A crise na legitimidade política faz com que a população sinta que a relação entre eleitos e eleitorado está na UTI – e o caminho da recuperação promete ser longo
Aline Oliveira Publicado em 11/08/2015, às 14h42 - Atualizado em 12/08/2015, às 18h17
Quem já viveu na pele costuma afirmar com veemência: poucas máculas são tão difíceis de esquecer quanto o sentimento de confiança traída. E essa é a sensação que parece pairar sobre a sociedade brasileira – a sensação de que há uma mancha escura de deslealdade no campo político, em praticamente todas as esferas do poder regente no país.
Um estudo realizado pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas revelou a diminuição da crença geral nas instituições – a confiança no governo federal, por exemplo, caiu de 29% no primeiro trimestre de 2014 para 19% no mesmo período de 2015. Já o número de pessoas que se dizem confiantes no poder Judiciário caiu de 30% para 25% em um ano.
“A finalidade da nossa pesquisa é tentar compreender se a população acredita nas instituições e qual é a sua relação com os estados de direito. Pelo que vimos, as pessoas estão confiando cada vez menos”, analisa Luciana Ramos, pesquisadora da FGV-SP.
Uma crise de legitimidade política, segundo o professor Aldo Fornazieri, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), ocorre “quando a sociedade não se sente mais representada pelas instituições e pelos representantes políticos. E quem são os representantes políticos? São os parlamentares eleitos. Portanto, todas as instituições estão contaminadas por essa crise”.
O cientista político e professor Rogério Baptistini, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, destaca que “quem empresta credibilidade às instituições são os homens”. Sendo assim, o crescente envolvimento de nomes eleitos pela população com esquemas de corrupção vem, há algum tempo, destruindo a confiança da sociedade nos representantes políticos. “Os escândalos que foram sucedendo desde o mensalão contribuíram para corroer a confiança que as pessoas depositavam nos partidos como agentes de mudança política e nas instituições republicanas enquanto capazes de conduzir a sociedade para a estabilidade”, afirma Baptistini.
O mensalão, nome dado ao esquema de compra de votos de parlamentares deflagrado entre os anos de 2005 e 2006, é apontado por muitos especialistas como o início da crise de legitimidade. E, apesar de ser protagonizado por representantes de vários partidos, foi o PT quem acabou recebendo a maior mancha em sua reputação. Segundo o petista Eduardo Suplicy, Secretário Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, todos os políticos acabaram sendo colocados em uma mesma categoria. “Nesses últimos anos, detectaram inúmeros malfeitos, desvios de procedimento, pessoas que enriqueceram desviando recursos públicos que serviriam para atender necessidades básicas da população. Isso aconteceu com algumas pessoas, não com a maioria que está na vida pública, mas a repercussão desses fatos tem sido de tal ordem que isso influenciou a opinião pública e causou esse mal-estar em meio ao povo brasileiro”, ele afirma.
O estremecimento das relações entre os partidos e o povo brasileiro é geral. Ainda segundo a pesquisa da FGV, a confiança nas siglas caiu de 7% para 5%. Em abril deste ano, o Ibope Inteligência divulgou que a preferência dos brasileiros por algum partido político bateu recorde negativo: 66% da população (duas em cada três pessoas) não tem simpatia por nenhuma sigla. É o percentual mais alto desde 1988, quando o Ibope passou a fazer pesquisas com esse foco.
Para Aldo Fornazieri, a crise dos partidos também está relacionada à crise de legitimidade, pois, segundo o professor, “as siglas vivem um processo de autarquização e estatização”. Ele cita a medida que triplicou o volume destinado ao Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos, o chamado Fundo Partidário, aprovada em 17 de março.
O texto original destinava R$ 289 milhões para o Fundo, mas o senador Romero Jucá (PMDB-RR), relator da proposta, ampliou a previsão em R$ 578 milhões. Com isso, o valor distribuído aos partidos políticos em 2015 será de R$ 867 milhões. “A rigor, os partidos políticos de hoje não dependem mais da militância e de grupos sociais como base eleitoral”, explica Fornazieri. “Isso ocorre por causa de três fenômenos. O primeiro é o da estatização – os partidos se estatizaram mais, porque parte da sobrevivência deles depende do Estado, por isso triplicaram o fundo partidário; em segundo lugar, há os programas de rádio e TV gratuitos que também são bancados pelo Estado; e, em terceiro lugar, em todos os partidos se constituem máquinas de corrupção que extraem recursos do Estado, como mostraram o mensalão, a operação Lava Jato e outros escândalos.” A autarquização – termo derivado da palavra “autarquia” (segundo o dicionário, “entidade de recursos patrimoniais próprios e vida autônoma, criada e tutelada pelo Estado”) – dos partidos anda em paralelo com o financiamento privado. “Hoje, os partidos têm dois pés: o Estado e o financiamento privado”, ele detalha.
Todos os especialistas ouvidos pela reportagem apontam tal dinâmica como um dos fatores responsáveis pelo aprofundamento do abismo entre a representação e o representado, entre o eleito e o eleitor, entre o partido e a base. Para Luciana Genro, uma das fundadoras do PSOL (e candidata à presidência nas eleições de 2014), tal mecanismo de funcionamento dos partidos não só contribui negativamente para o descrédito perante a população como afasta o povo da militância nessas organizações. “No momento em que as pessoas veem que os partidos são financiados pelas empreiteiras, pelos bancos ou estão inseridos em esquemas de corrupção, elas não vão fazer uma militância política ali”, ela argumenta . “Quem entra para esses partidos [em uma situação como essa] está pensando em uma candidatura, em um emprego ou em se beneficiar materialmente de alguma forma. Não entra para fazer uma militância desinteressada do ponto de vista material.”
Outros fatores que contribuem para a crise são diversas ações tomadas em diferentes esferas de governo. No que diz respeito ao legislativo, as decisões do Congresso nem sempre condizem com a vontade da população. “Se diversas medidas [que estão em pauta atualmente] fossem submetidas a um plebiscito ou referendo, elas não seriam aprovadas. Então, as pessoas veem que, muitas vezes, esses deputados federais e senadores acabam legislando em causa própria”, declara Pedro Fassoni, cientista político e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). “Acreditávamos que com a transição para o regime democrático haveria mais transparência e maior poder de fiscalização, até um maior controle da população sobre seus representantes, mas não é o que vemos.”
O contexto atual comprova, segundo especialistas, o esgotamento dessa democracia representativa, modelo no qual os eleitores votam para cada quadro, mas depois não fazem mais nada. E só podem tomar outra decisão quatro anos mais tarde. “O que a gente vê é uma promiscuidade entre o poder político e o poder econômico, pois os políticos, uma vez eleitos, não prestam mais contas para a população, mas, sim, para quem financiou suas campanhas eleitorais. Não é por acaso o fato de as empresas que fizeram doações para campanhas de partidos ou candidatos terem contratos com os governos”, diz Fassoni. Luciana Genro corrobora essa ideia, e resume seu sentimento em relação ao panorama: “O sistema político atual é, de fato, um sistema apodrecido”.
O problema brasileiro no campo político é estrutural, histórico. “Nós não fazemos uma sociedade republicana se não tivermos uma cultura pública”, afirma Rogério Baptistini. Leia-se “cultura pública” como a necessidade de os cidadãos compreenderem que temos, enquanto país, enquanto sociedade, um destino comum. “Criar uma cultura pública é muito complexo, porque pressupõe que, das famílias ao Estado, todos os processos de socialização sejam voltados à geração de uma cidadania ativa.” Em outras palavras, a necessidade é de que os valores que norteiam a vida pública sejam transmitidos dia após dia, algo que não ocorre no Brasil.
O cientista político ainda lembra que tal estrutura (ou falta dela) já foi apontada por outros estudiosos. “É um drama que foi identificado lá trás, por intérpretes da sociedade brasileira do porte do [historiador] Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), do [sociólogo] Gilberto Freyre (1900-1987) e, mais tarde, do [cientista político e historiador] Raymundo Faoro (1925-2003). O mal que aflige nossa sociedade é o patrimonialismo político. Aqui o poder tem dono, um dono privado, que faz da sociedade, das instituições e da economia um negócio privado na origem e público depois.”
No livro Raízes do Brasil, do já citado Sérgio Buarque de Holanda – tido como um dos mais importantes historiadores do país –, encontra-se a definição do “homem cordial”, que é movido pela emoção em vez da razão e não distingue o público do privado. É um comportamento propenso à informalidade que fica explícito no fato de que, de acordo com o estudo da FGV, 80% dos pesquisados concordam que há, na política e fora dela, um “jeitinho brasileiro”. “Esse percentual de cidadãos argumenta que é fácil desobedecer às leis do Brasil. Da mesma forma, 80% dos cidadãos consideram que, em geral, a população brasileira apela para esse jeitinho”, explica a pesquisadora Luciana Ramos.
“E o que é isso? É um clima de permissividade. A própria sociedade é permissiva com a corrupção. Tem um clima de violência, degradação social, degradação moral na própria sociedade”, afirma Aldo Fornazieri.
A ambiguidade se estende ainda para outras questões. “Quando perguntamos para o cidadão se ele acha que as outras pessoas cumprem as leis, a maioria diz que não, que o outro não cumpre, mas o respondente garante que costuma cumprir. É engraçado, porque é uma visão muito pessimista em relação ao outro”, completa Luciana Ramos. Fornazieri aponta outras incoerências. “A pessoa é contra a corrupção, mas suborna funcionário público, paga propina para o policial e sonega imposto. Além disso, tem indignação seletiva. Odeia o partido A, e por isso o culpa pela corrupção, mas esquece que o partido B também é responsável pelas mesmas práticas.”
Neste cenário de crise política, os especialistas não creem que a mudança virá pelos principais partidos, apesar de ambos ainda terem relevância no cenário político-social. “O PT e o PSDB ainda têm o reconhecimento reconhecimento da sociedade. Ainda estão na memória afetiva das pessoas, para o bem e para o mal. Eles vão ter que ser levados em conta para a busca de uma saída para a crise, mas não acredito que todas as fichas da política devam ser depositadas apenas nessas duas siglas”, afirma Rogério Baptistini. “É preciso levá-las em conta, mas carecemos de outro tipo de saída para a sociedade. Ou seja, com atores desvinculados desse sistema partidário. É neste momento que a juventude é importante. O cenário clama por lideranças verdadeiras.”
Assim como o mês de junho de 2013 é apontado como crucial na exposição da crise na legitimidade política, outras manifestações poderiam ser importantes para um processo de mudança. “Seria preciso um novo junho de 2013, no sentido de aparecerem grandes manifestações populares que não fossem controladas por nenhum aparato político e que colocassem na pauta a necessidade da mudança estrutural do sistema. Embora eu não veja isso sendo possível a curto prazo”, opina Luciana Genro.
Do ponto de vista institucional, a saída para a crise estaria na tão discutida reforma política. No entanto, há quase um consenso entre estudiosos e especialistas de que a reforma que está sendo discutida tanto no Senado como na Câmara dos Deputados não trará as soluções necessárias. “Desde 2013, existe uma demanda forte pela reforma política. E a reforma que vem aí é uma piada, um retrocesso”, opina Fornazieri. “Ela não equaciona os graves problemas do sistema político. Do meu ponto de vista, é muito pelo contrário: essa reforma apenas piora [esses problemas].”
“Nós precisamos realizar a reforma política, mas não da maneira como a Câmara dos Deputados e o próprio Senado têm agido”, afirma Eduardo Suplicy. “Acredito que precisamos, por exemplo, atender às sugestões do movimento por eleições limpas, proibindo a contribuição de pessoas jurídicas, limitando a um limite de bom senso a contribuição de pessoas físicas, exigindo a transparência em tempo real pela internet das contribuições de todos os tipos para cada partido e candidato. Isso para que, no dia da eleição, as pessoas conheçam a natureza do partido e do candidato nos quais irão votar.”
Saída à esquerda
Os partidos Podemos, na Espanha, Syriza, na Grécia, surgiram em meio à crise
Países europeus, sobretudo Espanha e Grécia, também vivem crises políticas, sociais e econômicas. Ao comparar a situação das duas nações com a do Brasil, o professor Aldo Fornazieri, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), explica que lá surgiram alternativas em meio aos conflitos. Na Espanha, o partido de extrema esquerda Podemos tornou-se o mais seguido nas redes sociais, superando os tradicionais PP e PSOE. Já na Grécia, a coligação da esquerda radical Synaspismós Rizospastikís Aristerás (Syriza) nasceu da união de 13 grupos e partidos políticos, incluindo maoístas, trotskistas, comunistas, ambientalistas, social-democratas e populistas de esquerda. “A crise na Europa foi na centrodireita.
Tanto na Grécia como na Espanha, o que parece, até agora, é que as saídas são mais progressistas. Como aqui no Brasil a crise é da centroesquerda, a tendência é que a saída seja conservadora”, acredita Fornazieri.
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