Agentes da Agência Brasileira de Inteligência, os chamados arapongas, denunciam na internet a crise que assola a instituição, retratam a falta de rumo do órgão e um certo apego da Abin à ditadura military
Lucas Figueiredo Publicado em 09/11/2007, às 13h22 - Atualizado às 13h37
"Se os repórteres entrassem aqui, (...) a fachada da Abin iria por água abaixo." A mensagem, assinada por alguém que se identifica como Desmascarador, era uma entre tantas outras postadas nos fóruns de discussão que pipocam a cada dia patrocinados por funcionários e ex-funcionários da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) - nome e sigla atuais do serviço secreto do Brasil. As salas virtuais onde os arapongas se encontram surgem do nada, crescem como hera e, na maioria das vezes, desaparecem sem deixar rastro. No tempo em que permanecem no ar, entretanto, retratam a fase difícil pela qual passa a Abin.
Nas rodas virtuais de que Desmascarador, mais conhecido nos fóruns do serviço secreto como Desma, participa, ninguém se importa em saber o que é real ou inventado na sua sua ficha-perfil ou identidade. Afinal de contas, segredo é a chave do negócio dessa turma. Todos ali (Desma, Maria Cláudia, Mestre, JClayton, Flobela Dalma, Agente 86, Almeida, 4366, Sun Tzu BR, entre outros) são agentes secretos.
No ano em que o serviço secreto brasileiro completa 80 anos, muitos de seus agentes resolveram usar a internet para debater (e denunciar) a crise que assola a instituição.
Nos fóruns, os agentes tratam de temas como a evasão contínua de pessoal causada pelo descontentamento, a falta de rumo da instituição, os baixos salários e um certo apego do órgão ao passado negro da ditadura militar. É roupa suja que não acaba mais. Segui a dica de Desma e durante quatro meses, guiado por uma fonte da Abin, visitei diariamente oito fóruns virtuais mantidos por agentes e ex-agentes secretos. Depois de ler centenas de mensagens, a conclusão é uma só: a barra está pesada.
E pesada para todo mundo. A crise de identidade no serviço secreto não fica restrita ao corpo de agentes. Atinge também a cúpula do órgão. Para comemorar os 80 anos da atividade de inteligência no Brasil, a direção da Abin produziu recentemente uma cartilha com a história da instituição. Em vez de se ater aos fatos, entretanto, a cúpula do órgão optou por reescrever, com tintas mais amenas, o que aconteceu com o órgão nessas oito décadas (e sobretudo o que ele fez acontecer). Em resumo: para tornar seu passado menos sombrio, o serviço secreto encarnou Poliana. Assim, o que era pecado virou virtude. O desvio dos homens foi tratado como caminho natural das coisas. A anomalia se tornou uma regra. E a tragédia, uma realização a ser contemplada.
Somando a delirante releitura da História feita pela direção da Abin com a catarse pública de seus agentes, o quadro final sugere que o problema é coisa para ser resolvida em divã. O serviço secreto, por assim dizer, perdeu o eixo.
Ao contrário do que se poderia imaginar, a quase totalidade dos fóruns virtuais freqüentados por agentes secretos brasileiros é aberta ao público. Para se ter idéia do que isso representa, basta ver o que acontece neste momento nos Estados Unidos. As agências de inteligência norte-americanas, incluindo a CIA, se preparam para ingressar, a partir de dezembro, no A-Space, uma comunidade on-line criada para que agentes de diferentes órgãos possam trocar informações com segurança. Dividido por área de interesse (terrorismo, narcotráfico, lavagem de dinheiro etc.), o A-Space terá acesso restrito, ou seja, quem não for agente secreto não entra. Mesmo com todos os cuidados tomados para barrar a entrada de estranhos, a iniciativa está sendo definida dentro da própria CIA como "o pesadelo da contra-informação" (contra-informação é área encarregada de evitar a espionagem inimiga).
Se nos EUA é assim, no Brasil a coisa é diferente. É fácil entrar nas salas de bate-papo da comunidade de inteligência brasileira. Difícil, porém, é encontrá-las. A vida útil dos fóruns é curta, e seus freqüentadores vivem pulando de um endereço virtual para outro. Nos quatro meses em que rastreei conversas dos agentes secretos na internet, quatro salas foram fechadas sem aviso prévio. Do dia para a noite, fóruns que antes davam acesso a discussões acaloradas (como Abin Discussão, Inteligência Civil e Abin Vale Tudo, hospedados no Yahoo) passaram a exibir a irritante expressão "grupo não encontrado". Dos fóruns que permaneceram na ativa, destacam-se o Analistas da Abin e o Carcará Sanguinolento.
O Carcará Sanguinolento é onde a turma pega mais pesado. Foi criado em abril deste ano pela Associação dos Servidores da Abin (Asbin), entidade que reúne agentes secretos e que, historicamente, mantém uma relação conflituosa com a direção da Abin. Maria Cláudia (a da foto da Shakira) é uma das freqüentadoras do fórum, assim como X Files, Milico, Alvinegro, Coisoruim, LeCarrè e Honesto.
No mesmo dia da inauguração da sala virtual, ASDF fez o seu registro. E, no único comentário que postou, foi direto ao ponto: "Creio haver uma crise de identidade no órgão". ASDF citou especificamente a "luta fratricida" entre os servidores da Abin, os constantes vazamentos de informações e o descrédito do serviço secreto perante a sociedade.
Outro que joga suas críticas no ventilador é o presidente da Asbin, Nery Kluwe, o único agente que se identifica no fórum com seu nome e sobrenome verdadeiros. "A agência tem um gene de que o governo não gosta. O gene do passado, o gene do araponga, que, antes de ser um observador apto e competente dos fatos, vive de bisbilhotar, de atemorizar, de constranger, de impedir o exercício de direitos, de maldizer, de pré-julgar, enfim, de agir atabalhoadamente, inspirado numa crença inarredável de sua própria idiotização e mediocrização", escreveu Kluwe num de seus muitos posts explosivos.
Desde a inauguração do Carcará Sanguinolento, o dirigente usa o fórum para bater forte na direção da Abin. "Vivenciamos falta de gestão, formação deficiente, relacionamentos complicados, soberba, entulho autoritário dos tempos negros da História, afronta aos direitos e às garantias fundamentais, assédio moral, enfim...". Em outra mensagem polêmica, Kluwe relacionou a inércia da Abin, que pouco produz hoje em dia, com os baixos salários pagos aos agentes: "Se ao que parece fingimos que trabalhamos, o Governo, a seu turno, finge que nos paga". Kluwe, no entanto, também apanha nos fóruns. Já foi acusado por seus colegas de vazar informações da Abin para a imprensa e de criticar muito mas fazer pouco para debelar a crise no órgão. "Todas as reclamações são bem-vindas. Gostamos de porrada (de levar e dar)", respondeu ele, num post, ao ser criticado por Thumper.
A crise atinge, em especial, os novos agentes. Desde 1994, o ingresso no serviço secreto é feito mediante um concorridíssimo concurso público - uma exigência algo bizarra da Constituição. A peneira é fina. Os candidatos a James Bond tupiniquim têm de dominar pelo menos uma língua estrangeira e ter curso superior. O salário inicial, contudo, é baixo: cerca de R$ 3.500, líquido.
Além do incentivo financeiro pouco expressivo, a jovem guarda do serviço secreto se depara com uma instituição sucateada e dirigida por veteranos do antigo Serviço Nacional de Informações (SNI), o avô da Abin que serviu de sustentáculo à ditadura militar (1964-1985). Nesse contexto nada promissor, os chamados "concursados" ainda são impedidos de ascender aos cargos mais altos, sobretudo àqueles ligados à área de operações (ou seja, as atividades de espionagem). Na maioria das vezes, eles ficam lotados em áreas mais burocráticas, processando informações de fontes abertas. Em outra palavras, lendo jornais, revistas e publicaçõs especializadas do Brasil e do exterior.
O resultado é um descontentamento gigantesco entre os agentes da nova geração - descontentamento que se transforma em índices de evasão de até 70% nas turmas aprovadas em concurso. "Quer entrar na Abin para ser o quê? Administrador? Tradutor? Instrutor de idiomas? E nada mais? Ou pensam em executar uma atividade de espionagem de Estado propriamente dita? É bom avisar para que não entrem numa furada e se frustrem, se acaso seu objetivo for atuar de verdade como agente secreto", alertou Desmascarador numa mensagem dirigida aos candidatos a agente secreto, assíduos freqüentadores dos fóruns.
Como dois terços dos novatos acabam tirando o time de campo e o outro terço não tem chances de ascensão, a Abin vem experimentando, nos últimos anos, uma atrofia perigosa. De 5 mil funcionários no início da década de 1980, auge dos tempos do SNI, restam hoje cerca de 1.500, muitos deles à beira da aposentadoria. O fosso entre a nova e a velha guarda, aliado à falta de clareza quanto ao papel institucional da Abin no pós-ditadura, vem provocando uma paralisia no serviço secreto. Em poucas palavras: as atividades clássicas de espionagem são coisa cada vez mais rara na Abin.
A inércia do serviço secreto é um tema recorrente nos fóruns. Que o diga Milico. "Para corroborar com a opinião de todos, declaro que na minha unidade nada se faz", escreveu o araponga, no Carcará Sanguinolento, às 9h08 do dia 1º de junho. Mais explícito ainda foi Kluwe: "Se não nos insurgirmos contra esse malsinado processo de fazer inteligência com a bunda na cadeira e o dedo na internet, somos desonestos com o país, com a agência e com nós mesmos!".
Outro campeão de audiência nos fóruns dos arapongas são as medidas implementadas por Márcio Paulo Buzanelli, diretor-geral do serviço secreto demitido no início do mês passado. Nos dois anos de sua turbulenta gestão, uma das principais realizações da Abin foi um programa que visava aproximar a agência das crianças e dos adolescentes. Um dos frutos dessa iniciativa é uma revista em quadrinhos em que o personagem principal, Agente Jovem, conversa com um cachorro chamado Paco (o mesmo nome do cão de Buzanelli), escapa de jacarés na Amazônia e ajuda a prender contrabandistas de animais silvestres. Não pára por aí. No site da agência (www.abin.gov.br), foi criado um teste para crianças com perguntas do tipo "Qual é a cor do cavalo branco de Napoleão?".
Buzanelli instituiu também uma nomenclatura nova para os cargos do serviço secreto, inspirada nas Forças Armadas. Com a mudança, o diretor-geral passou a ser chamado de comandante, os agentes são tratados por oficiais, os funcionários de nível mais baixo são subcomissários e assim por diante.
Oficial da reserva do Exército, da arma de infantaria, Buzanelli também criou um hino para a Abin. Ele próprio fez a letra e depois montou uma parceria com o general Paulo Uchôa, titular da Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), que fez a música. Em tom marcial, o hino é de fazer inveja nos quartéis. A gravação original é executada por uma banda militar, com fartura de pratos, taróis e uma poderosa tuba. A canção tem passagens como "Nós somos da inteligência brasileira/Anônimos heróis na busca da verdade/Servir sempre em silêncio temos por bandeira/E à pátria consagrar nossa lealdade" e "A Abin é a luz forte que dissipa a escuridão/Desfaz as incertezas e desvenda o sorrateiro" ou ainda "Salve! salve! a nossa pátria brasileira/Orgulho temos nós em tê-la num altar". Aos amantes da música trash-verde-oliva, vale a pena ouvir o hino, disponível no site da Abin: abin.gov.br/modules/mastop_publish/?tac=Protocolo_e_Cerimonial#Hino.
A canção, é claro, não poderia passar batida nas discussões virtuais dos agentes secretos. O araponga que se esconde sob o pseudônimo Carcará Sorrateiro (não confundir com o fórum Carcará Sanguinolento) fez uma versão do hino e, como mostram dois trechos da letra, a intenção foi das piores: "Nós somos da insipiência brasileira/Anônimos bocós em busca de copiar/Servir sempre em silêncio temos por arreios/E ao marechal fingimos nossa lealdade" e "Abin é a cruz pesada que temos de carregar/Copiando e colando - tudo muito sorrateiro".
O pseudônimo escolhido por Carcará Sorrateiro é uma referência jocosa ao símbolo da Abin, outra criação da lavra de Buzanelli. Desde 2005, o serviço secreto brasileiro é representado pelo carcará, espécie de falcão, encontrado na América do Sul, celebrizado na possante voz de Maria Bethânia ("Carcará, pega, mata e come&"). A escolha do carcará não agradou a todos, como mostram os fóruns dos arapongas (aliás, outra ave, conhecida pelo grito estridente). "Não é à toa que a ave-símbolo da atual gestão é o carniceiro gavião carcará, ave que disputa território com urubus", escreveu Libertas. Kluwe vai na mesma linha: "O carcará é uma ave carniceira, que inclusive come seus próprios companheiros. (&) Se nossa ave-símbolo devora os próprios companheiros, o que podemos esperar dos companheiros do governo?".
Se dependesse de Carcará Sorrateiro, como ele próprio expôs em suas inconfidências virtuais, seriam outros os personagens a representar a Abin: o inesquecível Agente 86, o não menos desastrado agente Austin Powers, além dos Três Patetas e do boneco Pinocchio. Moral baixa é isso aí. "A Abin não faz nada. (&) O trabalho se resume a elaborar relatórios baseados em informações da imprensa e em alguns poucos dados de origem duvidosa, coletados, em sua maioria, por outros órgãos", afirma ele.
Durante os preparativos dos Jogos Pan-Americanos no Rio, a baixa produção da Abin foi um tema constante. No dia em que o Jornal Nacional, da TV Globo, exibiu uma reportagem mostrando o Centro de Inteligência dos Jogos (CIJ), coordenado pelo serviço secreto, choveram comentários maliciosos. O primeiro post foi de Milico: "Apareceu (na reportagem) até o grandão que faz o malote no Rio, e o carcará-mor (Buzanelli) com aquele velho discurso de segurança nacional, informação, estratégia. Dizem que vai haver uns telões lá mostrando toda a movimentação. Que movimentação? Alguém tem noção da movimentação que vai haver nesse Pan no Rio? Esse pessoal vai ficar é vendo os jogos, ficar o dia inteiro na internet. Imaginem a final do vôlei ou do futebol com a presença do Brasil. Alguém acredita que eles (agentes designados para o CIJ) não vão ficar vendo os jogos? Isso tem de ser motivo de piada geral na comunidade de inteligência. Só o Brasil mesmo para mostrar (na TV) a sua central de inteligência. Na verdade, não passa de pura propaganda e muito mal feita. Viram só as telinhas de computador com o logotipo do carcará, tudo bonitinho? Viram só as plaquinhas azuis de terrorismo, crime organizado? A Abin analisando crime organizado no Rio de Janeiro? Fala sério!".
Carcará Sorrateiro foi na mesma linha: "A Abin vai para o Pan-2007 fazer figuração. Quem vai garantir mesmo a segurança são as polícias e as Forças Armadas. Mas a presença da Abin é importante, pois vai render diárias para os apadrinhados". O comentário recebeu o apoio de Zimmermannac: "O pessoal que está indo agora para o Pan só vai para curtir uma viagenzinha lúdica. As vagas foram disputadas no tapa. O pessoal só está se preocupando em não esquecer a roupa de banho e questões de hospedagem para a curtição total. Trabalho que é bom, nada. Analistas que já estiveram previamente nas instalações do CIJ constataram que na estrutura montada praticamente não há nada para a Abin fazer, a não ser aparecer na foto, como sempre. Tudo que possa ocorrer nos jogos já está devidamente dividido entre os órgãos que realmente vão agir em caso de anormalidades. A Abin não faz nada, como é de praxe".
A Rolling Stone pediu ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI), a quem a Abin é subordinada, que comentasse as críticas expressas nos fóruns virtuais dos agentes secretos. A resposta foi lacônica: "As observações (&) não expressam o pensamento do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República nem da Agência Brasileira de Inteligência".
A verdade é que a agência se preocupa (e muito) com a lavação de roupa suja em público promovida por seus agentes. Em dezembro do ano passado, por meio da portaria número 472, a Abin instituiu um código de ética em que impõe a lei do silêncio entre seus servidores. Além de, enfática e reiteradamente, proibir os agentes de revelarem informações do serviço secreto, o código estimula os servidores da Abin a denunciar colegas responsáveis por vazamentos. Nas 12 páginas do código, os agentes são lembrados nove vezes do dever de resguardar informações internas e denunciar aqueles que não o fazem. O artigo 5º alerta que "o servidor da Abin deve zelar pela imagem de sua instituição, garantindo a preservação do sigilo das informações e dos métodos e técnicas operacionais". O estímulo à denúncia aparece várias vezes. Só no artigo 7º, a obrigação de delatar possíveis gargantas profundas é estabelecida quatro vezes. No trecho relativo aos deveres dos servidores, é imposto como norma "ser leal para com a sua instituição e dar conhecimento imediato à autoridade superior de qualquer fato relativo aos interesses" da Associação Brasileira de Inteligência. O código de ética estabelece três sanções para quem violar as normas: censura, encaminhamento do caso à direção geral para abertura de processo administrativo e exoneração daqueles que ocupam cargo de confiança.
Os fóruns, como não poderia deixar de ser, também refletem a preocupação da direção da Abin com a segurança interna. Numa mensagem postada em maio, decorada com uma carinha triste cercada de interrogações, Agente 86 escreveu o seguinte: "Gostaria de sugerir que este fórum (o Carcará Sanguinolento, da Abin) fosse de acesso restrito aos servidores cadastrados, pois acho uma vulnerabilidade tratarmos de assuntos sensíveis em um espaço passível de acesso a qualquer um".
A sugestão foi rechaçada. Revelações foi o primeiro a discordar do colega. "Sugiro que não se feche à sociedade este fórum. A sociedade é que nos sustenta com seus impostos e não me parece correto deixá-la no escuro ou bloqueada no que se refere ao futuro e ao presente da Abin". Kluwe, a quem caberia a decisão final sobre o assunto, descartou a possibilidade de restringir o acesso ao fórum: "Cada um de nós deve ter em mente os estritos limites da confidencialidade ou não dos assuntos abordados. Se auto-censurem, se assim o desejarem. O fórum não censurará ninguém (&). Qualquer perspectiva de cerceamento seria odiosa e inaceitável".
A atitude de confronto assumida por Kluwe já lhe valeu um processo administrativo por suspeita de vazamento de informações sigilosas. Nada, porém, foi provado. O que é certo é que o agente não perde uma oportunidade de zoar com a falta de rumo da Abin. No ano passado, a Associação dos Servidores da Abin fez uma enquete em seu site em que perguntava quem deveria ser o novo diretor-geral da agência. Seis opções foram colocadas à disposição:
A) Um profissional do quadro;
B) Um servidor estranho ao quadro;
C) Sargento Garcia;
D) Zorro;
E) O cachorro Muttley, parceiro de Dick Vigarista;
F) O cão Paco (o personagem do gibi da Abin).
Muttley largou na frente e logo estava disparado na liderança. Foi quando a direção da Abin decidiu recuar e alterou a enquete. Assim, restaram somente as opções A e B, as mais recatadas. "Modifiquei em razão de um pensamento, minoritário e conservador, que achava que nós estávamos avacalhando", explicou Kluwe na época.
(Uma explicação: Muttley - aquele que sempre pede medalha, medalha, medalha - era mais uma referência à gestão Buzanelli, que mandou fazer medalhas para condecorar servidores que se destacam e "personalidades" de fora do serviço secreto. Os galardões estão disponíveis em 17 versões.)
Enquanto agentes secretos passam os dias a maldizer o presente da agência, sua cúpula briga com o passado. Para comemorar os 80 anos da atividade de inteligência no país, a Abin produziu uma cartilha para contar a história do órgão. O problema é que o texto não se fixa, digamos, apenas na realidade. O início até que vai bem: conta como o embrião do serviço secreto foi criado em 1927, dentro do Conselho de Defesa Nacional, pelo presidente Washington Luís, e relembra o primeiro nome do órgão, instituído em 1958 - Serviço Federal de Informações e Contra-informação (Sfici). Daí em diante é que vêm os escorregões.
De acordo com a cartilha, no auge da Guera Fria, o Sfici "começou a atuar cooperativamente com os países do chamado bloco ocidental". Huummm, não foi exatamente assim que a coisa se deu. A criação do Sfici, pelo presidente Juscelino Kubitschek, foi, na verdade, uma imposição dos Estados Unidos, transmitida pelo então secretário de Estado, John Foster Dulles. Uma comitiva brasileira chegou a viajar aos EUA para aprender, com o FBI e a CIA, técnicas de caça aos comunistas. (Um dos integrantes da comitiva era o jovem capitão Rubens Bayma Denys, que mais tarde se tornaria general e ministro de Estado nos governo José Sarney e Itamar Franco.) Um agente da CIA, Alfred Pease, que acompanhou a comitiva brasileira durante todo o tempo, foi posteriormente deslocado para o Rio de Janeiro, onde passou a dar plantão no Sfici. Ou seja, cooperação não é o substantivo mais apropriado para retratar a relação existente, no final de década de 1950, entre o serviço secreto brasileiro e o governo dos Estados Unidos. Subserviência talvez seja mais adequado.
A cartilha da Abin se perde de vez quando trata de temas relacionados à ditadura. Para início de conversa, o golpe militar, que inaugurou 21 anos de trevas no país, é descrito da seguinte maneira: "O Brasil, no início da década de 1960, apresentou um cenário interno bastante conturbado, gerando manifestações de segmentos da sociedade. O quadro evoluiu para uma intervenção militar no processo político nacional em 1964". O discurso é empolado, mas só serve mesmo para enrolar. "Intervenção militar" é golpe, e ponto final. E golpe militar em regimes democráticos - é preciso que se diga isso com todas as letras - nunca é a evolução de um quadro, mas sim interrupção. Sorte nossa que a cartilha da Abin não é adotada nas aulas de História.
A agência também pisa em ovos ao falar do seu antecessor, o famigerado SNI. A cartilha diz, por exemplo, que o Serviço Nacional de Informações operava com base num "ordenamento jurídico" próprio, criado "em face das exigências conjunturais". Errado! O que aconteceu de fato foi que, na tentativa de justificar o injustificável, os governos militares baixaram inúmeras normas e diretrizes para o SNI. Era como se o crime passasse a ser legal. Com base nesse "ordenamento jurídico", o SNI vigiou e perseguiu os adversários do regime e forneceu suporte aos órgãos da repressão, responsáveis pela tortura de milhares de pessoas e pelo assassinato de pelo menos 380 brasileiros. A cartilha também oculta que o fundador do SNI, general Golbery do Couto e Silva, rejeitou a própria cria, na década de 1980, dizendo a célebre frase, à la doutor Victor Frankenstein: "Criei um monstro".
O fim da ditadura e a redefinição dos rumos do SNI também receberam tintas amenas na cartilha da Abin. O enquadramento do serviço secreto às normas do Estado Democrático de Direito foi chamado de "depuração do organismo" com o objetivo de eliminar "de suas funções as possíveis tarefas que extrapolassem sua efetiva competência". Trocando em miúdos: o serviço secreto deixava de ditar quem ia morrer, quem seria torturado, quem seria perseguido e quem deveria deixar o país.
Ao narrar a mudança de sigla no serviço secreto, em 1999, quando o órgão passou a se chamar Abin, a cartilha também não conta toda a verdade. "Com o fim da Guerra Fria, houve um novo redirecionamento de interesses no cenário político e econômico mundial. Mudaram os inimigos e os alvos a serem alcançados", diz o texto. Que a Guerra Fria acabou, não restam dúvidas. Mas daí a dizer que mudaram os inimigos do serviço secreto já é exagero.
Diferentemente do que fazem seus congêneres de países democráticos (como a CIA nos EUA, o MI-6 na Inglaterra, o BnD na Alemanha e a DGSE na França, que só têm autorização para agir no exterior), a Abin atua dentro do território nacional, bisbilhotando a vida de cidadãos brasileiros. O foco no chamado "inimigo interno" pouco mudou. Para a Abin, os movimentos sociais continuam sendo vistos como uma ameaça em potencial ao país, um alvo a ser vigiado e combatido, independentemente se atuam dentro ou fora da lei. Essa visão ficou expressa na resolução final do 1º Encontro Técnico dos Serviços de Inteligência dos Países da América do Sul, patrocinado pela Abin, em outubro de 2003, ou seja, já no décimo mês do governo Luiz Inácio Lula da Silva. No documento, o serviço secreto brasileiro combinava, com seus parceiros, vigiar os movimentos que tratavam da "questão da pobreza'', por temer que eles pudessem "representar ameaças, preocupações ou desafios a interesses estratégicos dos países da América do Sul". Quer dizer, enquanto Lula inaugurava seu governo apresentando-se, no Brasil e no exterior, como líder do combate à pobreza, seu serviço secreto espionava aqueles que trabalhavam com a questão.
No mês passado, depois de quase 1.700 dias no poder, Lula finalmente deu sinais de que ele também não estava gostando dos rumos do serviço secreto. O presidente demitiu Buzanelli pelos jornais e colocou em seu lugar o delegado Paulo Lacerda, ex-diretor-geral da Polícia Federal, responsável pelas grandes operações que nos últimos anos abateram poderosos do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Com a escolha de um servidor público exemplar e, sobretudo, estranho aos quadros da Abin, Lula acena com o desejo de mudanças. Resta saber se Lacerda conseguirá domar o serviço secreto. E se o presidente de fato fará as modificações necessárias no desenho institucional da Abin, como tirar a agência do campo interno para deixá-la voltada exclusivamente para o campo externo, o que demandaria mudanças na legislação.
Se a Abin ignora os erros do passado e não consegue conter as insatisfações internas do presente, que será do futuro? A depender da agência, uma história com final feliz. Detalhe: com Thiago Lacerda no papel de galã e Sheila Mello, a ex-loura do Tchan, no lugar da mocinha.
Recentemente, na sua enésima tentativa de melhorar a imagem, a Abin resolveu investir no cinema, apoiando a produção de Segurança Nacional, longa-metragem do cineasta Roberto Carminatti ainda não finalizado. O roteiro do filme é um suspiro na vida dura que o serviço secreto tem levado nos últimos anos. Em vez de críticas internas, críticas externas e falta de autocrítica, a Abin irá aparecer muito bem na fita. Em Segurança Nacional, o presidente da República (Milton Gonçalves) aciona a agência para desbaratar uma rede internacional de narcotráfico que ameaça a segurança do país. Um dos melhores agentes da corporação (Thiago Lacerda) sai então a campo para investigar o caso, mas é pego no contrapé quando os bandidos seqüestram sua namorada (Sheila Mello) e ameaçam detonar ataques em diversos pontos do país. O mocinho então tem de salvar o país e a namorada ao mesmo tempo (original, não?). Ah, claro, não faltam carros em alta velocidade, jatos cruzando o céu azul anil de Brasília, bombas e socos, muitos socos.
Carminatti contou com a consultoria do serviço secreto e pôde filmar nas dependências da Abin, uma área gigantesca no Setor Policial Sul, em Brasília. Para compor seu personagem, Thiago Lacerda recebeu dicas de agentes secretos. Agora é esperar pelo resultado.
Conseguirá Thiago Lacerda salvar Sheila Mello e vencer os vilões? E o delegado Paulo Lacerda? Terá ele forças para domar os rebeldes da agência e colocar o bonde nos trilhos? Lula sairá bem desse enrosco? Saiba de tudo nos próximos capítulos da novela da Abin.
Lucas Figueiredo é autor da reportagem sobre o livro secreto do Exército (RS 10, julho 2007) e do livro-reportagem Ministério do Silêncio (Record, 2005), entre outros
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