Leia mais da entrevista com o músico, publicada na edição 55 da Rolling Stone Brasil
Por Paulo Terron Publicado em 14/04/2011, às 19h35
Alterada em 14 de abril, às 19h28
É possível que Marcelo Camelo seja conhecido como um dos artistas mais românticos do Brasil. Mas não no sentido tradicional da música romântica. As composições do carioca - tanto ao lado do Los Hermanos como na carreira solo - passeiam por impressões sentimentais variadas e, às vezes, abstratas. Mesmo o título do recém-lançado Toque Dela deixa questões em aberto: o "dela" se refere à namorada Mallu Magalhães? Ou a São Paulo, cidade adotada pelo músico há alguns anos? Pode ser uma mistura das duas. Ou nada disso. Conforme ele mesmo explica simpaticamente, "Não corrijo interpretações". Sentado na cozinha, dividindo algumas garrafas de cerveja, o músico falou abertamente sobre o novo trabalho, as diferenças entre as cidades onde morou e o funcionamento esporádico do Los Hermanos.
Abaixo, você confere perguntas e respostas que não estão na edição impressa da edição 55 da Rolling Stone Brasil.
Alguns dizem que o seu primeiro foi um disco carioca e esse segundo seria paulista. Você concorda?
Pode ser.
Mas a temática não é tão específica?
A mudança do ambiente - e das pessoas em volta - mudam o seu olhar sobre o mundo. Não é só a paisagem que muda. Muda o seu jeito de ser, de ver as coisas. Sob esse aspecto, é um disco paulista. Não é um disco sobre São Paulo. Mas cada lugar tem um cheiro, um grupo de pessoas e acho que essa parada influencia mesmo.
Você tem um tema recorrente em suas músicas, o mar, que reaparece em Toque Dela. Estando em São Paulo, isso mudou?
Eu sou de Jacarepaguá, longe do mar... O mar está dentro da gente, não dizem que tem 90% água no corpo do ser humano? A gente é mar para caramba. É como céu, vento: se tu não tem, tu imagina. E até os 15 anos eu morei em Jacarepaguá que é longe do mar. Não é longe como São Paulo, mas é um chãozinho pra chegar ao mar, e eu não o via com muita frequência.
Existe um estereótipo do Rio, do carioca?
O subúrbio do Rio, que é a maior parte da cidade, não tem nada a ver com esse Rio que se vê na novela, na TV. Esse da televisão é muito pequeno: Lagoa, Jardim Botânico, Ipanema, Copacabana. Vai da Barra até a Glória, é restrito. E não tem nada a ver [com os subúrbios], é totalmente diferente. Quanto mais você vai se afastando, cada lugar tem a uma personalidade. Mas o que vigora é esse estereótipo do carioca. Mesmo dentro da cidade. Na minha rua, por exemplo, tinha o carioca dos cariocas e também aquele cara que não sai de casa, e fica vendo seriado na TV. Que não gosta de sol, de piscina, não joga bolinha de gude e nem futebol.
Você já conhecia o pessoal do [grupo paulistano] Hurtmold antes de começar a tocar com eles e se mudar para São Paulo?
Eu conhecia antes de vir. No processo para gravar a "A Gaivota", que foi a primeira música que gravei com eles. Tinha feito a música e conhecido o Hurtmold, estava naquela época de processo do disco, pensando em quem vai gravar o que, assinalando as músicas para as pessoas. Eu achava que essa música tinha a ver com eles, chamei por causa disso, e nessa a gente se conheceu.
E você os conhecia de nome, internet, de shows?
Uma vez quando fizemos um show lá no Canecão, o Los Hermanos, e chamamos três grupos para abrir. Foram três noites lá no Canecão. Cada noite foi um grupo: o Cidadão Instigado, o Carne de Segunda, que eu não me lembro se tinha esse nome, porque depois virou Do Amor, e o Hurtmold. Então já conhecia o som.
Ao mesmo tempo, o Rio tem esse lance de não ser muito roqueiro.
O Rio sempre teve senso de humor, uma autoimagem que parece que se leva meio na brincadeira. Eu vivi a cena underground lá no Rio e era bem rock, tinha rock pra cacete em qualquer lugar. Mas as bandas de lá não tinham nada a ver com essa parada de São Paulo. Eu me lembro, na época que fiz fanzine, de ouvir falar dessas bandas [paulistanas]. E a cena do Rio era muito diferente. Sempre teve essa diferença de cor e de jeito. Acho engraçado porque agora, indo e vindo na cidade, consigo entender um pouco melhor essa estética de São Paulo e consigo entender porque eles não conseguem aceitar a Blitz, por exemplo. Sei lá, são fenômenos que são muito cariocas para quem olha de fora. Mas sempre teve rock lá, sim.
Pessoalmente não houve um estranhamento musical quando você começou a trabalhar com o Hurtmold, exatamente por vocês serem de lugares musicais tão diferentes?
Não, porque a nossa união se deu justamente no momento em que eu estava fazendo uma música bem subjetiva, uma música do inconsciente, menos pop, talvez. Minha música não tinha pulsação. Uma das coisas que mais me interessou no Hurtmold é que eles não tinham pulsação. Eles variavam o beat, o andamento da música. Era exatamente o que eu precisava: tocar com um conjunto que fosse como o vento, que fosse como a água, fluido no seu percurso, ao longo da música, que pudesse balançar de acordo com as ocasiões. Então, a gente teve esse encontro na subjetividade desde o primeiro encontro. Tanto que a ideia era gravar só "A Gaivota", e depois a gente gravou outras músicas. E aí acabei chamando eles pra tocar comigo. Foi um grande encontro.
E como você traduziu isso para quando você quis fazer canções mais tradicionais?
A banda é superversátil. São muito bons músicos, tocam o que vier. E a música também é uma linguagem que você comunica, transmite. Você pega o instrumento e mostra: "Faz assim". A gente vai conversando. Estamos ensaiando todos os dias. Tem algumas músicas do disco que eu toquei [sozinho], então agora a gente tem de pegar os arranjos.
Em momento algum você pensou em fazer o segundo disco com outros músicos?
A gente gravou umas três ou quatro músicas no disco e passou um ano e meio viajando junto. E aí eu me mudei pra São Paulo. Ao longo desse período, a gente não só ficou mais amigo, como estreitamos os nossos laços afetivos. E eu sentia que a gente deveria fazer pelo menos mais um disco juntos, embora eu quisesse uma sonoridade diferente e quisesse um resultado diferente daquilo que foi o primeiro. Achei que a gente merecia, como amigos, fazer mais uma parada juntos.
Como foi a entrada do Marcelo Jeneci nesse disco? Você tinha gravado grande parte dele no ano passado, e ele entrou mais recentemente no projeto.
Eu vim gravando o disco desde o começo do ano [passado]. Parei de fazer shows em agosto do ano retrasado. Daí se passaram, um, dois meses eu fiquei com vontade de tocar, de ter músicas novas, forçando para ter umas músicas, fazendo. Em janeiro [de 2010], começamos a ensaiar com um repertório bem capenga, mas com muita vontade de voltar a tocar. De trabalhar mesmo, não ficar ocioso. Porque ficar ocioso no Rio é uma coisa, ficar ocioso em São Paulo é diferente. Eu precisava estar aqui, porque a Mallu queria ficar por aqui e eu queria ficar perto dela. Comecei a forçar para ter o disco, ensaiando bastante, e começamos a gravar. Gravamos a primeira etapa do disco no primeiro trimestre de 2010. Paramos um pouco porque eu estava com dificuldades de achar um conjunto de músicas que completaria um álbum. No meio do ano, estava faltando um complemento estético no disco, alguma coisa para se relacionar com aquilo que eu já tinha feito antes, mas também com um outro tipo de música. A composição do repertório é como se você estivesse compondo um quadro. Você faz uma música e negocia: tira uma e bota outra. "Está faltando uma mais daquele jeito!" É assim pra ter uma história, pra não ficar monótono - pelo menos pra mim, é pra não ficar monotemático. Nesse ímpeto, resolvi gravar as músicas novas tocando [sozinho]. E aí o Jeneci veio na etapa complementar, final. Quando você fala que eu já tinha tudo gravado antes, eram as estruturas das músicas, o esqueleto. Depois há os complementos, e veio o Jeneci. No primeiro disco eu gravei tudo ao vivo, inclusive voz. Tem pouca coisa de overdub lá. E neste é o contrário, gravado com uma pessoa tocando de cada vez. E aí permitiu esse tipo de abordagem: chamar um cara oito meses depois de ter gravado a base pra fazer o acordeom e o piano.
Como foi o seu contato com o Jeneci? É uma amizade recente?
Não, a gente não se conhecia. Ele me chamou pra tocar no show de lançamento dele. Foi um convite muito bonito, afetuoso, carinhoso. Eu resolvi parar o que estava fazendo pra ir. Foi isso na verdade, a gente tocou dois shows juntos e, como ele gosta muito das minhas músicas, veio tocar no disco.
Não basta ser um bom músico, precisa também uma intimidade com o tipo de som para poder tocar junto.
É meio ao acaso. É menos planejado do que se imagina. O disco é um processo, pelo menos para mim. Eu vou fazendo. Até agora, nesses dois, eu não fiz aquele esquema de ensaio, ensaio, ensaio e depois grava. É um processo, e aí se aparece um cara, tipo o [Rob] Mazurek no outro disco... Ele chegou depois, a gente estava lá no estúdio e eu disse: "Está ouvindo alguma coisa aí?". E ele disse que estava, então eu disse para ele gravar. E na primeira tentativa o cara fez um negócio lindo, que ficou quase como parte da composição.
Esse seu processo não ordenado é uma resposta ao que você tinha com o Los Hermanos? Com a banda, vocês iam para o sítio compor, arranjar, e só depois gravavam.
Talvez inconscientemente seja um caminho de liberdade - de uma mudança desse processo, mais do que de liberdade. Eu funciono com uma certa tentativa de busca. Martelar na mesma tecla não me interessa muito, parece que eu vou chegar ao mesmo lugar. Então, fico tentando opor o método [de composição e gravação] anterior ao seguinte. Acho que tenho conseguido um resultado estético diferente da anterior, de alguma forma. E também tem um monte de coisa que influencia. Não sei o que é faz os olhos desfocarem e você ficar mais míope para a percepção, passar a entender que a percepção menos acurada, menos precisa, também traz informação. Se eu tiro os meus óculos, passa a ser outro jeito de ver as coisas. O processo na música passa um pouco por aí: desfocar as escolhas e a precisão das coisas pra tentar enxergar outro lugar.
Isso é mais voltado para a parte instrumental ou também para as letras?
Nos dois campos eu venho caminhando mais para esse enfoque, para essa miopia.
Você se lembra de, na sua adolescência, ter sido influenciado por alguém como você hoje influencia seus fãs?
Cara, isso percorre a vida inteira. São os agentes legitimadores, como os antropólogos chamam. São aqueles que legitimam as nossas escolhas. Sempre tem, do teu pai, da tua mãe. Sempre tem alguém.
Como era o Marcelo Camelo adolescente? Quais eram os seus interesses?
Com 15 eu saí de Jacarepaguá. A minha infância, até os 15, foi em Jacarepaguá, numa situação muito pitoresca: uma rua pequena, num bairro de subúrbio com pessoas de todos os cantos do Rio. Minha vizinha era de Olaria e ouvia samba o dia inteiro. Talvez venha daí a minha coisa com o samba. Era gente do país inteiro numa ruazinha perdida no tempo. Saí de lá e fui para a Barra e, depois, para a Zona Sul, tive contato com um mundo grande. Em Jacarepaguá, por exemplo, eu só conhecia Bon Jovi, Poison e Skid Row. A coisa mais underground que eu conhecia era o Skid Row. Não sei, eu era um adolescente normal: ia pra escola. Eu comecei a tocar violão cedo, meu negócio com música começou cedo. Aos 9 anos eu já tocava, tinha aula de teclado. Depois pedi uma bateria, um violão. Tinha uma porção de instrumentos. Gostava de tocar, mas era um adolescente de escola. Meu objetivo era passar de ano.
Quando você decidiu estudar jornalismo o que te atraía?
Eu fazia um fanzine, foi totalmente por causa dele. Eu estava na dúvida entre isso e biologia. Gosto até hoje de biologia. Aí conheci o Alex [Werner], amigo, produtor dos Los Hermanos durante muitos anos, e ele me mostrou o underground. Isso com 16, 17 anos. O Alex ouvia, sei lá, o cara mais estranho do mundo aos 12 anos. Ele ouvia o Pranzo Oltranzista, do Mike Patton, com barulho de garfo e coisas assim. Foi ele quem me levou aos primeiros shows. Por causa dele conheci as bandas que me fizeram ter banda. O meu universo de música era muito distante da minha realidade. Mesmo quanto ao vocal: o inglês é um fonema que suscita uma entonação mais aguda do que o português. Os cantores ingleses e americanos têm um timbre, em geral, mais agudo. Eu não conseguia cantar, não alcançava. Eu achava que eu não daria para cantor nem fodendo porque eu não conseguia chegar nas notas. E também teve a coisa visual: esse contato com o underground foi meio choque nesse sentido, de ver os caras vestido como eu, as mesmas roupas, tocando. E daí a gente começou a escrever o fanzine junto. Chamava DooStraw porque o Alex era fã do Pixies [referência a Doolittle, clássico da banda, de 1989], então o "doo". E "straw" porque ele fazia uns desenhos, uns tracinhos, tipo palha. Era bom fazer o fanzine. A gente era garoto e fazia umas perguntas inocentes, diretas. Eu nunca vi ninguém perguntando ao Planet Hemp se eles não tinham problemas em casa, com os pais, por falarem de maconha. Era pergunta que a gente fazia, meio torta. A gente entrevistou Little Quail, a minha banda preferida da época, o Planet Hemp, o Ratos do Porão, o Gangrena Gasosa, o Pato Fu. Tinha banda pra caralho que a gente gostava. Foi muito legal, enriquecedor. E, durante os Los Hermanos, me fez entender como funciona a parada da música. Como não é só caminho da gravadora e depois estourar, como existe outra coisa acontecendo.
Seu modo de tocar guitarra mudou na carreira solo. Em alguns momentos você até usa uns gravadores. É permanente ou é só uma fase?
O lance de dos gravadores, do barulho, é essa descoberta da improvisação livre, desse pessoal de música mais estranha que eu descobri tardiamente. Acho bonito o negócio do ruído, da interferência. Mas acho que mudei mesmo o meu jeito de tocar guitarra porque é uma relação com o instrumento antiga, a gente vai mudando mesmo, é natural. Mas acho que eu estava tentando encontrar no instrumento elétrico, a guitarra, as muitas cores da música brasileira, da sinuosidade harmônica da música brasileira. Estava tentando tocar aquele universo da Chiquinha Gonzaga, do Dilermando Reis, do Garoto, do Canhoto da Paraíba. Eu ficava tentando trazer isso pra guitarra, o choro, aquela coisa melodiosa, trazer isso para a linguagem do rock. A música brasileira é toda sinuosa, curvilínea e ela tem essa força e essa fraqueza - e o rock é quadrado, puro e tem uma força por causa disso e tem uma fraqueza também por causa disso e eu ficava tentando trazer um universo pra dentro do outro. Tentando fazer uma coisa que tenha a pegada e a pulsação do rock, mas sem perder a sinuosidade e a dolência da música brasileira.
As letras do primeiro disco dos Los Hermanos são extremamente amargas. As letras do disco novo são de louvor ao um amor. Não necessariamente um amor físico, mas o amor como ideia.
Pode crer.
Você acha que a temática tem a ver mesmo com o seu momento?
Tem sempre a ver. E quanto mais inconsciente fica o processo de feitura, mais ele se mistura com a vida pessoal. Tem a ver com este apartamento, tem a ver com este fogão. O disco é do lugar em que ele foi feito, bastante. Quando vou ao meu apartamento lá no Rio, pego o violão e penso: "Porra, essa música é daqui, 'Teo e a Gaivota'... Caralho, eu tinha de chamar todas as pessoas pra sentar aqui, uma a uma, e ouvir o que eu estou ouvindo aqui neste lugar!" É muito do lugar o disco, sabe?
Como você vê o lance do Rio receber a Copa do Mundo e as Olimpíadas, mais essas mudanças todas que vieram no pacote?
Acho massa. Eu não acompanho muito, mas acho que a cidade está num momento muito bom, num momento otimista. Como nativo do Rio, tenho um pouco de preocupação... A cidade tem uma vocação turística que é inegável, mas pra quem mora lá é sempre um negócio duvidoso. Agora no último Natal, o prefeito fechou Copacabana, dia 25 de dezembro. Você não podia sair de carro para almoçar com os seus parentes. A Associação de Moradores pressionou e o argumento do cara foi: "Quem mora em Copacabana paga o preço de morar em Copacabana". A cidade virou um ativo da pessoa que está no poder, e a cidade é mais do que isso. Mas acho que pode trazer muitos benefícios pra cidade, se for bem aproveitada a oportunidade.
Você se considera um cara político?
Não, a política tradicional não. Acho que a política está em cada gesto. Eu acho que eu sou bem politizado nesse sentido. Tudo o que faço tem um propósito maior. Acho que a maioria das coisas que faço publicamente - a minha música, o meu comportamento diante das pessoas, eu como cidadão - procuro exercer as coisas nas quais eu acredito. E que acho que vão promover uma melhora não só para mim, mas para as pessoas em volta de mim.
Você acha que o artista deve ter...
Eu acho que o artista deve nada. Ele tem que sobreviver e já é o suficiente. Se ele conseguir empreender uma aventura estética e conseguir viver dessa parada, já está ótimo.
Em certo momento eu achei que você poderia seguir uma carreira paralela como compositor.
Raríssimas vezes eu fiz alguma coisa por encomenda. O que acontece muito é de chegar alguém e pedir: "Você tem alguma música inédita?". E eu ter. Foram poucas as vezes que eu fiz. Pra te ser sincero, na maioria das vezes não funciona: as pessoas não gostam da música que você fez e é muito frustrante porque deu um trabalho desgraçado, você dá aquilo como se fosse um presente e recebe um "não gostei".
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