<b>TOMBOS</b> Burnquist não se abala com as quedas – nem no esporte, nem na vida - FABIO BITÃO

Especial Skate: Energia Controlada

Bob Burnquist, o maior nome nacional na história dos esportes radicais, calcula manobras dentro e fora da pista para driblar o tempo de estrada e os problemas pessoais

Patrícia Colombo Publicado em 12/11/2012, às 14h00 - Atualizado em 03/12/2012, às 13h20

A 18ª edição do X Games, evento conhecido de forma clichê como uma espécie de olimpíada para as almas mais radicais, estava marcada para o final daquele mês, junho, no verão californiano de Los Angeles, e Bob Burnquist, o brasileiro com mais títulos na história do evento, se concentrava no aquecimento. O que ele não esperava era que, diferentemente de outros momentos de glória que vivera, se machucaria feio em um dos treinos, dois dias antes do início da disputa – tombo esse que hoje se caracteriza como um dos piores de sua carreira. A cena é chocante: Bob está aparentemente tranquilo ao se aproximar do salto em distância, mas, quando passa pelo quarter pipe, perde completamente o controle do skate e se choca contra o coping, cano de metal instalado na borda superior da rampa. Seguiu-se um lamurioso grito de dor após a queda de bem mais de dois metros de altura, costas e tornozelos lesionados e, claro, ambulância. “A dor que eu senti, não quero sentir nunca mais. Fiquei até meio traumatizado com esse tombo. Mas faz parte, quando é assim a gente tem que passar por cima”, diz. “Quase quebrei as costas. Fiquei na cadeira de rodas por 18 horas.”

Fazendo jus à mitológica fênix que tatuou no antebraço direito em 2006 – em uma fase de transformações que envolveram o divórcio da primeira esposa, a skatista norte-americana Jen O’Brien, com quem teve Lótus, 12 anos, e a construção da mega rampa no quintal de sua casa (que favoreceu o aperfeiçoamento das manobras e a concretização das quebras de recorde que viriam depois) –, Burnquist não aceitou aquele que poderia ter sido o fim da linha no campeonato, pela primeira vez em quase 20 anos. Optou por ressurgir, recuperando-se minimamente no tempo recorde de dois dias, indo para a final usando o skate como bengala para se deslocar e faturando a nona medalha de ouro no X Games. Qualquer um com um mínimo de bom senso, consciente dos riscos de uma lesão maior e talvez até definitiva, deixaria as coisas como estavam. O ponto é que ser Bob Burnquist exige uma significativa dose de insanidade: esse foi o cara que, em 2006, construiu uma rampa no Grand Canyon e, emendando no skate, saltou de paraquedas no precipício. É o tipo da atividade que só quem é viciado em adrenalina (e muito seguro de suas loucuras) tem na agenda.

“Acho que todo skatista tem um pouco disso”, ele pondera, durante uma rápida passagem por São Paulo, no mês passado. “Caiu, levanta. Você está acostumado a cair sempre e aí um dia a manobra acontece e valida toda a dor e todo o tempo que você passou tentando. O frio na barriga só aumenta porque vai ficando mais difícil, mais alto, mais impressionante. E o medo continua ali, também para te manter no eixo. Se eu não tivesse medo, estaria morto ou todo quebrado.” Ele jura que seus passos são calculados e que a loucura é paradoxalmente racional. Isso é possível? Talvez sim, em uma alma que mescla necessidade de aventura e mentalidade matemática.

Na escola, Burnquist era daqueles alunos que preferiam quebrar a cabeça com os logaritmos a redigir sobre o movimento da Semana de Arte Moderna em 1922. “As pessoas podem achar que sou maluco por causa do que faço no skate, mas a verdade é que é tudo muito calculado e nada fora da minha realidade”, justifica. “E no momento da competição eu posso ultrapassar um pouco o limite, porque existe o risco de você se machucar, mas também existe o risco da glória. Eu sou administrador de riscos.”

Tal tipo de gestão e visão positiva sobre o que acontece na carreira é levada também para o dia a dia de suas relações. Se o tombo no X Games foi o mais traumático em seus longos anos comandando o skate, os dois divórcios vividos, segundo o próprio Burnquist, representam as piores quedas no que diz respeito à trajetória pessoal. No dia 3 de setembro, ele anunciou no Twitter a separação da segunda esposa, Verônica Nachard, com quem estava havia seis anos: “Pessoal, estou me divorciando da Verônica. Já faz um mês e meu foco agora é nas minhas filhas”. A declaração deu início àqueles barracos que vez ou outra envolvem algumas celebridades. A ex, irritada, postou uma série de tuítes acusando Burnquist de, entre outras coisas, agressão e cárcere privado. Ele apenas revidou com um “Sensacionalismo sem cola gruda com quem procura. Quem tem uma arma tatuada no corpo não sou eu. Só Deus sabe o que eu passei”. Segundo o skatista, a decisão do término foi de ambos, mas quem acabou tomando as medidas legais foi ele. “O divórcio ainda não está finalizado, mas no meu coração está mais do que concluído”, diz. “Acho que, numa não aceitação, [ela] deixou a raiva falar. Cada um tem uma forma de reagir. A dela foi uma e a minha foi outra. Não vou dar atenção nem botar lenha no fogo.” Mesmo com as acusações pesadas, ele comenta não fazer questão de tentar se defender. “Vontade há. Mas o que cabe é a realidade. Não vou entrar em detalhes. Não vou alimentar isso.”

Do relacionamento com Verônica nasceu Jasmyn, que hoje tem 4 anos. Burnquist diz que as filhas são as maiores preocupações dele, e lamenta, por elas, o fato de as uniões não terem dado certo. Mas a lente positiva o põe a pensar: se no skate a reconstrução é possível, por que não seria na vida pessoal?

“Lembro que a minha primeira separação foi difícil, porque eu queria que desse certo, e não ter conseguido foi como o fracasso de uma manobra”, conta. “Eu sempre conquistei o que eu queria, só que nisso não. Então, ficou um sentimento de culpa. Também esperava que meu segundo desse certo, porque você não casa para divorciar. De repente, não está rolando, você aguenta até onde dá pela família, só que vê que fica insustentável. Acho que essa é a parte mais difícil: aceitar o fracasso. Mas acho que aprendi isso com o skate: que está tudo certo, que não é o fim do mundo.”


Em um calorento dia de outubro, Bob Burnquist está à véspera de comemorar 36 anos. Ele tem algo em comum a praticamente todos os mortais donos de um iPhone: não consegue tirar os olhos do aparelho – só educadamente abandona o dispositivo quando começamos a conversar sobre o que ele prevê para o próprio futuro. Há um clima de ponderação e senso de novos ares. A lista de títulos conquistados nas modalidades Vertical e Mega Rampa vai longe, mas é a idade que bate à porta. Com ela, vem a reflexão do que mais há a ser explorado por ele em uma época em que skatistas cada vez mais jovens – como é o caso das revelações Mitchie Brusco e Tom Schaar (este último, de 12 anos, em março deste ano fez o primeiro 1080o da história) – aprendem mais rápido manobras de complexidade crescente. “Sinto que estou em fase de renovação”, diz, afirmando que não planeja parar. “Penso em um tempo maior, porque acho que tenho muito para criar. O skate é eterno em questão de evolução. Em cada fase diferente vou atrás de outras coisas. Pode chegar um dia em que eu desacelere nas competições, mas acelere na criação e na quebra de recordes. Porque há muitas coisas interessantes para se fazer, como foi o caso do Grand Canyon – não é questão de quantos anos tenho, é questão de qual é a ideia e qual é a realidade para fazer ela acontecer.”

O garoto que aos 10 anos entrou em contato com o primeiro skate mal imaginava que viveria em função do objeto. Pensava em ser arquiteto quando a responsabilidade da vida adulta batesse à porta, mas era a diversão em rodas que lhe fazia a cabeça. No ano seguinte, ganhou um skate mais elaborado e seguiu em frente na prática do esporte com a condição de mandar bem nas notas na escola. Filho de um norte-americano com uma brasileira, ele viu os pais se divorciarem quando ainda era pequeno – sem traumas, garante, pois eles se mantiveram presentes. Nos campeonatos, aprendeu manobras com o pé esquerdo na frente (o tal do “regular”), mas, ainda nos anos 90, impôs a si mesmo o desafio de dificultar a prática, deslizado com a base trocada (“goofy”, com o pé direito na frente). “Chegava a ficar tonto, pelo fato de estar acostumado a andar do outro jeito”, lembra. Tornando mais complexa a própria forma de executar o esporte, Burnquist chamou a atenção pelo que conseguia desempenhar sobre rodas mesmo impondo a si tais obstáculos. O caminho mais fácil nunca lhe interessou.

Embora tenha passado das três décadas de vivência, Burnquist sempre brincou sobre o lado moleque de sua personalidade, que hoje encara desafios adultos no que diz respeito às crises pessoais e às responsabilidades de seu forte lado empreendedor (lidando com negócios, patrocínios e organizações de eventos, como a vinda do torneio Mega Rampa ao Brasil). Mas isso não significa que o ar de menino tenha sido sufocado. Obcecado por aviação, tirou o brevê para pilotar monomotores e helicópteros, mas usa os conhecimentos para algo um pouco mais infantil: procurar piscinas em residências em São Diego, onde mora, para que possa andar de skate nelas. Se na adolescência invadia casas, hoje sobrevoa, localiza, desce, pega o carro e vai tocar a campainha pedindo autorização – um estudo abalizado e uma forma mais educada de fazer o que sempre fez.

“Esse lado meu, na real, nunca vai sair de mim”, ele conta, rindo. “Para fazer o que eu faço, tenho que ter essa energia infantil. Mas agora ela é mais controlada e estrategicamente colocada.”

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