Cat Power escreveu algumas das canções mais tristes e desesperadas da história. Mas conseguiu, enfim, controlar seus próprios demônios
Por Brian Hiatt Publicado em 09/04/2008, às 14h31 - Atualizado em 15/05/2008, às 18h32
Chan Marshall está entocada em um quarto de hotel do SoHo, em Nova York, com o amor de sua vida. Os lençóis estão amassados. Há bandejas de serviço de quarto por todos os lados, cobertas com os resquícios de suas últimas refeições - pratos de frutas comidas pela metade e garrafas de cerveja vazias. Neste momento, ela é a pessoa mais feliz do mundo. Enquanto o sol de fim de tarde tenta atravessar as persianas, Marshall rola sobre os lençóis verde-claros com sua amada: um buldogue francês fêmea chamado Mona. "Você ama sua mamãezinha?", pergunta com voz infantil esganiçada. "Ama?" Mona oferece um grunhido em resposta, pula da cama e sai batendo as unhas no piso de madeira.
Marshall, 36 anos - que, com o pseudônimo Cat Power, compôs e cantou algumas das canções mais lindas, tristes e melancólicas dos últimos dez anos -, alinha a coluna e dá risada. "Ganhei de presente no Natal [de 2006] - ela parecia um saco de batata adormecido", recorda com sua voz verdadeira, sussurrada, musical, com vestígios do sotaque sulista de sua infância. "Ela era assustada, tremia o tempo todo e ficava com os olhos enormes, arregalados."
Mona não tem mais medo de nada. E sua dona também não, apesar de ainda guardar certo ar de fragilidade. Marshall beberica chá de camomila, que, segundo ela, tem gosto de chiclete, e fuma o primeiro de uma série infinita de cigarros. Há círculos cansados sob seus olhos castanhos. Ela é magra, talvez magra demais, e bronzeada, talvez bronzeada demais. Não está maquiada e usa uma camiseta xadrez larga que parece ter pertencido a um namorado; a barra do jeans desbotado está arregaçada, como se estivesse pronta para enfiar os pés em alguma coisa desagradável, revelando um par de meias felpudas, brancas e confortáveis. Marshall parece não conseguir se livrar do que, reconhece, é um hábito que a acompanha pela vida toda: sempre repete a mesma pergunta sofrida a qualquer pessoa que esteja em sua presença - "Você está bravo comigo?".
Durante mais de uma década gravando como Cat Power, Chan (que se pronuncia "Shawn") Marshall conquistou o tipo de crescimento artístico antiquado que poucos músicos de sua geração obtiveram; passou de canções toscas e um pouco desconectadas sobre dor à flor da pele até sua obra-prima de 2006, The Greatest, com um clima bem acabado de soul, composição vistosa e desesperadora e vocais regados a uísque e mel. Mas, mesmo antes de sofrer um colapso nervoso movido a álcool, em janeiro de 2006 - durante o qual parou de comer e de beber e começou a ter alucinações com pirâmides gigantes -, ela corria o risco de se tornar mais conhecida como louca inveterada do que como artista.
Sua reputação nos shows era tragicômica de tão horrível, mais para Ol' Dirty Bastard do que para Joni Mitchell. Nas melhores noites, se escondia atrás do cabelo, discutia com o técnico de som, interrompia as músicas, chorava, bebia; nas piores - em seu famoso show de 1999 em Nova York, para ser exato - ela acabava encolhida em posição fetal na beira do palco (mas é preciso ser justo: esse episódio específico foi motivado pelo pavor de um homem muito real que a perseguia de arma em punho).
O surto de Marshall em 2006 teve a mesma origem sombria que as canções de The Greatest: ela ficou deprimida depois de terminar com Daniel Cury, modelo que ainda chama de amor de sua vida. Estava pronta para morrer - mas desistiu de seus planos porque viu um anúncio de um álbum de Mary J. Blige que queria escutar. Acabou passando sete dias infernais na ala de pacientes com problemas mentais e relacionados a tóxicos de um hospital de Miami no início de 2006 e saiu de lá transformada, apesar de não ter ficado exatamente sóbria, como atestam as garrafas de cerveja em seu quarto (ela despreza o Alcoólicos Anônimos e pratica seus próprios métodos de controle de moderação).
Chan Marshall começou sua turnê com a Memphis Rhythm Band, os veteranos de southern-soul que gravaram The Greatest com ela, e deixou seu público chocado: de repente, transformara-se em show-woman, ficou até espalhafatosa, começou a dançar no palco em vez de chorar. "Foi como se tivesse acordado", diz, abrindo o sorriso que explica por que os fotógrafos de moda se apaixonaram por ela há anos. "Agora me sinto mais eu, mais capaz. E menos resignada a ficar escutando aquele questionamento juvenil negativo, debilitante, nervoso." Amigos percebem as mesmas mudanças. "Os demônios dela estavam um pouco fora de controle - agora ela ficou amiga deles", comenta Judah Bauer, do grupo Jon Spencer Blues Explosion, que conhece Marshall há uma década e toca guitarra em sua banda atual. "Ela está tomando a direção da própria vida."
Marshall está em Nova York, em um raro mês de férias: passou um tempo em seu apartamento em Miami, saindo com amigos, assistindo ao que chama de "minhas Oprah e Tyra" e passeando com Mona na praia ao amanhecer e ao entardecer. Tem um álbum pronto, Sun, que fala sobre a dor e a alegria de seu renascimento - mas esse ainda vai demorar um pouco para ser lançado. "Porque estas músicas [novas] significam muito para mim. E não quero mexer nas minhas feridas neste momento. Vou fazer o que me deixa feliz agora, porra." Então, em vez disso, lançou, em janeiro deste ano, Jukebox, uma coletânea de covers cheia de estilo e clima, dominada por canções que ouviu na infância: faixas de James Brown ("Lost Someone"), Joni Mitchell ("Blue"), Billie Holiday ("Don't Explain") - e até de Frank Sinatra ("New York, New York").
Com apoio de uma nova banda, a Dirty Delta Blues (que inclui seu baterista de longa data, Jim White, um dos roqueiros indies australianos do Dirty Three, além de Judah Bauer), Jukebox oferece uma visão menos acabada do clima soul-&-country de The Greatest. No todo, não tem relação alguma com Covers Record (2000), que trazia remakes praticamente irreconhecíveis. "Com todos os meus outros discos, sinto certa pena da pessoa que os compôs", lamenta Marshall. "Todo mundo diz que adora The Greatest, mas minha voz não estava forte, eu estava mal. Então, sinto que Jukebox é o meu primeiro álbum - apesar de saber que isso pode soar idiota e infantil. Foi a primeira vez que gravei feliz. São músicas que me deixam feliz."
No dia seguinte, Marshall está no banheiro de seu quarto de hotel, fazendo xixi com a porta aberta, despreocupada. Sem maiores constrangimentos, ela conta que não precisa do tipo da mística que envolve Bob Dylan, um de seus ídolos. "Não há mistério", solta. "Não tenho nada a perder por falar." E acaba de relatar, em detalhes agonizantes, seu arrependimento pelo aborto que fez aos 20 anos - escreveu pelo menos uma música, "Nude as the News", a respeito do filho que, está convencida, deveria ter tido. "Foi o maior erro que já cometi", reconhece.
Marshall não é muito de respeitar limites, e isso ajuda a explicar seu talento para criar uma intimidade que desarma seus fãs e praticamente todo mundo que a conhece. Quando me encontro com ela pela segunda vez, está usando meu cachecol, que sem querer deixei lá no dia anterior. Enquanto Marshall conta histórias de sua vida - muitas delas perturbadoras, como um incidente em 1998 quando acredita ter visto centenas de espíritos malignos se arrastando pela janela no meio da noite -, vai seguindo uma lógica de narrativa que é, às vezes, excêntrica. Passa por vários sotaques: britânico, francês e sul-africano, juntamente com variações das inflexões sulistas de sua infância. Continua sendo a menina travessa que foi quando criança: arrota repetidas vezes, sem dar a mínima, e cutuca o nariz. No todo, ela é um monte de pequenas esquisitices tão obscuras e charmosas que nem parece de verdade: lembra um personagem exagerado de um filme independente que não se sabe muito bem se é comédia ou drama (por acaso, Maggie Gyllenhaal estava no lobby do hotel - elenco perfeito). Apesar de toda a sinceridade de Marshall, há um assunto que ela não discute. Um psiquiatra diagnosticou um distúrbio pós-traumático devido a uma ou mais coisas que aconteceram na infância da cantora. Ela foi criada em estilo errante, passando da mãe para o pai e vice-versa. Mas só fala por cima sobre "violência" em seu histórico, diz que o que aconteceu é "comum", sem maiores detalhes.
Marshall vem de uma longa linhagem de alcoólatras marcados pela pobreza. A bisavó materna era uma espécie de bóia-fria que colocou sua avó para colher algodão aos 5 anos, apesar de os dedinhos da menina sangrarem por causa dos espinhos. Os pais de Marshall se conheceram em um show, em Atlanta, de uma das bandas de bar em que seu pai, músico, tocava. "Diz a lenda que ele levou uma garota chamada Nancy para casa naquela noite e daí pediu o telefone da minha mãe para essa Nancy", conta. "E o meu pai disse que ela era a mulher mais bonita que já tinha visto."
Chan nasceu em 1971, quando seus pais ainda eram adolescentes. Eles se separaram quando ela era bebê e a vida ficou difícil. Sua mãe se casou com um empresário - outro músico de bar - e os dois se mudaram para o sul, enquanto seu pai ficou em Atlanta. Marshall se lembra do pai e do padrasto tocando blues com guitarra - o tipo de riff clichê que até hoje ela se recusa a tocar. Também se lembra do pai expulsando-a do piano quando era muito pequena, dizendo que não era brinquedo. Drogas e álcool estavam sempre em cena: ela tomava cerveja de mamadeira e via familiares fumando baseado na sua frente. Parou de acreditar em Deus aos 7 anos.
E, quando chegou ao ensino médio, estava confusa. "Eu era suicida, sabe como é, não tinha amigos. Simplesmente comecei a usar LSD e a fumar muita maconha e a beber tudo que conseguia engolir. Fui presa por roubar em loja, minha mãe me mandou para meu pai. Ficava viajando o dia inteiro e a noite toda." Ela repetiu o 1º ano e largou os estudos quando o apartamento do pai ficou cheio demais: uma namorada nova tinha se mudado para lá. Marshall precisou arrumar um lugar para morar e arranjou um emprego em tempo integral.
Acabou trabalhando durante três anos em uma pizzaria de Atlanta chamada Fellini's, rodeada de tipos tatuados, muitos deles músicos - "umas coisinhas lindas". "Ela estava no lugar certo, porque todo mundo com quem ela trabalhava lá tinha uma história difícil", explica Clay Harper, seu ex-chefe. "E tinha muita vida e muito caráter. E era boa para os negócios porque também era bonita." Um dia, em um ímpeto, comprou uma guitarra Silvertone e um amplificador pequeno de uma de suas paqueras e colocou ao lado do futon em seu apartamento minúsculo. No final, em vez de ouvir um dos três discos que colocava para tocar o tempo todo em seu som barato - This Girl's in Love with You (1970), de Aretha Franklin; The Lion and the Cobra (1986), de Sinéad O'Connor; e Blue (1971), de Joni Mitchell -, começou a aprender a tocar sozinha. Logo entrou para uma banda horrorosa e barulhenta chamada Cat Power. Depois de cada vez mais amigos começarem a usar heroína, com algumas mortes, Marshall se mudou para Nova York. Começou a tocar de novo e conseguiu um trabalho de destaque abrindo para Liz Phair em 1994. O nome Cat Power (tirado de um boné Cat Diesel que alguém usou no Fellini's) pegou, apesar de a banda ter se desmanchado.
Em abril do ano passado, Marshall conheceu Bob Dylan em um de seus shows em Paris. A julgar por "Song to Bobby" - a única composição nova em Jukebox -, foi uma experiência cheia de emoção. "Finalmente nos conhecemos", Dylan disse. Quando encontrara outra heroína sua, Patti Smith, alguns anos antes, estava bêbada e deprimida demais para se abrir; com Dylan foi diferente. "Eu te amo", Marshall disse a ele. "Gostei disso", Dylan respondeu. "Pelo menos alguém me ama." Desde os 9 anos, ela sentia uma conexão profunda com Dylan, quando encontrou seu Greatest Hits (1967) entre as músicas de seu pai - onde mais tarde descobriria Otis Redding, Billie Holiday, Buddy Holly e os Stones. Mas o álbum de Dylan era especial. "Ele estava sozinho naquela capa azul", recorda Marshall. "Parecia que estava cantando para mim."
A única outra faixa de Jukebox que não é cover é "Metal Heart", escrita e gravada para seu quarto álbum, Moon Pix (1998). A versão original é lenta e quase insuportavelmente triste, a história de uma pessoa que perde a razão de ser e se isola do mundo: constrói um coração de metal. A versão nova é muito mais bem tocada e mais bem cantada - mas, no fim, também é desafiadora, talvez triunfal: Marshall urra: "Metal heart, you're not worth a thing" [coração de metal, você não vale nada], com voz purificadora.
Ela ainda tem coração de metal? A noite começa e as luzes do quarto de hotel são fracas. Marshall reflete sobre essa pergunta enquanto Mona dorme ali ao lado. Está usando uma camisa verde-claro abotoada até em cima, com o cabelo preso em um rabo-de-cavalo - é estranho: se parece com Patti Smith em seu modo Dylan ou com Cate Blanchett em Não Estou Lá (2006). "Não tanto", ela retruca, então sacode a cabeça. "Quer dizer... É, acho que faz parte de quem eu sou."
"Não vou mexer nas minhas feridas neste momento. Vou fazer o que me deixa feliz agora, porra"
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