A filosofia, os questionamentos e as ambições de Paulo André, o zagueiro que vive para atacar em outros campos
André Rodrigues Publicado em 15/03/2013, às 12h20 - Atualizado às 16h47
Paulo André está mais uma vez na terapia. O zagueiro camisa 13 do Corinthians, titular das conquistas recentes (o bicampeonato Mundial e o pentacampeonato do Brasileiro), sofre dores crônicas no joelho. Mas em uma tarde de fevereiro, as preocupações se concentram na cabeça. Em uma casinha na zona leste de São Paulo, o jogador trata da alma com uma psicóloga.
Conhecido por adjetivos pouco usados para destacar boleiros (“intelectual”, “filósofo”), Paulo André Cren Benini, 29 anos, acredita que o futebol precisa ser mais bem compreendido e que jovens atletas necessitam de instrução para não se frustrarem no futuro. Atualmente, ele se destaca não pela genialidade com que trata a pelota, mas sim porque já publicou um livro com reflexões sobre o esporte, escreve em um blog com 30 mil acessos diários, pinta quadros impressionistas e abstratos, joga xadrez e gosta de literatura e aforismos. Não à toa, foi apadrinhado por Sócrates, o falecido craque do Corinthians e da seleção, também conhecido pela dedicação à sociologia da bola. Esses diálogos socráticos ajudaram a levar Paulo André para além da área que protege no campo: ele não quer viver apenas das glórias ou decepções geradas dentro dos estádios. O objetivo é usar a cabeça para assistir aos jogos de outra forma e acessar a realidade que está lá fora.
Vídeo: veja o making of da sessão de fotos com Paulo André.
Dez dias antes da tal consulta, ele pendurou as chuteiras – as dele e as de outros jogadores do Corinthians – em um elegante bufê de São Paulo. Para realizar um leilão e arrecadar fundos para o Instituto Paulo André – entidade que ajuda cerca de 200 crianças em Campinas –, o jogador pegou os calçados dos colegas, as luvas do goleiro Cássio, a prancheta e um terço do técnico Tite, e enquadrou os objetos. Com a ajuda da artista plástica Bia Tambelli, completou os quadros com uma técnica inspirada na arte do pintor norte-americano Jackson Pollock. Cerca de 400 convidados se aglomeraram para prestigiar o jogador-artista – jogadores e alvinegros famosos, como Andrés Sanchez, ex-presidente do Corinthians, e o publicitário Washington Olivetto. Enquanto tomava champanhe e comia canapés, o bando de loucos dava lances. Duas horas depois, Paulo André arrecadou R$ 829 mil. O quadro com uma luva de Cássio alcançou o maior preço: R$ 135 mil.
“O que eu recebo de xingamento por causa disso… O cara acha que parei minha vida por causa de um quadro”, Paulo André reclama dias depois, no espaçoso apartamento em que mora, em um bairro de classe alta de São Paulo. “E o que me deixa mais revoltado é que quando você erra – e você vai errar – o cara acha que estou errando porque não estou focado. Não é, cara!”
Na entrada, há outro quadro pintado por ele, uma imagem do estádio do Pacaembu feita para comemorar a conquista da Libertadores – que não jogou por causa de contusão. “Toda vez que me machuco, vou pintar. É meio como uma defesa.” A carreira começou nas categorias de base do São Paulo, aos 14, depois de sair de Campinas, onde nasceu. Teve experiências no CSA, Águas de Lindoia, Guarani e Atlético Paranaense. Em 2006, foi contratado pelo francês Le Mans, onde ficou três anos, até vir para o Corinthians.
“A pintura surgiu na França. Operei duas vezes, estava depressivo. Achava que o futebol já era”, ele fala calmamente. Desde que passou a jogar, já sofreu sete intervenções cirúrgicas nos dois joelhos em 15 anos. Porém, as grandes reflexões aconteceram justamente nos momentos de crise extracampo, quando as atenções saíram do joelho e correram para a cabeça. Além da pintura – sempre autodidata –, também na França conheceu a filosofia, quando namorou uma brasileira que fazia mestrado em psicologia. “Ela começou a me mostrar [o filósofo existencialista] Jean-Paul Sartre. Comecei a ler as coisas dela e fui me conhecendo melhor.” Encarou Platão (O Banquete), Maquiavel (O Príncipe), José Ingenieros (O Homem Medíocre), entre outros (“O que não consigo ler é Nietzsche”). Encontrou na filosofia as respostas mais lógicas para a existência, e foi quando notou que o mundo passara a girar em uma velocidade diferente.
Velocidade, que sempre foi um problema. Paulo André recebe caneladas da imprensa em relação ao tempo de sua corrida em campo. “Eu me matei para tentar ser rápido. Faz dez anos que eu já sei disso, estou tentando melhorar”, ele fala, jogando com o lado intelectual: “Pelas limitações físicas que sempre tive, só consegui sobreviver porque enxerguei tudo de uma maneira diferente”. A vantagem vem de estudar a tática do jogo e procurar o melhor lugar em campo – além de aproveitar o 1,90 metro de altura. Já o pensamento agudo se revelou quando teve de escolher a posição nos gramados. Ao subir de infantil para juvenil, optou por ser zagueiro, pois teria mais chances de ficar no time. Dos 26 gols que já marcou na carreira, todos, de um jeito ou de outro, foram usando a cabeça.
Foi do início da carreira que saiu boa parte das reflexões de O Jogo da Minha Vida, livro que lançou no início de 2012 e mistura autobiografia com sugestões para quem pretende seguir a profissão. Filho de um funcionário do Banco do Brasil e de uma química, Paulo André não tem ensino superior completo – fez dois anos da faculdade de educação física. A paixão pela escrita vem desde criança. Tímido, pegava papel e caneta e escrevia para aliviar as dores e os pensamentos. Os textos estão guardados em quatro pastas. Depois que o livro ficou pronto, enviou para o jornalista Juca Kfouri, que indicou o trabalho para uma editora. O Jogo da Minha Vida vendeu 15 mil exemplares e está na terceira edição. Ele cita de bate-pronto três objetivos que pretendia atingir: “Mostrar que é uma vida [a de jogador] de ilusão, difícil de dar certo, não pode ser a única esperança de uma criança; falar do sistema, que é muito difícil e, além disso, ruim; e contar a minha história”. Não é uma obra de autoajuda, e o final é feliz apenas por enquanto. Muita gente pergunta quem é o ghost writer. Ele abre o notebook e mostra um texto inédito sobre “os hipócritas”. Há uma cadência e não parece inventado por ninguém mais além do próprio Paulo André.
Paulo André crê que o futebol é um microcosmo da sociedade, e que entender o mundo da bola é perceber também como a vida funciona fora dos estádios. O atual livro de cabeceira dele é A Dança dos Deuses, do historiador Hilário Franco Júnior. Na obra, o autor escreve que “no Brasil, o futebol é bastante jogado e insuficientemente pensado”. E é nessa brecha que o zagueiro-pensador quer se enfiar e surpreender, exibindo opiniões sobre a organização do futebol. “O nível é tão ruim, os serviços tão precários, que não precisa ser um gênio. Qualquer coisa que eu fizer, o resultado é grande. Então, vou me meter.”
Cada vez que ele se mete, percebe que as pessoas pensam que lugar de jogador é apenas no campo. Recebeu uma patada do amigo Andrés Sanchez ao comemorar a saída de Ricardo Teixeira da CBF (“Ricardo Teixeira renuncia à CBF e ao comitê da Copa. Marin assume... Começamos bem a semana!”, tuítou); também causou polêmica porque mencionou que Neymar simula faltas (“Ele está no direito dele, faz parte do jogo”); e levou um carrinho do Sindicato de Atletas, que divulgou que Paulo André é “pseudopolitizado”, após ele sair em defesa dos jogadores do Palmeiras ameaçados pela torcida. Também se declarou chocado com a morte do jovem Kevin Espada, atingido por um sinalizador disparado por um torcedor corintiano durante partida entre o clube brasileiro e o San José, na Bolívia. “Isso só mostra como as coisas estão desorganizadas”, ele comentou um dia após o ocorrido. “Foi uma tragédia, mas se nada mudar, pode acontecer de novo daqui a seis meses.”
Mesmo falando tudo o que pensa, Paulo André não se importa em tomar advertências. “O que me incomoda é a ignorância. Discutir com ignorante é perder tempo. Será que vale a pena se expor tanto? Eu falei que quero ser presidente da CBF. Fui o único jogador a falar mal do Ricardo Teixeira. Eu jogo futebol e ainda tenho a boca e a cabeça”, fala, sem alterar o tom. “Como vamos formar jogadores? Que tipo de imagem a CBF quer passar para a população? Isso é o mínimo.”
Saímos do consultório da terapeuta e seguimos para o CT do Corinthians, no Parque Ecológico do Tietê. “Eu queria que o Sócrates estivesse aqui. Porque hoje é uma nova fase que estou vivendo”, ele recorda o jogador que se notabilizou pelas posições políticas – um exemplo que Paulo André pretende seguir. “Ganhei o Brasileiro no dia em que ele morreu. A partir do Mundial, comecei a ser reconhecido pelo campo e extracampo. Eu queria entender o que ele viveu e passou. Não tive tempo de falar essas coisas. Ele me deu coragem.” Também era Sócrates quem lhe dava conselhos sobre a publicação dos textos mais polêmicos do blog que mantém desde 2010.
No CT, o silêncio é perturbador e o céu revela nuvens carregadas. Paulo André aponta um conjunto com apartamentos que serve de concentração para o time, sem glamour ou indícios de mordomias. “Nunca vi ter putaria, festa em concentração, droga. Nada de suruba. Nunca”, diz. Olhando o campo de longe em uma espécie de varanda, a força da natureza o impressiona com os raios. Hoje, diz não ter religião, mas acredita em “Algo”. Nos tempos do São Paulo, chegou a se interessar pelo movimento evangélico. “Eu era muito fechado. Tinha uma ligação forte com religião, igreja, que me restringia muito. Sou católico de nascimento. Mas no São Paulo a maioria era evangélica. Faziam cultos nos quartos”, lembra.
Depois que encontrou a filosofia, passou a encarar Deus de forma diferente. Foi buscar entender o espiritismo e o budismo. Também olha desconfiado para outra instituição: a do casamento. Hoje, namora uma relações-públicas. Aproveita para soltar uma frase, uma das muitas que armazena no computador. “Sou ‘Machado de Assis’ nesses casos. Ele fala o seguinte: ‘Deus na sua grandeza, na sua sabedoria, inventou a fé e o amor. O Diabo, muito malvado, querendo destruir tudo, fez o ser humano confundir a fé com religião e o amor com casamento’.”
Às 20h, começam a chegar os convidados para a já tradicional noite de pôquer no apartamento de Paulo André. Os participantes são esportistas, empresários e amigos que dão conselhos e trocam experiências. Ronaldo, o Fenômeno, já participou e até um ex-presidente entrou na roda (não era o Lula). O próprio anfitrião não se arrisca tanto na jogatina. Tem fama de mão de vaca (“Sou negociador, é diferente”). Aplica o dinheiro em fundos de investimentos e aprendeu a mexer com ações.
Na biblioteca, mostra os livros que já leu: Dan Brown, Gabriel García Márquez (“Esse é demais”), Sidney Sheldon (“O mais gostosinho de ler”), Morris West, Irvin Yalom e biografias de Andre Agassi e Michael Jordan. Paulo André reafirma que pretende ocupar outros campos. Há milhares de atletas que não vão jogar no Corinthians, não ganharão dinheiro com o esporte, não serão reconhecidos, não terão famosos na sua roda de pôquer. “E esse resto? O que está sendo feito com essas vidas, cara?”, lamenta. Se tivesse que passar uma mensagem, seria: “É possível jogar bola e fazer outra coisa”. Ou seja, a vida do atleta não pode ser concentrada nos campos de futebol. “Hoje virou moda: ‘Paulo André é diferenciado’. Eu quero ser um ser humano diferenciado, não um jogador diferenciado, porra! Jogador diferenciado é o Ronaldinho!”
Então, solta outra frase, esta dele mesmo: “Se eu me preocupar só com o futebol, meu rendimento cai muito. Vou ser triste”. E serenamente passa os olhos pelas cartas que estão na mesa.
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