<b>SURREAL</b> Carioca se despe de Jô Suado: “A imitação tem que ser sua ferramenta, não pode ser o todo” - Victor Affaro

Faces ocultas

No melhor momento de uma carreira a serviço do escracho, Márvio Lúcio, o Carioca do Pânico, prossegue na busca obstinada pela imitação perfeita

Tiago Agostini Publicado em 09/09/2011, às 13h13 - Atualizado em 07/11/2011, às 13h33

O terno, a barba postiça e a peruca já se foram. Após quase quatro horas de gravações, sentado em uma cadeira diante do espelho, Márvio Lúcio, o Carioca do Pânico na TV, está se despindo do personagem Jô Suado. O cabelo ralo e curto ainda está branco do spray quando o maquiador lhe entrega um lenço de papel com removedor para extrair os resíduos de barba do rosto. “A areia da cola enche muito o saco, fica raspando na pele”, ele reclama fazendo careta, esfregando o lenço no bigode. Já de volta ao camarim, vestindo roupas “normais”, Márvio não guarda resquício algum da persona bizarra que interpreta semanalmente no programa dominical. Apesar dos dois dias de convivência, sinto como se o tivesse recém-conhecido, tão intensa foi a transformação pela qual passou nas últimas horas.

Bastam poucos segundos, no entanto, para que o semblante relaxado retorne ao rosto do humorista de 35 anos nascido em São Gonçalo, segundo mais populoso município do Rio de Janeiro. Márvio Lúcio ganhou o apelido ao se mudar definitivamente para São Paulo, em 1998, “porque todo carioca que vem para cá vira Carioca”, argumenta. De certa forma, ele ainda carrega consigo alguns óbvios estereótipos regionais – o sotaque carregado e cheio de marra, o andar levemente suingado.

Assista abaixo ao making of da sessão de fotos:

No caminho para o estacionamento da RedeTV, reparo que os olhos de Márvio já não estão arregalados como de costume, denotando o cansaço da jornada que começou com um programa de rádio ao meio-dia ao lado dos colegas de Pânico. Ao longo da tarde, ele demonstrou preocupação com a esposa, Paola, que passou o dia inteiro de cama, com uma forte gripe. “Minha babá está de aniversário, então liberamos ela mais cedo”, ele conta ao desligar o celular, se certificando de que Paola melhorou. São 20h de sexta-feira e, após atravessar toda Marginal Pinheiros, Márvio terá que fazer hora extra como pai, cuidando do filho Nicolas, de 2 anos e 8 meses. “Não tem problema, eu dou banho, brinco, coloco pra dormir”, ele diz, respirando fundo, sem mostrar resignação.

Um detalhe é evidente: Carioca tem plena noção de que está no melhor momento de sua carreira de humorista. Com sua mais celebrada cria atual, o Jô Suado, ele conseguiu alcançar a perfeita caricatura, tanto em termos visuais como na assombrosa interpretação. Não é apenas a imitação da voz que chama a atenção: a postura curvada para parecer mais baixo – Carioca tem 1,83 metro; o verdadeiro Jô Soares, 1,68 – os olhares de esguio, os vícios de linguagem e trejeitos caricatos. É uma transformação tão profunda que assusta mesmo os conhecidos. “Na primeira gravação, durante o festival Risadaria, ‘noiei’ o Tom Cavalcante, que não me reconheceu com aquela roupa. Foi como sentir um orgasmo”, diz Carioca, rindo, satisfeito e orgulhoso da cria, fruto de meses de observação meticulosa em busca da interpretação perfeita.

No ar desde abril, o quadro do Jô Suado é um dos mais populares do Pânico na TV. A ideia surgiu para Carioca justamente em uma noite em que assistia ao programa de Jô Soares. Paola pediu um copo d’água ao marido, que respondeu reproduzindo a voz do apresentador. “Deu um clique. Fiquei uma hora e meia repetindo, sem desarmar a imitação, para não esquecer”, relembra. No dia seguinte, repetiu no programa de rádio a performance, que imediatamente virou sucesso entre os colegas. Começou, então, o processo para levar o quadro para a televisão. “Aí, fodeu: passei a ver o Jô todo dia, mas com o olhar daqueles caras pegam erro em filme, veem o que ninguém vê”, Carioca exclama. “Eu tinha a voz, mas precisava do gestual, o olhar, a boca.” Enquanto fala, os olhos se arregalam ainda mais e os movimentos circulares dos braços vão dando lugar ao “ombrinho do Jô”, como ele mesmo descreve o trejeito. Carioca incorporou tanto o personagem que o insere diversas vezes na conversa, sem quebra de clima, como num simples apertar de botão.

“A imitação tem que ser sua ferramenta, não pode ser o todo”, ele ensina. “Não adianta eu ficar lá dizendo ‘oi, tudo bom’ o tempo inteiro. Preciso contar uma história.” Carioca e a produção do Pânico têm buscado novos esquetes fixos para renovar o quadro. “O segredo é deixar o telespectador tonto, não deixar ele saber o que você vai fazer. Virou um game essa porra! Fico tentando foder, tipo [como se fosse um] mágico; distraio com uma mão para fazer com a outra.”

Em cena, Carioca é o senhor dos acontecimentos. Sem roteiro nas mãos, sugere improvisações em cada um dos esquetes e orienta os atores, quase como um codiretor ao lado de Allan Rapp, que comanda a gravação propriamente dita. Mesmo sentado atrás da mesa do cenário e paramentado como Jô Suado, o humorista permanece atento a tudo que acontece ao seu redor. “Fica de olho no Arex”, ele me cochicha durante um intervalo, referindo-se ao ator coadjuvante no quadro. “O vinheteiro está tocando uma música lenta porque o japonês dorme durante a gravação. E, se ele dormir, estou com um daqueles aparelhos de choques. Ele vai levar um puta susto”, ri, comedido em seu disfarce. Para o azar do público, dessa vez Arex permaneceu acordado.

Carioca dá a entender que seu humor surge na base da transpiração, não da inspiração. “Quando entrei no Pânico, tinha pretensão de fazer piada que poucos entendessem – e quem não entendeu que se foda”, relembra. Atualmente, ele parece pegar emprestada a filosofia de vida de outra de suas imitações, o técnico de futebol Muricy Ramalho: “Aqui é trabalho”. Todas as ações e decisões de Carioca são realizadas com o intuito de deixar suas tarefas simplificadas ao máximo. “Eu sou um entertainer. Minha idéia aí: ‘Senta ai, seu puto, e ri comigo’.”

Para defender seu ponto de vista sobre a liberdade de expressão no humor, Carioca fecha o semblante e pontua a fala com batidas na mesa. Diz acreditar na existência de dois limites bem claros para uma piada: o do bom senso – definido por cada humorista – e, mais importante, o do bolso do patrocinador. “Foi o meu guru, de quem não cito o nome, que me contou esta. É o mercado, você tem que defender seu emprego. Tem uns caras hardcore, esses ‘vloggers’ que falam o que querem. Mas a partir do momento que tem um patrocínio, ele já para”, reflete, antecipando mais uma batida na mesa e uma frase de efeito: “Não tem um valente nessa porra!”, berra, categórico.

Se o Carioca que fala sobre trabalho é verborrágico, um novo personagem, tímido e lacônico, surge quando o tema é vida pessoal. “Já vou de antemão dizer que não sou muito de falar com a imprensa”, ele irrompe antes mesmo de escutar a primeira pergunta naquele dia. Estamos na sala de reunião do escritório de sua empresária e, entre nove cadeiras ao redor de uma longa mesa oval, Carioca se senta exatamente ao meu lado, me encarando. No início parece inquieto, se mexendo sem parar, os braços fazendo círculos constantes. Após alguns minutos, levanta-se e busca um chiclete de nicotina na mochila – ele parou de fumar em 2010, após 16 anos consumindo duas carteiras por dia. Mais calmo, retoma o raciocínio. “Evito me expor porque não sei se é legal você falar muito quem você é. Para o cara que me assiste em casa, eu sou um cara legal ali.”

Internet, por exemplo, diz só utilizar para fins profissionais. Não tem Twitter e quase nunca acessa o Facebook. “Quem usa rede social tem uma necessidade de aparecer, de estar bem”, opina. “Todo mundo ficou importante,deram o gostinho do reconhecimento. Acho bacana, mas eu me basto naquilo que faço.” Em outras épocas, no entanto, foi um assíduo frequentador do Orkut. “Quando rolou aquela febre inicial, eu estava solteiro e usei muito para galinhar”, ri. Funcionou: foi pela ferramenta que ele conheceu a atual esposa.

Não é que Carioca seja completamente evasivo ao evitar questões pessoais, mas os detalhes de sua história só surgem na conversa meio que por acaso, quase sem querer. Ele afirma se enxergar como um cara normal, ignorando que a notoriedade o torna automaticamente diferenciado, inclusive esquecendo que é famoso quando vai ao supermercado ou à padaria. “Vou me privar de ir a um parque de diversões com meu filho? Vai ter gente que vai vir pedir para tirar foto, mas beleza. Tenho que saber lidar.” Na contramão do senso comum, ele parece se incomodar mais quando sua intimidade é invadida. “Outro dia, tomei uma dedada durante uma gravação”, conta, em um misto de graça e perplexidade. “O cara te vê na TV e acha que te conhece. Já tomei tapa na nuca de cara que disse: ‘Você não zoa todo mundo? Agora zoei você’.”

A veia humorística apurada surgiu dentro da própria família. “Cresci ouvindo Costinha, era putaria o tempo todo. Não tinha esse negócio de palavrão proibido.” O ambiente de gozação generalizada na casa em que cresceu com os irmãos rende risadas até hoje. “Uma vez meu pai teve uma dor de barriga passeando no interior de Minas Gerais e foi fazer cocô no mato. Meu irmão tirou uma foto e ganhou vários prêmios da família inteira”, Carioca relembra, às gargalhadas.

As imitações começaram aos 5 anos, quando se vestia com as roupas da avó e passava a peruca para arrecadar dinheiro dela para comprar lanche na escola. Mais tarde, o talento valeria nota no colégio. Foi no começo da década de 90 quando Márvio se encantou pelo repórter policial Gil Gomes, que fazia sucesso com um estilo de narrar crimes recheado de maneirismos. “Nos trabalhos de português, a gente gravava vídeos de personagens históricos visitando os locais no Rio enquanto eu contava a história como o Gil Gomes”, ele relembra, imitando voz grave do repórter. “Juntava 50, 60 pessoas no auditório para ver. E a gente só tirava dez.”

A carreira na comunicação parecia óbvia, e Márvio trocou a escola técnica de eletrônica para se formar técnico em publicidade. Foi nessa época que conheceu uma amiga, Tatiana, que reencontrou anos depois na faculdade de Jornalismo e que o ofereceu um estágio na rádio Jovem Pan. Uma vez dentro da emissora, dedicou-se a fazer todo tipo de serviço, desde contar camisetas até gravar vinhetas – tudo para ganhar a confiança da chefia e realizar o sonho de trabalhar no Pânico, alimentado desde os dias em que trabalhava na loja de material de construção da mãe e escutava o programa escondido. Sete meses depois de entrar na rádio, veio o convite para se transferir para São Paulo.

Os dois primeiros anos da nova vida foram os mais difíceis. Ganhando o mesmo salário que no Rio, mas sem as mordomias de morar com os pais, em uma cidade nova e com relações interpessoais mais frias, Carioca chegou a arrumar as malas para voltar. “Perdi minha namorada, tinha muitos amigos no Rio. E comi muito cachorro quente pra sobreviver em São Paulo.” À época, ele morava com colegas de Pânico em um apartamento próximo ao prédio da rádio e passava das 7 da manhã à meia-noite no trabalho. “Era difícil, mas era uma aposta, minha oportunidade”, diz. Não demorou para que fizesse as pazes com a cidade que hoje afirma não querer abandonar por nada. “São Paulo tem de tudo. Balada, então, nem se fala.” O sucesso do Pânico deu à trupe, em 2003, a chance de estrear um programa na televisão. A boa vida de solteiro levada por Carioca então cobrou seu preço, no episódio que marcou seu afastamento do programa por vários meses de 2005.

A simples menção do fato faz Carioca se levantar da cadeira repentinamente. Encarando a parede, a fala rápida diminui o ritmo e as frases se tornam mais curtas e reflexivas, quase beirando a completa seriedade. “Foi uma piração minha. Eu estava confuso se continuava ou não, não me sentia confortável, não estava feliz”, recorda. Eram os tempos de farra, quando saía das festas direto para o trabalho, dormia nos camarins da TV e, como relembra, bebia, bebia demais. “O demônio estava muito alegre em mim, Amy Winehouse total”, diz me fitando, quebrando o gelo com a piada. “É um pique violento. Chega uma hora que você não aguenta.”

Carioca encontrou conforto na filosofia hare krishna, que o ajudou a entrar nos trilhos e retomar a carreira televisiva. Na mesma época, conheceu Paola. Após enfrentar problemas de saúde na família, retomou a fé católica dos tempos de coroinha – “Sou ‘não praticante’, a religião favorita dos brasileiros” – e se tornou devoto de São Jorge, de quem leva uma medalha em uma corrente no pescoço. Vivendo “na idade adulta” desde que comprou um flat, em 2005, jura que abandonou as baladas e a vodca. Agora a diversão é um “uisquinho do bom” uma vez por semana e uma cervejinha para relaxar. Nos últimos tempos, comprou simuladores de voo para jogar no computador e aprendeu a tocar violão, duas das paixões não realizadas na infância. E encontrou prazer na cozinha. Eduardo Sterblitch, companheiro de peripécias no Pânico, confirma no camarim que o risoto do colega é irresistível.

“Não à toa, tá desse tamanho”, Carioca brinca, alisando uma não tão proeminente barriga.

Não chega bem a ser uma obsessão, mas Márvio Lúcio ainda alimenta um desejo enquanto Jô Suado: entrevistar o “muso inspirador”, Jô Soares. Já houve duas oportunidades em eventos distintos, ambas devidamente ignoradas pelo apresentador global. “Vou ficar pirando, tudo que ele falar vou repetir igual. Vai virar papo de maluco”, Carioca brinca. “Mas ele tem que vir falar comigo espontaneamente, que aí vai ficar bom para caralho.”

No volante de um Volkswagen Tiguan – depois de três assaltos, vendeu o chamativo New Beetle amarelo –, ele fala sobre a alegria do dia em que encontrou pessoalmente com Lulu Santos e dobrou o ídolo ranzinza com uma imitação perfeita. Enquanto dirige pelo trânsito carregado da Marginal Pinheiros, Carioca vai trocando rapidamente as músicas no rádio até encontrar as faixas instrumentais de Lulu para karaokê.

Como se estivesse em um palco, canta “O Último Romântico” em uma assustadora imitação, finalizando ao chegarmos no estacionamento da RedeTV.

Já na sala de maquiagem, sentados em cantos opostos, Carioca e Sterblitch brincam de imitar os maquiadores em voz alta. Sentado em frente ao espelho, se preparando para mais uma metamorfose em Jô Suado, ele reclama pela primeira vez da cola para a barba e do spray que terá que usar no cabelo. “Só quando coloco o terno é que fica igual mesmo”, ele alerta sobre os estágios da mutação. A peruca e a barba branca – feitas “fio por fio”, conforme ressalta – são aplicadas, seguidas do óculos redondo de armação vermelha. O enchimento de espuma nas pernas e no tronco prenuncia que a transformação chegou às vias de fato. Ao vestir o blazer, Carioca se inclina para a frente, dá uma última olhada no espelho e sai pelo corredor, orgulhoso daquele ser criado do zero. No entanto, ele jura não se apegar. Sabe que o bom momento é efêmero, que a renovação é necessária e garante já ter duas cartas nas mangas para surpreender de novo a audiência.

“Eu sempre tô representando alguém”, confessa. “Eu não sou eu mesmo nunca.”

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