismar Gatto, alagoano de posses, pai de um amigo rico, Márcio. Lá, o rapaz sem recursos financeiros, mas pleno de musicalidade latente, ouviu de tudo.
“Fui de Luiz Gonzaga a Beatles. Ouvi música africana, flamenca, R&B, música francesa, música italiana...”, lista, para completar em seguida: “E ouvi o jazz... Ouvi Charlie Parker, as grandes cantoras e cantores norte-americanos. Meu canto foi delineado pelos cantores de jazz”, observa.
De posse de todas essas informações, Djavan começou a construir uma obra que, além de fazer a diferença, o alinhou com os compositores do primeiro time da MPB projetada na era dos festivais, na década de 1960. Virou parceiro de Caetano Veloso e Chico Buarque. “Quando Chico me ligou a primeira vez para me convidar para ir a Cuba, eu custei a acreditar que era ele” lembra Djavan. “Fomos a Cuba, à África
e fizemos juntos ‘Alumbramento’, música-título do meu quarto disco. O Caetano eu conheci ainda antes de Chico. Caetano foi se apresentar na época do festival Abertura e quis me conhecer, ficamos amigos. Compus ‘Sina’ para ele.” Admitido no seleto clube da MPB, Djavan não reclama: “Estou há 25 anos entre os que mais arrecadam direitos autorais no Brasil. Tenho a sorte de ouvir minha música ser executada diariamente em todas as rádios”, medita. “E vejo muitas crianças e adolescentes nos meus shows. Tenho quatro milhões de seguidores no Facebook”, contabiliza, com certo exagero, já que seu número de seguidores estava por volta de 3,69 milhões em dezembro Nas redes sociais, as letras de Djavan eventualmente são alvos de piadas pelos vocábulos de versos construídos com mais ênfase na sonoridade do que no significado das palavras. Mas isso não tira o bom humor de seu compositor. “Minha escrita não é convencional. Não estou ligado a modismos nem a conceitos literários. Meu som é feito obedecendo à sonoridade”, explica. “Com preguiça de parar para analisar as letras, dizem qualquer coisa”, argumenta o compositor de “Açaí”, uma “letra inventiva” na visão dele.
Embora tenha integrado o polêmico grupo Procure Saber, que defendeu a manutenção da lei contra a publicação de biografias não autorizadas, Djavan tem hoje um discurso mais flexível. “Muita coisa foi distorcida. A imprensa cometeu o erro grave de não respeitar a liberdade de expressão dos outros. Mas todo mundo errou naquela discussão. Nunca fui a favor da proibição de biografias não autorizadas. A gente também precisa saber das coisas de maneira não oficial”, pondera.
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Se a biografia de Djavan vier a ser escrita, o autor terá que enfatizar a postura reclusa do artista, refratário às badalações. “Sou avesso a essa coisa de aparecer por aparecer. Eu sempre busquei viver de forma reservada. Minha mãe sempre me dizia: ‘Filho, você tem que saber onde está pisando’. Preservo minha imagem. E gosto de estar com minha família”, diz Djavan, pai de cinco filhos, tendo o caçula, Inácio, apenas 8 anos.
“Inácio é muito musical, canta em inglês, mas está dividido entre a música e o futebol”, conta o coruja Djavan, que também foi um menino apaixonado por sons e pelos jogos de bola travados nos campos amadores de sua Maceió. Adolescente, teve que aprender a driblar o racismo entranhado na sociedade brasileira. “Se você não tem a experiência pessoal, se não sentiu na pele, você não pode saber o que é ser negro. Essa questão do racismo está longe de ser superada. É uma questão cultural. Você não vê muitos negros em cargos importantes das esferas pública e privada. E a população brasileira é formada por 52% de negros. Essa é uma luta que não vai acabar nunca, o negro vai ser lembrado de que é negro do nascimento até a morte”, diz Djavan, a favor das cotas raciais – segundo ele, um mal necessário, que cria oportunidades iguais. Sim, Djavan acredita que, se fosse branco, teria tido mais facilidade no início da carreira com suas canções estranhas que, decorridos 40 anos, continuam a fazer salutar diferença na música brasileira.