André Rodrigues Publicado em 14/06/2016, às 17h38 - Atualizado às 17h51
Quando certa manhã Maitê Proença acordou de sonhos intranquilos, ela se viu na internet metamorfoseada numa bunda que não era a dela.
A vida da atriz, escritora, dramaturga e apresentadora Maitê Proença parece mesmo uma história cheia de momentos de ficção absurdista, com muito som, fúria e alguns silêncios. Recentemente, em uma cena da novela Liberdade, Liberdade, da TV Globo, Dionísia, a personagem que interpreta, aparecia de relance com as nádegas desnudas. Foi o suficiente para as redes sociais serem tomadas por uma avalanche de comentários. Em um primeiro momento, ela foi abençoada com hashtags que elogiavam o corpo aparentemente poupado dos efeitos do tempo. Aos 58 anos, Maitê lembrava (de costas, pelo menos) a moça que estampou em 1982 a capa do lendário jornal O Pasquim com o título “Maitesão”. Horas depois, quando a dublê dela se apresentou para o país contando que a derriére e tinha outro nome e sobrenome, tudo virou de cabeça para baixo. No tribunal público e cruel da internet, Maitê passou a ser cobrada por não ter revelado o truque.
Em um luxuoso hotel de São Paulo, em uma sexta-feira de maio, Maitê Proença Gallo não parece abalada pelo caos da “falsa nudez”. Afinal, há pelo menos 30 anos o Brasil discute em rede nacional o corpo da atriz. Em 1986, ao estrelar os banhos de cachoeira da novela Dona Beija, inundou de desejo os lares de quem tinha um aparelho de TV. “Eu não tenho problemas de pudor com isso. E não tenho problema nenhum com meu corpo. Já dei várias mostras disso”, diz. Maitê afirma que a dublê foi chamada porque ela própria tinha 18 cenas naquele dia e não poderia fazer a sequência nua, pois precisaria de um intenso trabalho de caracterização. “Eu não poderia ficar com minha perna à disposição. E é com isso que ela [a modelo] entrou. Achei muito deselegante da parte dela esse oportunismo por cinco minutos de fama. E muito feio. O trabalho dela não é o que aparece. O que aparece é o meu”, encerra o assunto.
De camisa branca, cabelo preso, colar e calça vinho, Maitê está mais preocupada com outras mágicas. Dali a dois dias ela estrearia o quadro “Truque Vip” no Domingão do Faustão, em que tentaria enganar a plateia com novas habilidades. Além da novela e do segmento dominical, ela também participa do programa esportivo Extra Ordinários, do canal SporTV, em que discute futebol e causou furor com adivinhe... Um striptease realizado para pagar uma promessa.
Com a infância no litoral (Ubatuba) e a adolescência no interior (Campinas) de São Paulo, Maitê hoje tem pinta mesmo de carioca (mora no lendário edifício Chopin, no Rio de Janeiro). Com duas décadas de vida, já tinha uma trajetória singular e dramática. A mãe, professora de filosofia e música, fora assassinada pelo pai, procurador do Estado, em um crime aparentemente ocasionado por uma crise de ciúmes. Maitê viveu em um pensionato luterano, na torre de uma igreja, e desde cedo partiu em viagens para tentar entender o mundo. “Deve ter um propósito isso que a gente faz aqui. Acho que intuitivamente temos inclinações na direção desse propósito. E devemos seguir essa inclinação, mesmo que ela te dê pavor”, filosofa. “Não faça só as coisas que têm sentido. Faça as que não têm também se você estiver impulsionado para aquela direção, porque talvez seja esse o lugar, né?”
Ao ser convidada pelo escritor Mario Prata para um teste em 1979, iniciou uma exuberante carreira de atriz na TV ao interpretar Joaninha na novela Dinheiro Vivo, na TV Tupi. Com Dona Beija, na também extinta Rede Manchete, arrancou uivos de loucura no papel de uma das cortesãs mais famosas do Brasil. Posou duas vezes nua para a Playboy, em 1987 e 1996, ajudando a vender cerca de 1,5 milhão de exemplares da revista.
Mãe de Maria, sua única filha, a atriz participou de mais de 30 novelas e séries, apresentou programas de TV, fez duas dezenas de filmes, além de escrever e atuar em peças de teatro. Quando começou a publicar livros, em 2005, chamou atenção pela eloquência e elogios rasgados que recebeu de mestres da literatura, como Carlos Heitor Cony e Miguel Souza Tavares. “Eu não sou uma pessoa de metas. E vou pra onde dá muita vontade. Se você deixa todo o conjunto de suas percepções, inteligência genética, DNA, isso tudo pensar por você, vai andar mais certo”, teoriza sobre os diversos campos em que trafega.
Maitê Proença representa há décadas o feminino brasileiro, falando francamente, exibindo sem pudor o corpo e demonstrando uma intensa vontade de se ver viva. “Eu não penso no passado, no futuro, não penso em nada disso. Eu vou andando. E sinto que sou uma pessoa bem diferente hoje do que eu era há cinco anos. Bastante até.”
Nesta entrevista, Maitê fala sobre como muda para continuar sendo ela mesma.
Aos 58 anos de idade e com 37 de carreira na televisão, você ainda é o símbolo de um determinado padrão de beleza. Sua presença em cena continua despertando o escrutínio de homens e mulheres. Por quê?
Acho que a coisa da sexualidade talvez tenha a ver com o entusiasmo. Porque eu creio que quando as pessoas falam de beleza, é uma outra coisa que estão olhando. Primeiro, tem um estigma da beleza. Você estigmatiza uma pessoa de um jeito que os outros olham e acabam achando aquilo também. Nåo sei mais se é meu porque eu mesma me olho todo dia no espelho e não tenho a menor ideia. Mas eu sei quando está ruim, porque tem mais olheira, estou mais cansada. Mas eu não vejo e “ohhh” [suspiro de admiração]. Acho que tem a ver com a vibração, como o entusiasmo pelas coisas. Isso que elas estão vendo.
Imagino que você nunca teve problema com a nudez.
Não tenho nenhum problema com a nudez. Já não tinha na minha casa. Quando eu era pequena, morava numa casa em U. Eu ia sem roupa do meu quarto até a lavanderia. E eu tinha um irmão adotivo que era mais velho. Quando fiz 11 anos, ele falou: “Você não pode mais ficar andando pela casa assim”. Eu: “Por que não?” Andei a vida inteira pelada. Meus pais moravam em Ubatuba. Eu não me lembro de em nenhum momento sair para comprar roupa com a minha mãe. E no início eu não tinha roupa. Não usava. Vivia na praia pelada. O máximo que eu tinha era uma tanga de Tarzan para andar nas pedras e não machucar se caísse. Eu me lembro da primeira vez em que fiquei meio assustada... Eu entrei num hostel na Holanda e tinha um sujeito escovando os dentes com aquele pinto balançando por causa do movimento da escovação [risos]. Eu falei: “I’m sorry”. E ele não entendeu. Aí tirei a roupa também! Se é assim, está bom.
Você já recebeu críticas de feministas. Como vê o movimento?
Eu adoro o feminismo. Acho que a escravidão ainda se perpetua e existe no mundo. E o problema mais grave, que deve ser atacado, é o caso das mulheres que têm a genitália cortada. Oitenta por cento das mulheres do Egito têm a genitália cortada [uma pesquisa de 2015 informa que, no Egito, 92% das mulheres casadas passaram pela chamada circuncisão feminina]. E um negócio que a gente nem pode imaginar. Elas jamais terão prazer sexual na vida porque um homem resolveu cortar com uma lâmina. Elas morrem desse negócio. São submetidas a tudo, a ter filhos que não desejam, com homens que elas não desejam. Isso sim eu acho importante falar.
Sua postura diante da nudez acaba revelando uma posição feminista, não?
Quando eu fiz a Playboy, falei assim: “Se eu fizer a mesma foto na Photo, as feministas vão achar que é arte, então pode. Mas, se eu fizer na Playboy, não pode”. Acho que o revolucionário é estar na Playboy de um jeito que não se faz na Playboy. Então, falei que não queria cinta-liga nem nenhum dos elementos do fetiche. Eu quero uma pedra! Isso sim é que marca a situação. E as duas vezes que fiz foram do jeito que eu queria.
Hoje em dia, com os espaços privados cada vez mais sendo levados a público, como você se vira observando tantos comentários, especulações e afirmações sobre sua vida?
O que tem de chato hoje é que você está muito exposto. Se eu soubesse que isso iria acontecer, não teria escolhido uma vida pública. Sou muito reservada. E muito desagradável pra mim. Eu preciso viajar para virar a Maria da Silva, para cair na real de vez em quando. Você tem muitas facilidades, essa parte é confortável, ótima. Porém, é muito chato as pessoas sempre terem uma expectativa em relação a você, uma lista de coisas que atribuem a você. E tem um bando de covardes sem cara na internet, com um poder perigoso na mão. Terrível.
Além disso, tem a rua.
Sim, também o fato de sair na rua e ser constantemente simpática. Você sorri o dia inteiro. Bota uma primeira e vai até dez horas da noite no “rarararara?”. Porque tem que tirar fotos. Antigamente as pessoas chegavam com um papel e um lápis. Agora, não. Você não pode ter um pensamento. Se eu ando da minha casa até o Copacabana Palace, sou interrompida sete vezes e não consigo pensar. Eu tenho uma vida interior! O que eu faço com a minha vida interior? Enfio no rabo?
E onde consegue essa paz para poder pensar?
Em casa. E sou obrigada a viajar para um lugar que não tenha brasileiros, de preferência, ou novela da Globo. O que dá uma restringida [risos]. Ou então ficar em casa. Porque não é muito divertido sair, é bem menos divertido do que era antigamente, porque antes não tinha jornalista nem paparazzi. A gente fazia loucuras. Todo mundo fazia tudo o que queria, tinha uma vida corriqueira e não saía no jornal. Acho que tinha um pudor sobre o que era publicável. Mudou isso. Não era bonito falar de alguém que tinha caído na sarjeta. A gente era mais livre.
Isso é o que mudou na sua relação com o mundo. E dentro de você?
Acho que sou uma pessoa muito diferente do que era 20 anos atrás. Eu nem me lembro de como eu era há 20 anos. Mas eu sei que sou diferente porque sinto que estou em outra zona do meu ser. Eu entrei em searas que quando eu tinha 20 anos eu nem sabia que existiam.
Faz algum tipo de reflexão para saber se é uma Maitê pior ou melhor?
Não me interessa. Porque com 20 anos eu estava fazendo o melhor que eu podia também. Era meu melhor naquele momento. E era o que estava me interessando. Mas observando as Maitês que se foram, eu vejo que sou muito diferente. Muito.
Lendo suas outras entrevistas, observando seu trabalho e analisando seus escritos, para mim parece que há alguma essência ligando todas essas Maitês. Não há?
Talvez haja uma essência que una tudo isso. Eu sinto que tem um negócio totalmente da verdade. Eu me entrego em sacrifício contra a hipocrisia, entendeu? E isso é desde sempre. Eu fui uma criança agressiva por causa dessa coisa da verdade. Tinha tudo a ver com o que me parecia correto, certo, o que era a verdade, não fazer concessões. Você pode fazer concessões, mas na adolescência não sabe disso, né? Então, eu levantava as bandeiras mais do que qualquer outra pessoa. Talvez tenha esse treco aí, que é uma linha reta de conduta ética.
Uma espécie de luta pela verdade?
Todo mundo fala que diz a verdade, né? E parece meio... sei lá. Até meio ingênuo falar isso, mas... E porque eu não sei... Como eu te disse que internamente sinto que mudei muito e você está me falando que existe uma essência... A única coisa que posso imaginar que seja um fio que me mantém unida dentro de todas as variações é isso. E um amor por uma coisa assim: “De verdade, quem sou eu?”
Essa é uma busca intensa e eterna que você sempre realizou de diferentes maneiras, não é?
Por isso viajei o mundo inteiro. Eu fui para lugares nos quais eu tinha que me adaptar a eles e não o lugar se adaptar a mim. Sempre gostei dessa provocação. Porque daí tenho que ver o que sobra de mim quando mudo completamente porque estou num país islâmico. Quando eu tiro todas as minhas verdades e eu entro na verdade do outro, o que sobra de mim? Desde sempre eu viajei. Com 13 anos eu já estava viajando. Esse deslocamento é um pouco isso. Por que a Maitê gosta tanto de lugares onde ela não tem nenhum conforto? E não é conforto físico, porque isso não tinha mesmo com dólar no bolso. Mas o conforto com seus valores, conduta, hábitos.
Além das viagens físicas, creio que os passeios espirituais também fazem parte dessa jornada.
Eu fui investigar religiões. Eu fui investigar Deus. Fiz psicanálise durante muito tempo. Tomei drogas de expansão de consciência, todas essas coisas. Mas não tomei como as pessoas tomam, duas vezes na vida. Eu tomei três anos, quatro vezes por semana. Porque achei que era a única maneira de fazer aquilo direito. Eu tinha muito medo. Não era nada agradável. Ainda assim eu fui durante três anos porque eu precisava tirar as cascas que coloquei socialmente. Eu as via lá dentro. E a única maneira de eu chegar na essência de mim era se tirasse aquelas cascas.
Foi muito sofrido?
Muito. O ego ficava agarrado naquele treco. O ego se agarrando ali e dizendo “Não, não, não, eu quero aqui”. E o treco me falando: “Sai, você não precisa disso, isso não é você”. E eu: “Mas se sair vai desmoronar toda minha construção, eu vou virar pó. Eu vou morrer”. E só quando eu morria dentro do processo que eu ia aonde eu sou, que não era humano. Eu não sou essa coisa aqui [apalpa o próprio corpo]. Isso aqui é uma construção. Talvez tenha alguma coisa que fez essa carne para uma necessidade que a gente não sabe agora, um dia a ciência vai explicar. Talvez. O “você” de verdade não precisa de nada disso [aponta para meu corpo].
Deve ter sentido medo. Como conseguiu lidar com isso?
Era aterrorizante. Não posso te explicar o quanto era terrível. Era a morte. Dava muito mais medo do que qualquer coisa que já fiz na minha vida. Mesmo assim, fiz durante três anos. E foi dessa maneira fanática porque eu falei: “Só desse jeito para eu me curar, para me encontrar, para saber quem e? essa criatura”. Não ia dar pra fazer só na superfície, mais ou menos tipo: “Tomei uma bala [gíria para ecstasy] e vi uns negócios, um caleidoscópio, um funil”. Não, comigo não. Eu precisava ir lá naquele lugar.
Você consegue verbalizar isso que encontrou?
Sim, mas não quero contar. O que posso te contar é uma das coisas que me aconteceram, e aconteceu mesmo. Os traumas que eu carregava e vinham pra tudo... Eu zerei essa conta. De uma só vez. Zerou mesmo. Não eram mais meus traumas. Saíram das sinapses, descolaram. De verdade. Isso com 30 anos. Fez “pac” e foram embora de mim. Não são mais meus.
Quais traumas?
Aquele bloqueio, trauma de não o conseguir lidar com sentimentos. Eu lidava muito mal com meus sentimentos. Isso é péssimo pra uma atriz. Não dá. Sentimento tem que estar à flor da pele. E todos os meus perrengues mais cabeludos eu larguei num lixo em um minuto. Fez “crack” e saiu de mim. Da mesma maneira que eu larguei todas as experiências com drogas e cigarro. Foi do mesmo jeito. Eu tirei o cigarro e tive vontade zero de fumar no dia seguinte. Só posso entender como um negócio de sinapses mesmo.
Tudo isso foi no Santo Daime?
Foi o Daime, mas várias outras coisas. Antes do Daime eu tomei e fiz várias outras coisas. E cheguei numa hora apropriada para me jogar da maneira como me joguei. Hoje em dia não tenho mais interesse no Daime. Porque dentro do Daime já vi que não é mais pra mim. Ele me disse. O Daime me falou. Eu entendi o que eu tinha. Agora fico com isso que aprendi. Foi tanto que tenho uma vida inteira para processar.
Mas não tem dogmas?
Deus me livre de dogmas. Não. Agora eu medito de um jeito que ninguém medita. Eu medito do meu jeito. Eu conheço o lugar para onde eu tenho que ir. Então, é mais fácil para acessar. E bem bom.
Hoje se sente mais confortável consigo?
Não, porque não para. E igual ao alpinismo. Você sobe a montanha. Quanto mais você sobe... Quanto mais eu conheço de mim, mais coisas descubro, mais vastas são as vistas para as planícies da minha ignorância. Entendeu? [risos] Piora! Agora eu vou fazer o que?? Eu tenho 50 mil coisas que eu gostaria de fazer e que me dariam muito sentido pra vida, sabe? E não dá para fazer essas coisas. E quanto mais interesses você tem e lê? e aprende, mais quer enveredar por aquele setor também. Então, essa questão vai piorando.
Tenho a impressão de que você gosta muito de se expressar...
Se não tiver você pra falar, vou ficar conversando com aquela tomada [aponta uma tomada em um canto da sala]. Vou contar pra ela as coisas que eu fiz e tudo. Eu falo muito sozinha. Em casa, eu falo o tempo todo sozinha, em idiomas diferentes, com sotaque e tal. Eu fui salva pelo telefone celular. Porque eu falava sozinha dentro do carro. E, quando as pessoas me olhavam e eu estava falando, aí me tocava que eu era a Maitê Proença. Não era a Maria da Silva. Então, eu fingia que tinha um cachorro no chão e falava: “Quieto! Para!” Para a pessoa não achar que eu estava falando sozinha [risos].
E você acha que se comunica bem por meio de suas peças e escritos?
Eu quero me comunicar. Aliás, eu sempre quis, mas eu não admitia pra mim mesma que era mais importante me comunicar do que o cara me achar inteligente. Entendeu? Isso é uma coisa que você não faz quando tem 18 anos. Você aprende aos 50. Com 18, você fala: “Seu burro! Vai pensar! Foda-se!” É outra postura. Você fica agressivo. Mas eu quero conversar. Eu quero que o cara venha comigo. Vou mostrar um negócio legal. Mas só posso mostrar na hora em que ele estiver aberto pra mim. Eu tenho que enganar até ele se abrir. Quando ele se abre, eu “pá!” Eu mando. Entendeu? Eu não quero que o sujeito me ache inteligente. Eu quero que converse comigo.
Em um Brasil já quase mitificado como polarizado, o “conversar” parece cada vez mais difícil. O que está acontecendo com o país Tem um pensamento sobre o momento que a gente atravessa?
Realmente eu não sei. Eu fui eleitora do Lula em uma das vezes. Enfim, estou tão decepcionada quanto todas as pessoas que estão decepcionadas, que não ficam na obsessão religiosa. Porque tem a obsessão religiosa, que é terrível. Você não pode discordar daquilo que percebe que está equivocado, porque está dentro de um movimento e é um movimento que não te deixa pensar. Eu quero ter meu pensamento independente. Acho que temos que sair desse estado religioso das coisas muito rapidamente. Eu não sei quais são as pessoas que vão liderar este país, porque você olha no horizonte e essas que estão ali foram colocadas pela população que não tem educação e que continua votando mal. As pessoas estão lá porque nós as pusemos ali.
Recebe sondagens para participar de governos, ser candidata...
Sondar, sondam. Um negócio completa- mente... Não! Prefiro morar no sétimo anel de Saturno, aquele frio, rodando... Acho que há formas mais eficazes, onde eu seria mais competente. E eu tento atuar dentro delas. Entendeu? Mas não tenho essa pretensão nem essa vaidade, nada disso.
E em relação a um estado geral do mundo? Como você se sente?
Tem o problema do mundo. Alguns pensadores aí dizem que existe Terra 1 e Terra 2. Até o século passado a gente vivia em Terra 1, que era muito parecida com a Terra 2. Tinha os mesmos tipos de pessoas, as mesmas casas. A gente morava no mesmo tipo de estrutura, ia para o trabalho, escola. Agora tudo isso, essas mesmas pessoas que viviam em Terra 1 vivem em Terra 2, onde tem as mesmas coisas, porém os valores mudaram. Porque em Terra 2 o que o meu pai manda eu fazer não preciso mais fazer. Tenho escolha. Há uma pluralidade de trabalho e dentro disso tenho que me descobrir. O amor não é mais como era. Tudo mudou em Terra 2, mas ao mesmo tempo nada mudou. A gente está “transicionando” para Terra 2, onde tem muito mais gente também, com mais dúvidas. Estamos no meio da ponte, no meio dessa transição. Então, é muito difícil fazer uma análise de como proceder, quem eu sou, o que eu penso.
Mas você faz essa análise?
O [sociólogo polônes] Zygmunt Bauman cita [o filósofo norte-americano do século 19] Ralph Waldo Emerson para dizer que a gente está correndo em cima de uma camada finíssima de gelo. E, se a gente parar, aquela camada quebra e você morre. Mas que a única saída é você parar e torcer para que não quebre. Então, haja coragem para você não ficar só no movimento. As pessoas estão só no movimento, não fazem reflexão. Ainda bem que eu vim de antes. Porque eu aprendi a fazer reflexão. Eu vim de uma casa onde as pessoas faziam isso. Tenho isso comigo, essa prática prazerosa.
E tem as pausas. Você se define como uma pessoa que precisa de pausas?
Sim, porque se não tiver pausas a gente fica se repetindo. Enquanto você está em movimento, faz mais ou menos o que já sabe. Um pouco mais burilado, mais pra lá ou pra cá, mas está se repetindo. E, quando para e fica naquele vácuo, é ali que surgem as ideias. É na hora que dá um hiato e surge um “tum”. E aí: “Caraca!” Mas, se não der tempo para isso acontecer, vai ficar se repetindo.
Diante de tudo isso que falamos, como se posiciona em relação à morte?
Eu sempre penso que se eu morrer hoje, minha filha vai ficar triste assim uns dias e enfim terá aquela falta de mãe. Meus amigos vão pensar nisso durante três, quatro dias e tal. E depois a vida segue exatamente igual. Ela segue seu curso sem nenhum ônus para a vida. Nada acontece. Tudo segue. Não tem nenhuma importância. Então, quando me pego dando importância excessiva para qualquer coisa, eu penso isso: “Que boba!” Você pode atravessar a rua e “puf”. Não vai fazer a menor diferença.
Escrevendo para Crescer
Maitê diz que estrear como autora fez dela uma atriz melhor
O namoro com a literatura começou em 2003, quando Maitê Proença passou a escrever crônicas semanais para a revista Época. Rapidamente chamou atenção com um estilo solto e franco ao relatar memórias e salpicar opiniões sobre tudo. “Foi desconfortável a coisa... Já que eu ia escrever, tinha que ter uma forma minha ou não valeria a pena”, ela conta sobre o início dessa relação com as palavras.Dois anos depois da estréia no papel, reuniu parte dos textos no livro Entre Ossos e a Escrita (relançado com novas crônicas no ano passado). “Ali [na literatura] eu encontrei um estilo próprio e uma identidade também muito mais densa do que a minha como atriz. Porque eu estava frustrada com a atriz. Para os outros estava bom, razoável. Para mim, não. Nunca esteve.” Essa insatisfação foi um dos motivos que a levaram também a publicar romances (Uma Vida Inventada, Todo Vícios) e escrever peças de teatro. Com Luiz Carlos Góes, burilou os textos de Achadas e Perdidas e As Meninas. Em 2013 apresentou outra peça de sua autoria, À Beira do Abismo Me Cresceram Asas, sobre duas idosas em um asilo. “Falavam que eu deveria escrever assunto de homem. Não quero escrever sobre assunto de homem, quero escrever o que eu quero escrever. Primeiro eu exorcizo meus bichos”, afirma. Segundo ela, a literatura também mudou a sua forma de atuar. “Quando eu voltei para a atriz, ela já veio diferente, sem medo também. Muito mais disponível.”
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