André Pessoa Publicado em 08/11/2007, às 19h29 - Atualizado em 17/12/2007, às 18h00
Ultimos dias de setembro de 2007. em todas as direções, tudo que a vista alcança é um emaranhado de garranchos secos. O tom cinza se sobrepõe. Não existe verde. Aproveitando as primeiras horas do dia, ainda não tão quentes, Ivana e Tamires, duas crianças na faixa dos 8 anos, começam uma longa caminhada na companhia dos seus pais e irmãos. O objetivo delas é cruzar um trecho de areia fofa de 14 quilômetros, ida e volta, até uma pequena fonte de água mineral na encosta dos paredões do Parque Nacional Serra das Confusões, no sudeste do Piauí. Moradoras do povoado de Barreiro, zona rural do município de Guaribas, elas vivem a rotina da busca pela água desde os primeiros anos de vida. Em tempos de seca braba como agora, a calamidade fica ainda mais forte.
Hoje, por sorte, um veículo do Ibama passou pelas redondezas e levará os habitantes do povoado até a reserva ambiental, aliviando temporariamente o sofrimento da caminhada. Não fosse isso, a rotina da vida severina dos moradores de Guaribas não teria mudado muita coisa desde que a cidade foi escolhida como modelo para o lançamento do Fome Zero, o maior programa social do governo Lula, por ser o termômetro do atraso social no Brasil. Apesar de o município ter recebido uma série de programas sociais que diminuíram a fome dos seus moradores, nas quebradas da zona rural, onde vive grande parte da população, pouca coisa mudou. "Em Guaribas e nos demais municípios incluídos no mapa da fome, as mudanças foram superficiais, pontuais no repasse dos recursos para as famílias carentes", explica o historiador Mário Ribeiro Filho, que esteve recentemente no município.
Para entender melhor essa história, é preciso voltar ao ano de 2003. Ao completar uma década de trabalho no interior nordestino, cobrindo o drama da seca nos municípios mais afetados pela estiagem, me dava o direito de descansar algumas semanas à beira-mar. O Brasil vivia um momento histórico. Pela primeira vez, um candidato de origem humilde, eleito pelo voto popular, seria empossado como presidente da República. De férias numa praia isolada, chamada de Baía da Traição, litoral da Paraíba, vi pela TV o ex-sindicalista Luiz Inácio da Silva anunciar que em poucos dias viajaria até o município de Guaribas - um dos lugares mais pobres e isolados do semi-árido brasileiro.
A idéia do então novo presidente era dar início ao principal programa social do governo numa cidade que poderia se tornar símbolo da prioridade no combate à fome e ao subdesenvolvimento. Ciente da impossibilidade de um presidente da República visitar um lugar tão desestruturado como Guaribas, percebi os primeiros sinais da incompetência dos novos gerentes da máquina pública federal, incluindo os parcos conhecimentos geográficos dos próprios auxiliares do governador do Piauí, o petista Wellington Dias, que não conheciam em detalhes o estado que iriam governar. Guaribas não oferecia as mínimas condições para receber a visita do presidente, mesmo que ele batesse o pé no chão e gritasse com seus assessores. Era uma questão de infra-estrutura e segurança, que só quem conhece de fato o lugar saberia entender.
Ao contrário do que seria esperado, o que se viu nos dias seguintes foram os assessores do governador do Piauí deslumbrados com os holofotes, anunciando a Deus e ao mundo a visita de Lula a Guaribas - nesse momento, todas as atenções da mídia, inclusive internacional, estavam voltadas para os primeiros dias do governo brasileiro, cujo chefe viera das camadas mais pobres do país. A notícia correu o planeta e Guaribas ficou sabendo da importância que ganhava por meio de uma dezena de antenas parabólicas instaladas em casas sem banheiro e com piso de terra. Acostumado a tanto sofrimento, o lugarejo fez festa na esperança de que a visita do presidente fosse mudar o quadro de miséria.
Dias depois, as manchetes dos jornais anunciavam: Lula não iria a Guaribas. Ficara tardiamente comprovada a impossibilidade de um chefe de estado visitar um lugar tão remoto e desestruturado. Numa nota oficial, o ex-ministro-chefe da Segurança Institucional, general Jorge Armando Félix, reconheceu que as dificuldades operacionais e de transporte para levar o presidente a Guaribas obrigara a Casa Civil a mudar a programação de lançamento do Fome Zero. "Um candidato a presidente faz esse tipo de deslocamento, mas é outra situação. Quando ele se torna presidente da República, as normas de segurança são outras, muito mais rígidas", explicou o militar. Em Brasília, cercado pelos jornalistas, o porta-voz do presidente, André Singer, tentou contornar a situação: "Fica preservada a intenção original de mostrar a miséria ao Ministério e Guaribas servirá, no momento certo, de palco para o lançamento do Fome Zero". Assim, em vez do semi-árido, Lula começaria seu governo na Vila Irmã Dulce, um conjunto habitacional na periferia de Teresina, capital do Piauí.
O problema é que a notícia chegou truncada a Guaribas. Lá, grande parte da população, principalmente os que não tinham acesso ao rádio ou à televisão, ainda aguardava a visita do presidente. Como já imaginava, um telefonema me fez adiar as férias e voltar para o sertão. De uma hora para outra, aquela região tinha se tornado prioridade dos veículos de comunicação. E com dez anos de experiência na cobertura de reportagens por todo o Nordeste, com bom conhecimento da sua geografia e dos problemas sociais e políticos, eu não poderia ficar longe exatamente naquele momento. Fiz as malas e disparei para o Piauí. Primeiro, fui a Teresina cobrir a visita de Lula à capital. De lá, segui para São Raimundo Nonato, a cidade com melhor infra-estrutura nas proximidades de Guaribas. Nas semanas, meses e anos seguintes, eu iria acompanhar in loco o desenrolar dessa novela, financiada com recursos públicos, documentando em entrevistas e fotos os capítulos de corrupção, descaso e incompetência.
No dia 3 de fevereiro de 2003, um mês após a posse do novo governo, Lula decide enviar a Guaribas os ministros da Segurança Alimentar, José Graziano, da Integração Nacional, Ciro Gomes, e da Assistência Social, Benedita da Silva (todos hoje já devidamente demitidos), para lançar oficialmente o Fome Zero na cidade. A população, que continuava a sonhar com a visita do presidente, levantou cedo e vestiu o que tinha de melhor para receber os "homi de Brasília". Com o sol das 10 horas da manhã torrando minha cabeça, um barulho forte e estranho ecoou nos paredões de pedra que cercam a cidade. Com exceção dos trovões que costumam assustar a população nos pingados dias de chuva, certamente os moradores do lugar nunca tinham ouvido nada igual. Não demorou e na linha do horizonte começaram a surgir vários helicópteros. De repente, alguém gritou: "É Lula, é o nosso presidente, ele veio nos visitar!". A poeira tomou conta do terreno, um campo de futebol de terra batida sem grama, o único espaço onde as aeronaves poderiam pousar.
"Fiquei toda suja, com areia até na cara", relembra hoje Domingas Duarte Rocha, de 21 anos. Apesar da sujeira levantada pelos políticos de Brasília, nascia ali a esperança de Domingas e de muitos outros filhos de Guaribas, de que dias melhores estavam por vir. Mas o contentamento não durou muito. A decepção em seus rostos ficou visível quando os ocupantes das aeronaves começaram a descer. Eram pessoas desconhecidas, que vestiam terno e gravata e falavam com sotaques nada comuns no lugarejo.
O governador do Piauí, Wellington Dias, que fazia parte da comitiva, se apressou em anunciar: "Lula não pôde vir, mas mandou seus principais ministros para conhecer Guaribas de perto". A insatisfação foi geral. "Meu sonho era ver o Lula, contei os dias para esse momento", falou desanimada a jovem Domingas, que hoje é mãe solteira, está desempregada e não vê a mínima perspectiva de vida em Guaribas. "Para mim, esse governo não fez nada. As pessoas que mais precisam são as que não têm cartão", diz ela, que abandonou a escola e lamenta o fato de estar fora do programa de repasse de recursos patrocinado por Lula. Procuro saber detalhes de sua exclusão do programa Bolsa Família, afinal 77,3% da população local recebe o benefício, e ela me explica que seu pai, Milton Lopes Rocha, de 64 anos, é aposentado e recebe um salário mínimo. "É por isso. Eles querem que eu passe minha vida toda nas costas do meu pai".
Num palanque improvisado em cima de caminhões, os políticos do PT fizeram discursos inflamados garantindo que o tempo de miséria e abandono tinha chegado ao fim. Wellington Dias foi além e anunciou que ninguém receberia os benefícios "de graça". Para ele, o programa seria mais amplo do que a distribuição de alimentos e toda a família contemplada seria obrigada a dar uma contrapartida. "O objetivo é a criação de condições para as famílias superarem a situação de miséria. Em Guaribas existem 14 indicadores de pobreza e a fome é apenas um deles", disse o governador. A essa altura, passava das 2 da tarde, fazia um calor infernal e caixas com água mineral eram distribuídas a todo instante aos assessores de Lula. O povo do lugar, acostumado a décadas de seca, assistia àquela encenação com esperança nos olhos. Terminada a solenidade, os helicópteros começaram a alçar vôo deixando para trás a frágil impressão de que, daquela vez, a coisa iria mudar no semi-árido.
Ao implantar o piloto do Fome Zero em Guaribas, a meta dos técnicos do governo Lula era que dentro de seis anos 77% dos indicadores de pobreza estariam superados. "Esperamos que as pessoas possam se alimentar adequadamente, contem com água potável, tenham acesso a iluminação, coleta de lixo e educação", afirmou, na época, o governador Wellington Dias. No entanto, quase cinco anos após o lançamento do programa na pequena cidade nem os problemas mais básicos que penalizam seus moradores foram resolvidos. Em alguns povoados da zona rural falta água para o consumo humano. Nesse caos social, há indicadores de mortalidade infantil e de desnutrição escandalosos, comparáveis aos do continente africano. É difícil acreditar que o município que se tornou garoto-propaganda do governo Lula não dispõe, sequer, de um único leito hospitalar. Até agora, nenhum metro de saneamento básico foi construído, o esgoto corre a céu aberto na frente das casas. Em suas ruas poeira, bichos e lixo fazem parte da paisagem. O comércio insignificante não movimenta dinheiro e não existem opções de emprego nem de renda.
A educação apresenta qualidade das mais baixas. Nas escolas, os índices oficiais, disponibilizados pelo Ministério da Educação, apontam aumento médio de 15% nas taxas de abandono escolar em todas as séries do ensino fundamental. Nas vilas menores, alunos de idade e séries diferentes freqüentam a mesma sala de aula com um só professor para atender todos os estudantes. Não é a toa que o Piauí tem os piores índices de educação de todo o país. "É um dado histórico que não mudou com a chegada do Fome Zero no estado", reconheceu recentemente o secretário de Educação e Cultura do governo do Piauí, Antônio José Medeiros.
Além de toda a miséria, Guaribas fica a distantes 670 quilômetros da capital, Teresina, e, literalmente, isolada do Brasil, pois a estrada transitável mais próxima fica a uns 60 quilômetros dali, na vizinha e também pobre cidadezinha de Caracol. O restante do trecho para quem deseja chegar à cidade ícone do programa Fome Zero exige veículos com tração nas quatro rodas guiados por motoristas acostumados a enfrentar estradas em péssimas condições, pois grandes trechos de serras com pedras e dunas de areia dificultam a passagem dos carros. Na época da estação chuvosa tudo vira um lamaçal praticamente intransponível. Um dado que mostra como é complicado chegar ao município tem a chancela oficial: nas poucas vezes que esteve em Guaribas, o governador Wellington Dias chegou e saiu de helicóptero.
Analisando os atuais indicadores sociais de Guaribas - aumento de renda e insignificante melhoria da qualidade de vida -, fica evidente que a ação governamental com melhores resultados foram os cartões do Bolsa Família, que distribuem em média R$ 75 mensais para cada uma das 700 famílias beneficiadas. Com isso, cerca de 50 mil reais são injetados mensalmente na economia local, que somados ao Fundo de Participação dos Municípios (FPM), às aposentadorias e a uma série de outros benefícios sociais do governo federal representam o único dinheiro que circula na região. Criado em 1997, o município tem área de 3.741 km2 e sua base econômica está na agricultura familiar e nas poucas criações de bovinos, suínos e caprinos.
Em termos de infra-estrutura, as maiores vitórias da população aconteceram em meados de 2005 com a inauguração de um mercado municipal, 66 casas populares e uma adutora que resolveu a falta de água potável na zona urbana. O governo do Piauí, em convênio com a Companhia de Pesquisa dos Recursos Minerais (CPRM) e apoio do Ministério das Cidades, perfurou um poço de 700 metros de profundidade, a um custo de R$ 1 milhão, e pôs em funcionamento um sistema de abastecimento que levou água para as torneiras instaladas nas casas de quase 500 famílias. Apesar de o produto ser pago - R$ 8 mensais para os beneficiários do Bolsa Família e R$ 15 para os demais consumidores - os assessores do governador Wellington Dias costumam dizer que no dia da inauguração tinha gente chorando de felicidade.
Mas o abandono, o descaso e o drama da seca continuam na zona rural, onde estão dois terços da população do município. No pequeno vilarejo do Barreiro, lugar onde tentam sobreviver cerca de 40 famílias, falta água até para os idosos e para as crianças. Na estação seca, as pessoas são obrigadas a percorrer trilhas arenosas até o interior do Parque Nacional Serra das Confusões, para coletar água de uma pequena fonte natural que também é disputada pelos animais selvagens da reserva. A caminhada, não raro, precisa ser feita mais de uma vez por dia, inclusive pelas crianças.
No período das chuvas, quando o reservatório que dá nome ao lugar consegue acumular água, todas as famílias da região bebem do barreiro. A água, sem a mínima qualidade para o consumo humano, tem um tom acinzentado, e apesar de parte do reservatório ser cercado, ali também tentam matar a sede os cachorros, porcos e jumentos dos moradores. Grande parte das famílias conta casos de crianças doentes por beber dessa água e muitas das mulheres do Barreiro relatam ter perdido ao menos um filho em conseqüência da péssima qualidade do produto. Segundo dados da ONU, cerca de 1 milhão de pessoas vivem em condições semelhantes no semi-árido brasileiro.
Aliada à desnutrição, é a ingestão dessa água suja que eleva a taxa e explica a alta mortalidade de crianças no Nordeste, caso da família da jovem Ivaneide Lopes de Souza, 20 anos, que em 2005 perdeu sua primeira filha, Isoneide, de apenas 1 ano, por problemas causados pela má qualidade da água. No ano passado, Ivaneide teve outro bebê, agora um menino batizado de Ranivaldo. Recentemente, para não correr o risco de perder o novo filho, ela abandonou sua casa no Barreiro e se mudou para o estado da Bahia. Na região do semi-árido brasileiro, que compreende 1.447 municípios, 58 em cada mil recém-nascidos morrem antes de completar um ano, contra uma média nacional de 26 crianças. Os óbitos, segundo especialistas, podem ser até duas vezes maiores do que os números oficiais, uma vez que muitas das crianças não têm certidão de nascimento e, logo, as mortes não são computadas nas estatísticas.
No Barreiro, além da dramática falta de água, não existe energia elétrica, saneamento básico, posto de polícia, telefone público, unidade de saúde ou estabelecimento comercial, nem mesmo uma farmácia. A única instituição pública presente ali é uma pequena escola que apesar da dedicação do solitário educador, funciona de forma precária. Segundo o estudante Fábio Fernandes, de 10 anos, o professor Valdemir "parte o quadro no meio" para os alunos do 1º e do 2º ano, que estudam na mesma sala. Em lugar tão carente como o Barreiro, a merenda escolar termina sendo fator determinante para a presença das crianças. Quando falta o alimento, a evasão dispara.
A rotina de Ivani Lopes de Souza e da maioria dos homens, mulheres e crianças do povoado continua tão dura quanto antes. Aos 24 anos, além de cuidar sozinha dos quatro filhos, a jovem precisa caminhar muito em busca de água para os afazeres domésticos. Diante das dificuldades e da ausência do marido, atualmente prestando serviços ao Ibama, Ivani se viu obrigada a abandonar a escola. O projeto de concluir os estudos ficou para depois, quando a vida, quem sabe, abrir-lhe novos caminhos. Enquanto isso, em vez de pensar no futuro, todas as atenções da sertaneja estão focadas no presente, na sobrevivência imediata da família em lugar tão castigado pela seca. Seguindo a mesma rotina da mãe, o tempo que Ivana, sua filha de apenas 8 anos, poderia usar para estudar ou brincar com suas amigas, é dedicado às penosas caminhadas para coletar água.
Além da caótica falta de água, em várias localidades da zona rural de Guaribas, seus moradores também precisam abastecer os candeeiros (lampiões) porque não há energia elétrica. Para cozinhar eles são obrigados a cortar lenha para acender o fogo, pois os recursos do Bolsa Família não são suficientes para comprar gás. E, quando Deus decide mandar chuva, as mulheres e os filhos ajudam os maridos na roça de feijão, milho e mandioca. Fora dessa temporada, o consolo é a fé nos santos da igreja católica e mais recentemente nos pastores evangélicos que começam a impregnar a região com seus sermões "salvadores".
Apesar do ostracismo desses lugarejos, onde a maioria das casas não tem banheiro, mobília ou reboco, as autoridades não podem dizer que desconhecem a dramática situação no interior de Guaribas. O próprio Wellington Dias foi alertado, pelo menos em duas ocasiões, em 2004 e 2005, sobre o caos no povoado do Barreiro. Agora, com o sertão vivendo o auge da estação seca, com centenas de famílias desesperadas pela falta de água, a omissão dos governos está obrigando a prefeitura de Guaribas e de uma centena de municípios piauienses que decretaram estado de emergência, a alugar, com recursos próprios, veículos para socorrer as comunidades mais afetadas.
Para tentar amenizar a sede da população, o governo do estado tem construído cisternas nas vilas rurais, mas a ação, apesar de importante, não vem tendo bons resultados. "Como a maioria das residências da zona rural de Guaribas é minúscula, com uma cobertura muito pequena, a quantidade de água captada durante as chuvas é insignificante e não chega a encher os reservatórios", diz o engenheiro agrônomo José Wilmington Paes Landim. Sem outra opção, em muitos lugares do semi-árido piauiense, incluindo as vilas mais distantes de Guaribas, os sertanejos estão utilizando recursos do Bolsa Família para comprar água. Quem confirma a informação é o presidente da Federação dos Trabalhadores em Agricultura do Piauí (Fetag), Evandro Luz, que considera um escândalo essa situação. "Tomamos conhecimento de que as famílias estão se cotizando para comprar água de carro-pipa para não beber lama. Mas o único dinheiro que eles têm é do Bolsa Família, que deveria garantir o sustento alimentar. A água é uma obrigação do poder público", denuncia.
Mas a vida dos filhos de Guaribas ganharia novas cores, além do cinza característico da Caatinga em tempos de estiagem, se os governos fizessem a sua parte - ou pelo menos cumprissem as promessas feitas, nos anos de eleição, para atrair votos. Na vila do Barreiro, os geólogos descobriram água subterrânea potável, mas até hoje nenhum poço foi perfurado. À espera de providências, os moradores fixaram um marco de madeira no local para não perder o ponto exato onde existe a água. Na luta pela sobrevivência em terra tão árida, os vorazes cupins já trataram de destruir várias vezes o tronco colocado pelos moradores. De tanto verem seus pais contar essa história, todas as crianças do povoado fazem questão de mostrar o local aos poucos visitantes que passam pela vila, numa espécie de indignação coletiva.
Numa auditoria realizada pela Controladoria-Geral da União, ficou comprovado que em 2001 a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) repassou cerca de R$ 240 mil ao ex-prefeito Reginaldo Silva (PL), para a perfuração do poço no Barreiro e em outras sete vilas rurais. Além de várias outras irregularidades administrativas, a obra nunca foi realizada e os recursos desapareceram. Em 2003, o prefeito terminou afastado por duas vezes da prefeitura pelo Tribunal de Justiça do Piauí por corrupção e desvio de recursos da merenda escolar.
As condições econômicas miseráveis, a falta de água tratada e a desnutrição fizeram de Guaribas um lugar onde a expectativa de vida é de 56,11 anos, muito abaixo da média nacional de 68,1 anos. "Quando os governos federal e estadual adotaram Guaribas como âncora do programa Fome Zero, o fizeram de forma paternalista. Seguindo a política do pão e circo, eles injetaram diversos projetos para alimentar, literalmente, a população", afirmou a jornalista Tânia Martins, que foi a responsável pela edição de um anuário sobre o estado do Piauí, com dados compilados de todos os seus 223 municípios. Os números de Guaribas mostram que exatas 704 famílias fazem parte do Bolsa Família, sendo que 126 delas recebem também o benefício do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PET).
Ainda segundo a jornalista, outros 25 jovens recebem R$ 65 de Bolsa Auxiliar para educação. Tem ainda uma média de R$ 9 mil mensais para o Programa de Atenção Integrada à Família, que diz atender 3.500 famílias num município que tem 4.334 habitantes, segundo o levantamento 2007 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os mais novos programas implantados em Guaribas são o Agente Jovem, com uma verba de R$ 2 mil mensais para ações socioeducativas com adolescentes de 16 e 17 anos em situação de risco pessoal e social, além dos projetos de Cidadania Ativa, Inclusão Digital e o Benefício de Prestação Continuada, que é voltado para idosos extremamente pobres com R$ 58 ao mês. Com a repercussão negativa dos péssimos indicadores da educação - a taxa de analfabetismo chega a 23,53% -, o Fome Zero promete agora incentivar o programa Viva o Semi-Árido, que pretende capacitar profissionais da educação da rede estadual e municipal.
Mas por que mesmo com tantos programas sociais Guaribas apresenta resultados tão pífios? Quem responde é o cientista político Alexandre Rocha, que trabalha com dados do semi-árido piauiense. Para ele, a explicação está na politicagem provinciana que suplanta as premissas do Fome Zero. "Os recursos adquirem funções escusas ou são escoados pelos ralos da corrupção. Aqui entram detalhes ignorados pelos idealizadores dos programas sociais. No cotejo com a realidade, parte do dinheiro destinado aos pobres trilha para o caixa dos coronéis políticos, aqueles que ditam as regras dos pequenos municípios. Engana-se quem pensa que o coronelismo é coisa do passado." O pesquisador reconhece que o Fome Zero pode abrandar a miséria, contudo não proporciona a autonomia do cidadão. "É mera ilusão achar que o programa irá mudar a trágica realidade da população pobre ou mesmo inverter as estruturas da política provinciana."
O resultado de tantos projetos assistenciais de repasse de recursos e quase nenhuma obra estruturante cria estatísticas ambíguas. O próprio governo do Piauí, através de pesquisa realizada pela Fundação Cepro, afirma que atualmente 86% das famílias dispõem de alguma renda em Guaribas e reconhece que esse emaranhado de fundos despejado na cidade mensalmente é, na realidade, a única sustentação econômica do município. O mesmo levantamento revela que no município já existe uma infra-estrutura básica. E bote básica nisso. Somente 21,24% dos domicílios são servidos pela rede de água. Os 78,76% que sobraram continuam com a labuta diária para conseguir água na aridez do sertão. Segundo a coordenadora do programa Fome Zero no Piauí, Rosângela Sousa, existem 100 cisternas instaladas em cinco comunidades da zona rural de Guaribas. Apesar disso, 73,92% da população ainda utiliza a água sem qualquer tratamento.
Mas o pior ainda está por vir: 83,11% dos dejetos humanos em Guaribas são jogados a céu aberto e 60% dos domicílios despejam o lixo nas ruas. Os pontos comerciais não chegam a 20 estabelecimentos. A energia elétrica abastece apenas 66,73% do município, que só dispõe de dois pequenos postos de saúde atendidos por enfermeiras - um na zona urbana e outro no povoado do Cajueiro. Enquanto o governo do Piauí não conclui uma Unidade Mista de Saúde, que está com as obras paralisadas na cidade, os três médicos que trabalham para a prefeitura são obrigados a fazer os atendimentos em hospitais de cidades vizinhas. "Nossos médicos atendem os habitantes de Guaribas no Hospital de São Raimundo", explicou o prefeito da cidade Ercílio Andrade (PTB). A expectativa dele é de que a unidade esteja concluída e equipada até o fim do ano.
Com exceção da adutora que levou água para a cidade e da pavimentação de algumas ruas e praças que melhoraram o aspecto urbano do município, quase meia década depois do lançamento do programa Fome Zero em Guaribas, a maior obra realizada no lugarejo não teve recursos do governo Lula. Ao contrário, foi uma ação da iniciativa privada: a construção de uma unidade educacional do Serviço Social do Comércio (SESC), implantado em 2004 e que atua na melhoria da qualidade de vida através da escolarização de jovens e adultos. O espaço dispõe de uma biblioteca e 52 estudantes com idades que vão de 15 a 80 anos compõem duas turmas em funcionamento.
Mesmo em meio a tanto descalabro administrativo, no último dia 20 de outubro o governo federal começou uma milionária campanha para divulgar o sucesso do Fome Zero pelo Brasil afora. Entre os destaques, atenção especial para o Bolsa Família, que segundo a equipe de Lula faz a diferença na vida de 45,6 milhões de brasileiros e apresenta como principal resultado a redução de 21% da pobreza. "Um dos princípios do programa Bolsa Família está fundamentado no objetivo de interromper o ciclo da miséria em famílias afetadas por uma situação de desigualdade e exclusão", afirmou o atual ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Patrus Ananias. Dados oficiais mostram que, desde 2003, foram transferidos R$ 24,8 bilhões à população de baixa renda.
Segundo a coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Maria Carmelita Yasbek, apesar da transferência de recursos, não se pode esquecer que décadas de clientelismo consolidam no Brasil uma cultura que não tem favorecido a emancipação dos usuários das políticas sociais, especialmente os mais pobres. "Permanecem nas políticas de enfretamento à pobreza brasileira concepções e práticas assistencialistas, clientelistas e patrimonialistas", esclarece a pesquisadora.
Diante de tanto descaso e incompetência, volto o pensamento para a praia em que fui tentar descansar nos primeiros dias do governo Lula. Por essas coincidências da vida, ela se chama Baía da Traição. Sua história remonta à briga entre portugueses, franceses e holandeses pelo litoral nordestino, mas seu nome bem que poderia se aplicar ao que aconteceu com a pequena, sofrida e precária Guaribas.
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