Com a carreira consolidada e segura das convicções, Maria Rita diz superar comparações com Elis Regina: “Ninguém vai mexer com a minha mãe!”
Antônio do Amaral Rocha Publicado em 10/11/2011, às 12h07 - Atualizado em 15/12/2011, às 18h10
Seguindo pelo corredor que termina no espaçoso estúdio de gravação, Maria Rita cochicha para os assessores: “Olha a munição aos inimigos!” O “inimigo”, no caso, era o repórter; a munição, uma inocente garrafa do espumante Veuve Clicquot que apareceu e desapareceu misteriosamente de uma mesa de canto. Com Erikah Badu tocando ao fundo, a sessão fotográfica se desenrolou em diversas sequências de imagens com os mais variados figurinos. Alguns revelaram as tatuagens dela: uma gardênia nas costas, estrelas, a frase “Meu Brasil brasileiro” no braço direito e uma borboleta abaixo da orelha esquerda. Seis horas depois, já despida do figurino de estrela, a cantora me olha nos olhos e exulta: “Finalmente!”. Ao receber um exemplar da Rolling Stone com Amy Winehouse na capa, ela não contém um comentário. “Que coisa, não? Eu me lembro que eu estava no carro. Tinha terminado uma música dela e já tinham dado a notícia. Cara, ela morreu e eu não entendi nada!”
O local do encontro em questão é uma sala espaçosa da gravadora Trama, na zona oeste de São Paulo, e o tema da conversa é o quarto e recém-lançado CD de Maria Rita, Elo, um evidente retorno à proposta sonora de Maria Rita (2003) e Segundo (2005). No meio dos dois há ainda Samba Meu (2007), algo como um “ponto fora da linha da história toda”, nas palavras dela própria.
Até chegar a Elo – álbum com impressionante tiragem inicial de 100 mil cópias –, dez longos anos se passaram. E tudo começou de uma forma que Maria Rita não classifica como muito agradável. Em uma coluna de um jornal paulistano, o jornalista Walter Silva tentou dar conselhos à nova cantora em meados de 2000: evitar compositores que a mãe, Elis Regina, falecida em 1982, já tivesse gravado; evitar Nelson Motta (“para não ficar parecida com Marisa Monte”); assinar contrato com uma multinacional; e gravar só nos melhores estúdios dos Estados Unidos. “Isso foi quase grosseiro, quase uma malcriação”,reclama hoje Maria Rita, lembrando que até então sua carreira musical era um segredo para todos, até mesmo para os irmãos e para o pai, o pianista César Camargo Mariano. “Foi uma confusão, não foi agradável e eu me senti traída.”
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A partir dessa notícia, os milhares de admiradores de Elis ficaram sabendo que Maria Rita Mariano, aos 24 anos, que havia morado nos Estados Unidos até um ano antes e se formado em comunicação social na Universidade de Nova York, preparava-se para trilhar os mesmos rumos da mãe. E uma torcida, com prós e contras, foi formada antes mesmo de ela lançar o primeiro disco, com uma campanha agressiva de marketing patrocinado pela gravadora Warner. No repertório de 13 canções, destacaram-se “A Festa” e “Encontros e Despedidas”, ambas de Milton Nascimento. O resultado: mais de um milhão de cópias vendidas e três prêmios Grammy Latino, entre eles o de Artista Revelação de 2004. No mesmo ano nasceu o primeiro filho, Antônio, que ela carregou pelos palcos até o oitavo mês de gravidez. “Quase que não consegui tempo pra comprar o berço para o moleque”, Maria Rita gargalha, e é quando evidencia a espantosa (e inevitável) semelhança com Elis. “Aprender a lidar com o próprio corpo, me sentir confortável na própria pele. A maternidade traz essa segurança. E, como eu sempre tive essa coisa de ser muito independente, a maternidade elevou isso à nona potência”, ela teoriza, emendando com uma observação fora do contexto, mas que possivelmente carrega algum significado subjacente não confessado: “Aprendi a dizer não. E, quando você aprende a dizer não, as coisas ficam mais complicadas, mas o sim ganha outra beleza”.
Com sonoridade semelhante à do disco de estreia, Segundo só colaborou para aumentar a legião de admiradores de Maria Rita. Apesar de ter vendido menos, o álbum lhe rendeu mais dois troféus Grammy Latino (entre eles, Melhor Álbum de MPB, em 2006). Dois anos depois, Samba Meu apontou uma guinada que resultaria em shows para públicos maiores, que permitiram que a cantora se entregasse no palco, em contraponto às performances anteriores, mais introspectivas. Foi também uma maneira de provar que, como intérprete, poderia gravar qualquer gênero. “Teve esse elemento também”, ela corrige. “Mas a razão principal era uma declaração de amor ao samba. Era o que eu ouvia para matar a saudade de casa quando morava fora do Brasil, na ausência do pão de queijo e do guaraná.” No início de 2011, a cantora voltou aos holofotes ao emplacar mais uma música (a sexta em dez anos de carreira) na trilha sonora de uma novela global – “Coração em Desalinho”, tema de Insensato Coração. “Um dia na minha vida eu achei isso o fim da picada”, confessa. “Hoje, acho que não deixa de ser um reconhecimento pelo trabalho.”
“Eu não sou do tipo de fazer pirraça. Sou parceira da gravadora, então eles pediram e eu fiquei quebrando a cabeça”, Maria Rita agora comenta sobre a solicitação da Warner para lançar um novo álbum ainda em 2011. Em Elo, excetuando “Perfeitamente” (de Fred Martins e Francisco Bosco, que havia sido cortada do álbum Segundo), “Pra Matar Meu Coração” (de Daniel Jobim e Pedro Baby) e “Coração a Batucar” (de Davi Moraes e Alvinho Lancellotti), todas as oito faixas restantes já foram gravadas por outros intérpretes, tirando do lançamento o frescor da novidade. Os econômicos arranjos, baseados em piano, baixo e bateria, representam uma linha de continuidade dos trabalhos iniciais, além de serem adequados para a redução dos custos das turnês. “Acho que enquanto intérprete eu não preciso provar mais nada pra ninguém”, ela reafirma. “Eu não preciso gravar um disco só de inéditas para me estabelecer.”
Assumidamente exigente e detalhista com o andamento da carreira, Maria Rita também puxa para si a responsabilidade de selecionar seu próprio repertório. “Nesse aspecto eu fico um pouco irritada quando me falam ‘Já ouvi, é bom, ouça aí’. Não gosto nem um pouco.” Talvez seja pelas intensas convicções e atitudes ora irredutíveis que façam a artista carregar certa fama de antipática, que faz questão de renegar. “Eu fico chocada quando as pessoas me dizem: ‘Nossa, você é simpática!’ Nossa vírgula você é simpática ponto de exclamação”, exclama, enfatizando cada palavra. São imagens que se formam muitas vezes sem a responsabilidade do artista ou “às vezes a gente é responsável inconscientemente”, como ela mesma teoriza. Em sua defesa, Maria Rita alega necessitar de concentração total antes de subir ao palco, um ritual que, para ela, “é mais importante do que fazer macaquice para os fotógrafos”. “Eu tenho uma relação muito uterina com o palco”, define.
O sucesso repentino e os intensos holofotes cobraram um alto preço e dariam origem a uma sombra que por muito tempo pairou sobre Maria Rita. À medida que aumentava a expectativa de público e crítica em relação a seus passos, também cresciam as cobranças e, consequentemente, as comparações com Elis Regina – da semelhança do timbre a uma leve lembrança na maneira de interpretar no palco. “Tem gente que olha no palco e acha que eu sou um fantasma da minha mãe. ‘A Elis reencarnou na Maria Rita, dizem!’”, a cantora reclama, sem perder o sorriso.
“É que tem colocações e colocações, não sejamos ingênuos”, ela prossegue. “Tem gente que chega com uma maldade danada pra falar desse assunto. Alto lá e mais respeito. O que eu já tive que ouvir por causa disso! ‘Quem ela pensa que ela é?’ Quem pensa que sou o quê? Não, eu não penso que sou, eu sou. Se estiver duvidando, pegue aí o meu RG!”
Tem algo de curioso e inexplicável o paradoxo que também insiste em rondar a trajetória de Maria Rita: ela talvez seja a única cantora brasileira que – por herança genética ou mesmo por direito adquirido – poderia assumidamente se espelhar em Elis se assim o desejasse (muitas outras vozes femininas já tentaram). Porém, ao mesmo tempo, justamente por ser quem é, evocar artisticamente Elis parece se tornar quase que uma possibilidade proibida para Maria Rita – tanto para a crítica quanto para ela mesma.
“Não são as comparações, é a ignorância”, ela continua, levantando a voz, enumerando as situações em que se confrontou com esse tipo de julgamento. “Comparação é uma coisa natural. Se as pessoas não têm a capacidade de entender um código genético que procure saber. Dá um Google, né? Já me disseram: Te acusam de assistir aos vídeos da sua mãe para imitá-la no palco’. Acusam! O termo ‘acusa’ ali eu já achei torto. Que crime é esse uma filha querer ver a mãe na televisão?”, ela diz, dando um gole no chá de camomila. “Sabe por que isso não é verdade? Porque dói e dói muito mais em mim do que em todos vocês juntos. As pessoas se esquecem de que antes de ela ser a Elis Regina, para mim ela é minha mãe – e uma mãe da qual eu não tenho lembrança.” Ela faz uma ligeira pausa. “Não, eu não assisto porque dói! E eu choro igual a um bebê a ausência da mãe, do que eu não vivi, do que eu não tive! Como eu consegui fazer sem ela? Meu filho tem hoje 7 anos e eu vejo o quanto ele precisa de mim...”
Questiono se ela se lembra de ocasiões em que se viu obrigada a confrontar o tabu publicamente, como quando foi solicitada a comentar cenas de Elis no palco, durante uma entrevista para a TV. “É saia justa, porque eu me sinto exposta demais. Primeiro, porque sei que nunca vou agradar nesse assunto. O que eu disser vai ter uma parcela que vai me jogar flores e outra que vai me jogar pedras. Então, para essa parcela, eu já não preciso responder mais nada.”
“Ninguém vai mexer com a minha mãe!” Maria Rita, novamente gargalhando, enfim coloca um ponto final na questão. “A Elis eu entendo, a Elis não é minha, a Elis é de todos nós. Mas com a minha mãe, não!”
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