A chamada “pós-verdade” cria o risco da tomada de decisões baseada em mentiras, especialmente quando o assunto é política
Aline Oliveira Publicado em 15/07/2017, às 11h04 - Atualizado em 20/07/2017, às 17h03
“Jimmy tem 8 anos e é um viciado em heroína da terceira geração. Um rapazinho precoce com cabelos castanho-claros, olhos castanhos aveludados e marcas de agulha pontilhando a pele lisa de seus finos braços pardos. Ele se ajeita em uma grande poltrona bege reclinável na sala de estar de sua casa confortavelmente mobiliada, no sudeste de Washington. Há uma expressão quase angelical no pequeno e redondo rosto de Jimmy quando ele fala sobre a vida – roupas, dinheiro, o [time de beisebol] Baltimore Orioles e heroína. Ele é viciado desde os 5 anos.”
Trecho inicial do texto “O Mundo de Jimmy”, de Janet Cooke, publicado pelo jornal norte-americano The Washington Post em setembro de 1980
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Logo nas primeiras linhas, a reportagem da jornalista Janet Cooke mostra sua potência. É perturbadora, comovente e foi vencedora do Pulitzer, maior premiação mundial do jornalismo, em 1981. Impactado pela história, o prefeito de Washington à época, Marion Barry, determinou uma busca ao garoto. A população dos Estados Unidos estava disposta a ajudá-lo. Tudo em vão. Jimmy nunca existiu. O texto de Janet era uma grande mentira. Após a revelação, a jornalista devolveu o Pulitzer e saiu do jornal – ela havia acabado de criar uma das mais infames farsas do jornalismo.
Histórias fabricadas não são exclusividade dos Estados Unidos. Mas foi lá que renasceu o debate sobre notícias falsas. A causa é notória: Donald Trump. Antes mesmo de assumir o cargo político mais importante do mundo, o republicano era conhecido por seu apego a afirmações fantasiosas. Como presidente dos Estados Unidos, ele mostrou que seguiria o mesmo estilo adotado na campanha. A acirrada disputa Trump versus Hillary Clinton alçou, junto ao Brexit, o termo “pós-verdade” como o principal do ano de 2016 segundo o Dicionário Oxford. Mas, se a mentira não é algo novo entre os mortais, por que agora ela se tornou o centro do debate? “A internet dá uma impressão global a algo local. As conversas ‘de bar’ estão sendo multiplicadas em uma velocidade absurda e nós não temos controle sobre isso”, explica Eduardo Paiva, professor e chefe do departamento de multimeios, mídia e comunicação da Universidade de Campinas (Unicamp). Nas palavras de André Rossi, diretor de comunicação da Veto, empresa especializada em inteligência digital, “fake news [notícias falsas] não são algo inédito, mas agora elas estão ampliadas e mais difíceis de combater. Isso tem levado a sociedade a tomar decisões incorretas”. Ainda sobre Trump, Rossi cita pesquisa do Pew Research Center (PRC), na qual 64% dos norte-americanos afirmaram que notícias falsas causaram e ainda causam confusão e mal-entendidos acerca de eventos reais.
A realidade brasileira não difere muito da norte-americana. Por aqui, também, nas últimas disputas políticas candidatos lançaram mão de inverdades contra seus oponentes, criando histórias que se sobrepõem aos fatos reais. Fizeram – e fazem – da pós-verdade um ingrediente poderoso para acirrar a polarização entre ideologias. “Como a esquerda e a direita no Brasil foram apanhadas no meio da rua, nuas e com as mãos nos bolsos, ficou mais importante para esses extremos radicalizar a denúncia do outro. Interessa aos extremos que as pessoas fiquem extremadas”, comenta Gilson Schwarz, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP). O acadêmico, no entanto, amplia o debate ao questionar: “O que podemos chamar de verdade na era da pós-verdade?” Na história do Brasil, ele provoca, “a carta de Pero Vaz de Caminha é uma manifestação da pós-verdade. Até a criação da história de um país, a partir da colonização, foi feita dentro de um contexto para atender determinadas expectativas”.
“Nós [da plataforma Aos Fatos] não gostamos de falar que checamos o que é verdade ou não, mas sim o que é fato e o que não é. E não pretendemos encerrar o assunto quando damos um selo de verdadeiro ou falso a uma informação – o que queremos, basicamente, é que as pessoas complementem a informação na qual estão interessadas, fazendo mais buscas a respeito”, explica Tai Nalon, jornalista, cofundadora e diretora da plataforma criada para checar o grau de veracidade dos discursos públicos. Conferir se as informações difundidas são reais tornou-se um desafio em tempos de notícias falsas proliferando a uma velocidade incendiária na internet.
“As pessoas precisam ser mais críticas para entender o que estão compartilhando nas redes sociais”, alerta Rossi. O professor de direito da Universidade Mackenzie Diogo Rais ressalta que só com “educação digital haverá uma diminuição nessa proliferação”. Para Tai, o grande problema da pós-verdade é que “você cria um clima de dúvida em que absolutamente mais nada é crível”.
Faça o primeiro textão no Facebook quem nunca compartilhou um post sem verificar a procedência. Isso inclui desde fotos com citações de Clarice Lispector ou Caio Fernando Abreu até matérias sobre partidos políticos, economia e a Operação Lava-Jato. “As pessoas, muitas vezes, só leem as manchetes e compartilham. Não estou nem falando de ler a matéria toda, mas de ao menos abrir o link para ver em que lugar aquela informação está hospedada”, observa Isabela Oliveira, docente da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). Emoções à flor da pele estimulam a postagem praticamente às cegas, primeiro porque somos impactados por aquilo que lemos – positiva ou negativamente – e também porque temos a necessidade de emitir opiniões. “As pessoas querem, em geral, estar corretas. E naturalmente nós temos a tendência a capturar aquilo que concorda com a gente. Portanto, se eu vejo uma notícia e ela concorda com aquilo que penso, eu, sem nenhum método de verificação dessa informação, a compartilho”, examina Edilamar Galvão, professora da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap). “As pessoas sempre tendem a acreditar em notícias que fortalecem suas convicções em vez de refletir sobre algo que elas renegam”, complementa Tai Nalon.
Medo e ansiedade também contribuem para isso. Quando o indivíduo está inserido em um grupo ou sociedade que lhe traz algum tipo de insegurança – como perder o emprego ou sofrer violência, por exemplo –, suas emoções podem afetar suas ações. “O medo deixa as pessoas mais vulneráveis. Se você estiver com medo e se deparar com alguma informação que pareça um lugar seguro, você irá se agarrar a ela. E, ao fugir do inseguro, posso me agarrar a coisas que não são verdadeiras, mas que me tranquilizam”, explica Angélica Capelari, professora de psicologia da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp). Sergio Praça, professor do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV), partilha da mesma visão ao afirmar que “o ser humano não está preparado para tratar de incerteza. Isso é muito desconfortável e nós sentimos a necessidade de explicações, nem que a gente as crie”. Para ele, a ideia por trás do verbete “pós-verdade” é a combinação de muita informação e emoções afloradas. “A circulação rápida e massiva de temas complexos nos impede de compreender as coisas e acaba estimulando boatos e teorias conspiratórias.”
“Caça-cliques”: esse é um termo usado para textos publicados na internet com a finalidade de fisgar a atenção do leitor a qualquer custo. Tais publicações são divulgadas nas redes com frases intrigantes, como “você não vai acreditar no que houve depois disso”. “Criou-se um mercado de empresas capazes de disseminar as notícias falsas. Elas caçam cliques a qualquer custo, utilizando todos os recursos disponíveis para envolver o maior número de pessoas. Algumas dessas empresas ganham dinheiro, outras ganham fama”, explica Diogo Rais, professor do Mackenzie.
André Rossi, da Veto, detalha que são páginas que “não têm compromisso com a apuração dos fatos. O core business é atingir o maior número de pessoas. Eles não têm compromisso com a informação, mas sim com a massificação, com atingir o maior número possível de cliques. É por isso que procuram colocar na falsa notícia algum elemento explosivo”. Para completar a isca, tais sites têm formato verossímil, com cara de veículo de comunicação online e estrutura jornalística.
A fim de tentar diminuir a repercussão dessas publicações – após um intenso debate público sobre sua responsabilidade no aumento da disseminação de notícias falsas e o impacto disso nas eleições presidenciais nos Estados Unidos –, o Facebook anunciou, em abril deste ano, que criaria um filtro para identificar boatos e frear sua divulgação. Com mais de 1,7 bilhão de perfis ativos em todo o planeta, a rede social é uma das principais plataformas de compartilhamento de notícias – falsas ou não. Google e WhatsApp também têm enorme peso nessa equação.
Para atacar os criadouros de notícias falsas, as redes sociais sabem que precisam abalar a rentabilidade desses negócios. Em entrevista publicada no portal G1 em 17 de maio, Greg Marra, gerente de produto do feed de notícias do Facebook, afirmou que uma equipe da rede social “categorizou centenas de milhares de manchetes como sendo caça-cliques”. Além dessa definição, a empresa criou um algoritmo capaz de dar menos destaques às postagens suspeitas. Outra medida foi uma espécie de manual com dez dicas para checar se um post contém informações falsas ou não. A lista está disponível na própria página da rede social.
Para o advogado Francisco Brito Cruz, diretor do centro de pesquisas em direito e tecnologia InternetLab, tais medidas são benéficas, mas filtros automáticos devem ser vistos com cautela. “É difícil saber qual notícia é falsa e qual não é. É claro que algumas são flagrantemente falsas, mas por vezes pode ser um título sensacionalista [com conteúdo verídico]”, afirma. “É preciso olhar para cada caso, porque se estabelecer uma regra automática para todo mundo [a partir de um algoritmo] talvez sejam cometidas injustiças.”
Já Edilamar Galvão, da Faap, considera que o papel de coibir a proliferação de notícias falsas deve ser das empresas que comandam as plataformas onde esses links são compartilhados e dos próprios veículos de comunicação. “Sei que o debate é delicado, que esbarra na questão da liberdade de expressão, mas neste país em que vivemos, com essa dimensão e com pessoas sem acesso formal à educação, não podemos culpar os indivíduos.”
Jornais do mundo todo fizeram, nos últimos meses, editoriais criticando a proliferação de notícias falsas e afirmando que estão dispostos a combatê-las. “Essa crítica à pós-verdade virou, também, um substituto à verdade”, opina Gilson Schwarz, da USP. Para o professor, “essa narrativa da grande mídia e de grandes grupos econômicos a respeito da pós-verdade é parte da verdade que eles querem validar”. A maioria dos especialistas ouvidos para esta reportagem concorda que a imprensa, em muitos casos, assume um lado. “A história mostra o nascimento da mídia associada aos poderes dominantes. Sabemos que tanto a imprensa internacional como a brasileira em diversos momentos se ligaram a determinados poderes. Isso gera desconfiança, e é bom que gere”, defende Edilamar Galvão.
Ao comparar sites caçadores de cliques – interessados apenas em multiplicar o número de acessos aos seus posts – e linha editorial e possíveis erros de alguns veículos da imprensa, é preciso levar em consideração a diferença entre ambos. “A imprensa comercial é obrigada a responder sobre seus erros”, completa Edilamar. “Por mais que alguém possa achar que a cobertura de determinados órgãos de imprensa seja ‘enviesada’, de alguma maneira ela tem de se submeter ao leitor, porque a marca dela de imprensa organizada exige isso.”
“Qual a diferença entre uma enciclopédia normal e a Wikipédia? A primeira tem conselho editorial, você sabe quem publica, portanto há um cuidado com a informação. Muitas vezes nem é questão de ética, é questão de não ser alvo de um processo judicial mesmo”, diz Eduardo Paiva, da Unicamp. “Ninguém gosta de ser processado. E é desagradável para um jornal publicar o ‘Erramos’.”
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