Alcântara, no Maranhão, é um espelho dos paradoxos do Brasil. De um lado, povoados quilombolas lutam por suas terras de direito; de outro, o programa espacial brasileiro prega o desenvolvimento e a expansão
Por Carlos Juliano Barros Publicado em 13/07/2009, às 11h28
Uma hora de barco separa São Luís, a capital do Maranhão, do modesto cais de Alcântara. Principal meio de transporte entre as duas cidades, é mais rápido e barato do que o trajeto por via terrestre, que se desenrola ao longo de 400 quilômetros de rodovias maltrapilhas. É preciso ficar atento ao movimento da maré para saber a hora exata da saída do barco. Geralmente, ele parte de manhã cedo de São Luís, e volta entre o meio e o final da tarde.
Situado no litoral de um dos estados mais pobres do Brasil, o acanhado município de Alcântara, fundado em 1648, bem que poderia ser apenas outra parte do Nordeste castigada pela inclemência do sol e pela rapina dos homens, como escreveu João Cabral de Melo Neto. O triste retrato do abandono pode ser percebido tão logo se desce do barco, ao se caminhar pelas ruas calçadas com pedras: ruínas de edificações seculares e casarões de arquitetura colonial caindo pelas tabelas compõem a agonizante, porém, incrivelmente linda paisagem do centro de Alcântara, tombado pelo patrimônio histórico nacional. Mas quis o destino - e os militares, no apagar das luzes da ditadura, assim fizeram acontecer - que a poucos quilômetros das mais antigas construções erguidas pelos portugueses em território maranhense fosse instalada a mais bem localizada base do planeta para mandar foguetes em direção ao espaço sideral. Batizada como Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), ocupa uma área de aproximadamente 9 mil campos de futebol e é controlada pela Aeronáutica.
É desse município no mínimo improvável, onde menos de um quarto da população tem água encanada em casa, que o Brasil pretende embarcar de vez rumo à era espacial. Até dezembro de 2010, a empresa binacional Alcântara Cyclone Space (ACS), formada por somas iguais de capital dos governos ucraniano e brasileiro, deve entrar no bilionário negócio de lançamentos de satélites, um clube restritíssimo a que menos de dez países têm acesso hoje. Pelo menos assim sonha o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, antes de se despedir do Palácio do Planalto. "O principal objetivo desse acordo é comercial: introduzir no mercado internacional uma alternativa segura e barata", define José Monserrat Filho, chefe da Assessoria de Cooperação Internacional do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Para 2012, quando a empresa estiver funcionando a pleno vapor, a previsão de faturamento é da ordem de R$ 300 milhões, com a realização de ao menos seis lançamentos por ano. "Esperamos disputar uma faixa de até 20% desse mercado por causa das nossas vantagens comparativas", aposta Roberto Amaral, que já foi o titular do MCT e atualmente preside a ACS. No futuro, a parceria ainda permitirá que o governo economize uma verba considerável para colocar em órbita os satélites desenvolvidos principalmente pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que têm entre outras funções o papel de monitorar o desmatamento da Amazônia.
A lógica das responsabilidades do acordo que criou a empresa binacional é bem simples. Os ucranianos entrarão com o foguete Cyclone-4, um gigante de 40 metros e de 200 toneladas que transportará satélites de meteorologia, telecomunicações e quaisquer outros fabricados por países e empresas que se interessarem pelas pechinchas oferecidas pela ACS. A família Cyclone tem no currículo mais de 200 lançamentos bem-sucedidos, e esse tipo de tecnologia é dominado pelos ucranianos desde os tempos da Guerra Fria, quando eles ainda faziam parte da superpotente União Soviética. O acordo também tem outro efeito inegavelmente interessante: o compartilhamento de conhecimentos científicos. A previsão é de que o Cyclone-5 seja fabricado em conjunto por técnicos de ambos os países.
Por enquanto, a missão do Brasil é construir um sítio de lançamento, utilizando menos de uma dezena dos tais 9 mil campos de futebol que formam o CLA. Por quê? Simplesmente por causa da localização geográfica de Alcântara. Por caprichos que só a física explica, a proximidade com a linha do equador permite uma economia de até 30% do combustível necessário para a arrancada de um foguete. Caso ele se desvie da rota prevista e resolva cair em lugar não planejado, a vizinhança com o Oceano Atlântico é outro diferencial, barateando signifi cativamente os custos com seguro. E, mesmo que se dirija ao interior do município, a baixa densidade demográfi ca reduz as chances de uma catástrofe. Alcântara tem praticamente o mesmo tamanho da cidade de São Paulo, mas conta com apenas 22 mil habitantes.
A vocação natural dessa porção do litoral maranhense para o lançamento de foguetes já despertou até mesmo o olho gordo dos norte-americanos. No começo da década, a Casa Branca chegou a propor um acordo de cláusulas questionáveis, para usar um eufemismo. Na prática, tratava- se do aluguel de um pedaço de chão em Alcântara, uma espécie de enclave yankee em território tupiniquim, onde só entrariam pessoas com expressa autorização das autoridades norte-americanas. Além disso, não haveria transferência de tecnologia e o governo federal sequer poderia aplicar o dinheiro do aluguel no nosso próprio programa espacial. Tantas vantagens assim fizeram com que o Congresso barrasse a ideia, tachada até de afronta à soberania nacional.
Também há episódios tristes na odisseia brasileira rumo ao espaço ocorridos no CLA. O mais trágico ocorreu em agosto de 2003, dois dias antes do lançamento do Veículo Lançador de Satélites (VLS) - um foguete made in Brasil concebido pelo Comando Geral de Tecnologia Aeroespacial (CTA), ligado à Aeronáutica. Um incêndio causado pela ignição antecipada de um dos propulsores do VLS provocou a morte de 21 técnicos e engenheiros que faziam parte da linha de frente do nosso programa espacial. Prejuízo financeiro, científico e, sobretudo, humano, de dimensões incalculáveis. Essa foi a última de três tentativas frustradas. Apesar dos percalços, Carlos Ganem, atual presidente da Agência Espacial Brasileira (AEB), órgão vinculado ao MCT, acredita que nos próximos anos o VLS ainda possa vingar. "É um foguete sob medida para determinadas cargas úteis de menor peso e já interessa a alguns gigantes da atividade espacial."
Enquanto a oscilação do barco rumo a Alcântara ofendia meu estômago, organizava na cabeça a minha agenda. A visita à base da Aeronáutica aconteceria dali a poucos dias, o que me daria tempo suficiente para ir a alguns dos mais de 100 pequenos povoados do interior do município. Cerca de dois terços da população vivem no campo, em comunidades de nomes sonoros e curiosos, como Mamuna e Baracatatiua, formadas basicamente por diversas gerações de descendentes de escravos que passaram por lá nos séculos passados. Negros cativos de fazendas de algodão e de cana-de-açúcar, abandonados à própria sorte com o declínio da economia dessa porção do litoral maranhense, ainda na era colonial.
Desde então, a população sobrevive à indiferença dos governantes basicamente por meio da pesca e da agricultura. A luz elétrica chegou somente há dois ou três anos, com um programa do governo federal chamado "Luz para Todos". Mas ainda há comunidades que esperam pela boa vontade dos gabinetes de Brasília para aposentar os lampiões. Grande parte das famílias também dribla as necessidades do dia-a-dia com os trocados oferecidos pelo "Bolsa Família". De acordo com o Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, publicação da Organização das Nações Unidas (ONU) que leva em conta indicadores de renda, educação e expectativa de vida, só 15% dos 5.507 municípios analisados oferecem condições de vida ainda mais sofríveis a seus habitantes. Existe outra questão grave: os camponeses não são donos das terras onde vivem e trabalham. O artigo 68 da Constituição garante que as comunidades remanescentes de quilombos, onde negros tocavam terras coletivamente em nome da utopia da liberdade, têm direito de propriedade sobre os territórios historicamente ocupados por elas. Por isso, há pelos menos duas décadas, os descendentes de escravos de Alcântara reivindicam para si as áreas onde residem.
Mas qual é a relação entre o lançamento de foguetes e essas populações tradicionais? Há muitos anos, o município aparece nas manchetes dos jornais por conta de um conflito territorial envolvendo justamente a base espacial e as comunidades quilombolas. A história começou nos anos 80, quando centenas de famílias foram removidas de seus locais de origem para a instalação do CLA. Sintomaticamente, os militares confiaram a um veterinário a responsabilidade de lidar com os quilombolas. Um processo traumático que deixou feridas abertas até hoje, e que motivou inclusive a criação do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial. Por tudo isso, Alcântara é um espelho exemplar dos paradoxos que singularizam nosso país. Lugar onde o Brasil precisa inevitavelmente acertar as contas com o passado para abrir as portas ao futuro. Porém, existem nessa parte do Maranhão duas visões de mundo que colidem. De um lado do ringue, tendo em vista as cicatrizes do passado, estão os que enxergam como medida prioritária para garantir os direitos fundamentais das populações tradicionais a titulação definitiva do chamado "território étnico", assim reconhecido em 2000 pela Fundação Palmares do Ministério da Cultura. No outro canto, estão os defensores da expansão do programa espacial e da construção de mais sítios de lançamentos de foguetes sobre parte da área pleiteada pelos quilombolas, como forma de trazer riqueza para o país e também melhorar a qualidade de vida em Alcântara.
O assunto é tão controverso que, desde o final do ano passado, vem provocando um racha em Brasília. Tudo porque o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) produziu um relatório recomendando a titulação contínua de um território de 78 mil hectares para as comunidades quilombolas, quase metade do município de Alcântara. O texto não altera em um centímetro sequer o perímetro resguardado à base sob comando da Aeronáutica. Porém, deixa de fora outras três áreas não contíguas, ao norte do CLA, que na avaliação de setores do governo são indispensáveis à construção de novas plataformas de foguetes. Esses três lotes seriam como "ilhas" encravadas entre as diversas comunidades que formam o território étnico quilombola.
A proposta do Incra contou com o apoio da Secretaria Especial de Políticas para Promoção da Igualdade Racial (Seppir), vinculada diretamente ao gabinete da presidência da República. "O estágio a que chegamos nos leva a crer que a titulação contínua da área de Alcântara é a que melhor atende à realidade das comunidades", afirma o ministro da Seppir, Édson Santos. No entanto, o relatório foi bombardeado por outros braços do executivo. O Ministério da Defesa reagiu por considerar que o reconhecimento da área quilombola nos moldes indicados pelo Incra compromete o futuro do programa espacial brasileiro, assim como o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), também ligado à presidência da República. "Esse acréscimo, ao norte do Centro de Lançamento de Alcântara, possui relevância estratégica para o país, que busca hoje maior projeção internacional, bem como para a economia do Município de Alcântara com reflexos para o bem-estar de sua população", afirmou a direção do GSI em nota oficial. O complexo debate deverá ser resolvido por mediação do próprio presidente Lula.
Na verdade, a menina dos olhos dos gestores do nosso programa espacial é a construção do Centro Espacial de Alcântara (CEA), do qual a base da Aeronáutica seria apenas uma parte, transformando o município maranhense em um pólo industrial, tecnológico e turístico, com diversas plataformas de lançamento comercial de foguetes e satélites - investimento avaliado em torno de meio bilhão de reais.
A realidade de pouco diálogo e muito conflito pode ser ilustrada por um episódio exemplar. Acordei cedo em um domingo de céu aberto e de sol de rachar para me abalar rumo a Mamuna, localizada a uma hora de moto do centro de Alcântara - isso quando as crateras no barro da estrada não metem medo no motociclista, como era o caso do jovem e arisco mototaxista que me conduzia. Eu estava à procura de Militina, uma senhora de olhar sereno e fala compassada que trabalha como professora lá mesmo na escolinha de Mamuna. Ela também é conhecida como uma das principais lideranças dos quilombolas de Alcântara. Tanto que, em outubro do ano passado, viajou até Washington, nos Estados Unidos, para prestar um depoimento na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), em que o estado brasileiro responde a uma espécie de processo pelo tratamento pouco carinhoso dispensado aos cidadãos de Alcântara. Na prática, caso ocorra uma condenação, não haverá qualquer tipo de punição, com exceção de um constrangimento moral.
Quando cheguei à casa de Militina, ela estava ocupada, conversando com dois geógrafos de uma empresa contratada pela ACS para a realização de um estudo sobre os impactos sociais e ambientais que podem ser gerados pelas atividades da binacional no entorno do sítio de lançamento do Cyclone-4. Meses atrás, a cena seria praticamente impossível de se ver porque a ACS e os quilombolas já estiveram quase em pé de guerra.
Inicialmente, a ideia do governo brasileiro era fazer a plataforma de lançamento do foguete ucraniano fora da base da Aeronáutica, entre Mamuna e o povoado vizinho de Baracatatiua - um dos que ainda nem energia elétrica têm. Essa área corresponde justamente a uma daquelas três "ilhas" ao norte do CLA que o Ministério da Defesa e outros órgãos do governo reivindicam como essenciais à expansão do programa espacial brasileiro. Porém, na avaliação dos moradores, o empreendimento isolaria as duas comunidades, ligadas por laços sociais históricos, além de dificultar o acesso a áreas de coleta de frutos e principalmente ao mar, prejudicando a pesca, atividade vital à sobrevivência das famílias. "Nós temos muita dúvida, medo de viver sem liberdade e autonomia", afirma Militina. "O estado nunca chegou para eles, e vai chegar agora para trazer prejuízos?", questiona o procurador Alexandre Soares, do Ministério Público Federal do Maranhão (MPF/MA).
Como a ACS planejava construir as instalações para operar com o Cyclone-4 entre os dois povoados, ela precisava em primeiro lugar de um estudo de impacto ambiental. "Quando a empresa afirmou que ia fazer esse estudo, no início de 2008, tomou um passo à frente. Sem autorização, começou a abrir estradas, fazer perfurações, colocar marcos dentro das comunidades. Mas não havia nada licenciado. Isso levou a empresa a ser autuada pelo Ibama", conta o procurador. Então, os moradores de Mamuna também resolveram agir. Primeiro, pararam as máquinas. Depois, montaram uma guarita onde se revezaram durante três meses para garantir que ninguém a mando da ACS recomeçasse os trabalhos, passando por cima de seus roçados. "Querem vestir a roupa de que o atraso de Alcântara é culpa dos quilombolas. Mas esperamos que essa tecnologia de ponta traga desenvolvimento para o município e para as comunidades", diz Militina. A disputa só foi resolvida com um acordo judicial, em agosto de 2008, proposto pela União. Para não correr o risco de descumprir o contrato firmado com os ucranianos, o governo mexeu os pauzinhos internamente e a empresa binacional foi alocada dentro do CLA.
Na avaliação do procurador Alexandre Soares, a dor de cabeça seria evitada se as autoridades brasileiras não hesitassem tanto em achar um espaço para a plataforma da ACS na vasta área da base da Aeronáutica. "A princípio, a União disse que era inviável. Mas, depois de seis meses, ela mesma fez a proposta de que poderia ficar dentro do CLA. É uma contradição", avalia. Desde 2003, corre na Justiça uma Ação Civil Pública movida pelo MPF/MA que pede a titulação definitiva dos territórios quilombolas antes de qualquer tipo de intervenção na área. A rigor, a medida não impede a construção de novos sítios de lançamento de foguetes. É só uma maneira de garantir que não se repitam os erros cometidos no passado. Apesar de classificar a titulação contínua dos 78 mil hectares de nonsense, o presidente da AEB afirma que não vai desistir de Alcântara. "Independentemente disso, essas pessoas poderão amanhã, com a titularidade da terra, estudar um melhor destino a seu próprio destino, dado que no momento elas plantam mandioca, feijão, caçam precariamente e pescam", afirma Carlos Ganem.
Depois de me despedir de Militina, subi na garupa da moto-táxi e enfrentei mais alguns quilômetros de estradas precárias rumo à agrovila Pepital. Esse lugar remonta aos primórdios da instalação da base da Aeronáutica, nos anos 80, quando os militares transferiram centenas de famílias para núcleos habitacionais no interior de Alcântara, as tais agrovilas, bem longe do mar. "A negociação foi muito mal conduzida. Não era necessário expulsar ninguém para fazer o CLA. Nas bases chinesas, vivem comunidades que são retiradas da área apenas nos momentos de lançamento", critica Ennio Candotti, expresidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). O então presidente José Sarney assinou um decreto reduzindo pela metade o tamanho mínimo, determinado pelo próprio governo, da parcela de terra necessária à sobrevivência de uma família naquela parte do Maranhão. Mesmo assim, passados mais de 20 anos, ninguém tem escritura que comprove a propriedade sobre as áreas.
Em Pepital, encontro uma simpática senhora,Leandra de Jesus Oliveira. Para fugir do sol escaldante, sentamos à sombra do pátio de um colégio desativado localizado logo na entrada da agrovila, onde alunos e professores não se reúnem já faz um bom tempo. Leandra guarda na memória o dia exato em que deixou o povoado perto da praia onde vivia: 9 de setembro de 1986. "Os militares não chegaram expulsando. Eles fizeram uma proposta muito bonita, e as pessoas se embelezaram", recorda. Casas de alvenaria para as famílias, emprego para os adultos, escola para as crianças. Enfim, os quilombolas também teriam o seu quinhão no desenvolvimento que a atividade espacial traria. Leandra até reconhece como melhorias proporcionadas pelas agrovilas as casas de tijolo, que substituíram as construções de taipa, e principalmente a luz elétrica. "Mas saímos de uma terra fértil. Aqui a gente planta, mas não dá nada. É só areia." Ela reclama ainda da escassez de um alimento básico que não faltava décadas atrás. Peixe, agora, só quando o pessoal de Mamuna passa vendendo. Dona Leandra mira a praça em frente ao colégio, tomada pela lama e pela vegetação descuidada, onde até um pequeno jacaré já foi encontrado, e diz: "Aqui eu queria que mudasse era tudo".
A questão também está na agenda do congresso. "A instalação da base espacial desorganizou a cultura e a produção da população, criou uma expectativa falsa. Dentro dela é primeiro mundo: todo mundo fardado, com salário, telefone, asfalto. Fora, é uma miséria", afirma o deputado federal Domingos Dutra (PT/MA). Ele é o autor de um projeto de lei, ainda não aprovado, que destina uma porcentagem da receita da ACS com os lançamentos de satélites para um fundo a ser utilizado em benefício de Alcântara. Algo semelhante aos royalties pagos pela Petrobras aos municípios de onde a empresa extrai petróleo. "Um dos motivos da repulsa ao projeto espacial é que em todos estes anos ele foi só atraso. O fundo é como se fosse uma poupança para as comunidades a fim de reparar os danos praticados", resume o deputado. Já seu colega Ribamar Alves (PSB/MA) tem um sonho para lá de otimista: ver o litoral maranhense transformado no "novo Cabo Canaveral", em alusão ao centro tecnológico e turístico localizado na Flórida, na costa leste dos Estados Unidos, de onde os norte-americanos lançam seus foguetes. Alves encabeça uma frente parlamentar em defesa da base de Alcântara, mas acha que por enquanto as atividades do programa espacial brasileiro devem ficar restritas à área que já se encontra sob controle da Aeronáutica. "Só será possível expandir quando se conquistar a confiança dos nativos. Por enquanto, é muita agressão. O governo perdeu a credibilidade", pondera.
Depois de passar por Mamuna e Pepital, retornei a São Luís. Precisava esperar mais um dia para, enfim, conhecer o CLA. Na noite anterior à data agendada, me encontro com o assessor de imprensa especialmente destacado de Belém do Pará para me acompanhar durante a entrevista com o coronel Nilo Andrade, responsável pela administração da base. Então, às 6h45 da manhã do dia seguinte, lá estava eu no trapiche da Ponta da Areia para pegar a lancha que conduz ao CLA o efetivo de mais de uma centena de servidores da Aeronáutica. O transporte é mais confortável do que o barco usado pela população. Aportamos no mesmo cais de Alcântara que já me era familiar. A volta da lancha estava marcada para 16h30, por causa da maré.
A conversa com o coronel Andrade aconteceu logo pela manhã, e começou com papéis invertidos. "Você tem alguma opinião preconcebida sobre a questão dos quilombolas?", ele me perguntou. Respondi afirmando acreditar que a questão já está mais ou menos encaminhada com o relatório que o Incra havia produzido, recomendando a titulação contínua do território étnico. "Não está, não", retrucou. O coronel também avalia que, para se expandir, o programa espacial brasileiro necessita dos três lotes ao norte do CLA. Segundo ele, com a plataforma de lançamento do Cyclone-4 que vai ser construída, e a que já existe para a operação dos foguetes brasileiros da família VLS, não existe espaço na base da Aeronáutica para mais nada. "Esses novos sítios não vão prejudicar as comunidades. Todas as necessidades delas estão listadas e priorizadas na instalação do programa", garante. E insistiu na tese de que o desenvolvimento das atividades espaciais tem beneficiado a população local. "Dos 500 soldados que trabalham na base, 400 são nativos de Alcântara. Os contratos firmados com empresas que vão realizar obras vão dar preferência à mão-de-obra local."
Desde o acidente com o vls em 2003, apenas pequenos foguetes de sondagem, sem capacidade de carregar satélites, são lançados a partir do CLA. Basicamente, sua parte operacional é composta por uma estação de meteorologia, além de laboratórios com radares que monitoram a trajetória dos lançamentos, e aparelhos que fazem a leitura das informações enviadas pelos foguetes. Não é preciso ser especialista para perceber que os equipamentos não são dos mais modernos. "Ali existem coisas que já são quase objetos de museu. Vamos precisar dar um upgrade no centro. Tem muita coisa que é sucata", afirma o expresidente da AEB, Sergio Gaudenzi.
De acordo com o coronel Andrade, seriam necessários pelo menos R$ 100 milhões para modernizar os sistemas operacionais e outros R$ 150 milhões para completar a infraestrutura prevista no plano diretor do CLA, com a construção de uma escola e um hospital, dentre outros itens. Retrato da estagnação da base é o aspecto fantasma do conjunto residencial com mais de uma centena de casas que deveria abrigar os oficiais que lá trabalham. Diante da complicada qualidade de vida em Alcântara, a maioria optou mesmo por morar na capital São Luís. "Os oficiais de carreira lamentam que deveriam ser feitos investimentos. Mas você vai gastar dinheiro em um lugar onde as pessoas saem às 4 da tarde e voltam às 8 da manhã? Isso se faz nas repartições públicas de Brasília, e não nos centros de pesquisa estratégicos. Vai ver se no Cabo Canaveral alguém dorme. É uma atividade permanente. E lá a comunidade se integra. Não é um entreposto de soldados", critica o professor Ennio Candotti, da SBPC.
De fato, por toda a simbologia que o conflito encerra, é realmente impossível não prestar atenção à disputa travada em Alcântara entre empresas lançadoras de foguetes e camponeses pobres lutando por suas terras. Nesse enredo há margem inclusive para teorias da conspiração: setores do próprio governo sustentam que organizações estrangeiras se infiltraram entre os quilombolas para inviabilizar o programa espacial brasileiro. Porém, creditar a essa disputa as dificuldades que o Brasil enfrenta nesse setor tão estratégico para o desenvolvimento de qualquer país é uma leitura apressada e até mesmo inverossímil. A rápida volta pelos laboratórios do Centro de Lançamento de Alcântara evidencia aquela que é, sem dúvida, a principal causa dos problemas: a histórica desatenção do Estado brasileiro para com as atividades espaciais. Ou, mais direto, a falta de dinheiro. Nesse sentido, o acordo com os ucranianos também teve o efeito positivo de acelerar os investimentos na base da Aeronáutica e no próprio município. A rodovia MA 106, por exemplo, principal via de acesso terrestre a Alcântara, vai ser totalmente recuperada em uma obra conjunta de R$ 30 milhões entre a AEB e o governo estadual para possibilitar o trânsito de equipamentos necessários às atividades da ACS. Neste ano ainda, outros R$ 38 milhões devem ser investidos para a modernização do CLA, segundo o presidente da AEB.
Mesmo assim, seria preciso "multiplicar talvez por dez o montante que o tesouro nacional nos confere por votação da lei orçamentária", pondera Carlos Ganem. Em 2008, foi empenhada uma rubrica de R$ 213 milhões para diversas ações do Programa Nacional de Atividades Espaciais. Uma verdadeira esmola considerando os quase US$ 20 bilhões de que dispõe a Nasa, a famosa agência espacial norte-americana. Para 2009, o orçamento da AEB sofreu um corte de 22,5%. Com mais dinheiro, até mesmo a trágica explosão do VLS, que matou 21 pessoas em 2003, poderia ter sido evitada. De acordo com o relatório da comissão que investigou as causas do acidente, por uma questão de economia a construção do foguete deixou de usar cabos blindados que poderiam ter impedido o acionamento antecipado dos detonadores. "Já houve três tentativas sem sucesso de lançamento do foguete brasileiro, e nenhum quilombola atirou uma pedra sequer no VLS", provoca o deputado Domingos Dutra.
Não há dúvidas de que o governo precisa encarar o programa espacial como prioridade. Mas é preciso colocar a mão no bolso para investir no CLA e, principalmente, em Alcântara. Talvez assim se conquistasse a confiança da população, tão acostumada a discursos desenvolvimentistas que nunca saíram do papel.
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