Por que os eleitores latino-americanos têm optado por governos mais conservadores?
Aline Oliveira Publicado em 17/11/2016, às 14h52 - Atualizado em 20/11/2016, às 22h35
Basta olhar uma fotografia recente com presidentes de países da América Latina para comprovar: o panorama foi drasticamente alterado. Os eleitores latino-americanos mudaram, assim como suas opiniões, suas ideologias e, consequentemente, seus governantes. O Brasil representa o mais recente exemplo nessa conjuntura, ainda que aqui a troca de líder tenha ocorrido após um traumático processo de impeachment.
Desde 31 de agosto de 2016, o peemedebista Michel Temer comanda o país após o afastamento da petista Dilma Rousseff.
Na Argentina, em novembro de 2015, o empresário Mauricio Macri, do Partido Proposta Republicana (PRO), foi eleito com 51,4% dos votos, enquanto o peronista Daniel Scioli ficou com 48,6%. A vitória pôs fim a 12 anos de kirchnerismo (termo usado para definir a filosofia política dos ex-presidentes Néstor Kirchner, morto em 2010, e Cristina Kirchner, viúva dele).
Na Venezuela, após eleição em dezembro de 2015, a Mesa de Unidade Democrática (MUD), que faz oposição ao governo do presidente Nicolás Maduro, conquistou a maioria da Assembleia Nacional (99 dos 167 assentos). Com isso, o chavismo, que define o conjunto de propostas dos programas de governo associados ao ex-presidente Hugo Chávez, morto em 2013, sofreu o primeiro revés eleitoral em 17 anos.
Os bolivianos, em fevereiro de 2016, disseram não à reforma constitucional apresentada pelo presidente Evo Morales que defendia a possibilidade de ele se candidatar a um quarto mandato (2020-2025). Essa foi a primeira derrota eleitoral direta de Morales desde que assumiu a presidência, em 2006. Para completar, em Bogotá, capital da Colômbia, nas eleições municipais de outubro de 2015, o economista e administrador alinhado à direita Enrique Peñalosa foi eleito prefeito, sendo que a cidade foi comandada por partidos de esquerda nos últimos 12 anos.
Ainda no âmbito municipal, a cidade de São Paulo, mais influente capital da América Latina, elegeu democraticamente como prefeito, no último dia 2 de outubro, o empresário João Doria Jr. (PSDB-SP). Ele venceu a eleição no primeiro turno, com 53,3% dos votos.
Além dos resultados eleitorais, as crises políticas enfrentadas pelos governos e partidos de vários países latino-americanos, incluindo o Brasil, fazem crer que os líderes ditos progressistas e de esquerda estão em baixa na região.
“A esquerda vive uma crise mundial desde a queda da União Soviética, mas nos últimos 10, 15 anos houve uma ascensão na América Latina – de certa forma, como um contraponto ao que vinha ocorrendo no resto do mundo, caso da crise da social democracia na Europa, por exemplo”, contextualiza o professor Aldo Fornazieri, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). “Há uma espécie de esgotamento das políticas de esquerda, que não conseguiu fazer as profundas transformações que se esperava dela, como as reformas estruturais para remover as condições históricas de desigualdade social.”
Uma das causas desse esgotamento é a piora da qualidade de vida dos cidadãos, fator que, obviamente, é refletido na hora do voto. Dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) divulgados em março de 2016 mostram um aumento na pobreza em 2015, tendo afetado 175 milhões de pessoas (29,2% da população da região) – são 7 milhões de cidadãos a mais que os 168 milhões registrados em 2014 (28,2%). Desse total, estima-se que 75 milhões vivam em situação de miséria, número 5 milhões maior que o registrado no ano anterior.
“A população não sabe o que se passa de maneira consciente, porque não detém informação o bastante para entender toda a dinâmica subjacente. Mas, no fim do dia, percebe que tem algo acontecendo. Percebe no bolso, no supermercado e na feira. Isso quando falamos sobre Brasil ou Argentina – na Venezuela, nem acesso aos bens de higiene pessoal as pessoas estão tendo”, afirma Alberto Pfeifer, coordenador do grupo de análise da conjuntura internacional da Universidade de São Paulo (USP) e sócio-diretor da LatinUS Consultoria. Ele completa: “A percepção da população é construída de uma maneira muito imediatista. Então, quando a pessoa chega ao supermercado e vê que o tamanho da compra não cabe no tamanho do bolso, ela se manifesta, seja por voto no calendário eleitoral, seja indo à rua, batendo panela, porque percebe que tem alguma
coisa errada na maneira como a gestão político-econômica vem sendo conduzida”.
Em linhas gerais, nos últimos anos o voto dos eleitores latino-americanos tem sido contra os recentes governos populares. Para o mestre em ciência política pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP), professor do curso de Relações Internacionais da Fundação Santo André e integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI, Pedro Bocca, a explicação para tais mudanças é o fato de o eleitor “não ser filiado a uma corrente ideológica. Se o governo atual está me fazendo ficar desempregado, vou na próxima opção, estioposta a ele. Foi isso que aconteceu na Argentina, com a vitória do Macri”.
Segundo Rodrigo Prando, professor de sociologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, “as sociedades vão buscando novas alternativas, porque os discursos e muitas das teses de esquerda se mostraram desastrosos nos países da América Latina”.
Para além do quadro geral, o professor do Departamento de Ciência Política da Unicamp, Wagner Romão, chama atenção para as especificidades. “Na Bolívia, houve um desgaste do Evo Morales, mas em parte tem a ver com a visão da população de que não é bom que um presidente possa se reeleger indefinidamente”, afirma. “Já na Venezuela, vemos uma conjunção de fatores, sendo o principal deles a morte de Hugo Chávez, que era um líder carismático, além dos rachas internos dentro do chavismo e da forte queda do preço do petróleo. Na Argentina houve a grave crise econômica e um governo que passou a ser muito mal visto por causa de denúncias de corrupção [Cristina Kirchner governou de 2007 até 2015], por isso a população optou pela troca. No caso do Brasil, temos desde o ano passado um país polarizado, embora fatores políticos tenham sido determinantes para que essa crise se avolumasse.”
A busca por novas alternativas, o aumento da pobreza e a inflação vieram após o fim do chamado “boom das commodities”. A exportação de produtos primários (aqueles que
vêm ou são produzidos a partir de matéria-prima natural) garantiu ao mundo, e especialmente aos países latino-americanos, uma alta arrecadação durante boa parte da primeira década dos anos 2000. O intenso crescimento econômico da China e dos Estados Unidos nesse período fez desses dois países consumidores insaciáveis. Com isso, os preços ficaram mais altos, o que favoreceu as nações produtoras. “A China foi um grande comprador de commodities, porque cresceu mais de 10% ao ano sem dispor de alimentos, minérios e energia para sustentar esse crescimento. Com isso, o preço dos produtos cresceu de uma maneira inédita na história recente”, ratifica Alberto Pfeifer, da USP.
Para ter uma ideia, as exportações do Brasil para a China aumentaram mais de 500% entre 2005 e 2011. Foi um período de crescimento do PIB brasileiro, mesmo com a crise mundial de 2008. “Quando Hugo Chávez tomou posse pela primeira vez [ele comandou a Venezuela de 1999 até sua morte, em 2013], eu estava lá. Àquela época, o barril de petróleo custava US$ 19. Durante o boom das commodities, chegou a custar US$ 140. Ninguém esperava aquilo”, complementa o professor.
Nesses tempos de abundância, os governos latino-americanos cometeram erros, segundo analistas. “Tivemos um período bastante glorioso, no qual o que exportávamos valia muito. Isso gerou um efeito de enriquecimento nos países exportadores. Só que muitos governos foram imprudentes do ponto de vista econômico. Foram gastando, enquanto deveriam ter destinado pelo menos uma parte para ser investido”, diz Alessandra Ribeiro, economista e sócia da Tendências Consultoria. “Deveriam ter poupado para quando as vacas não fossem tão gordas. Isso não foi feito, e é por esse motivo que a população agora penaliza tais governos.”
Essas lideranças têm em comum, segundo Pedro Bocca, “a falta de investimento econômico e político para alteração da estrutura do sistema econômico latino-americano. Esses governos tiveram a oportunidade histórica de mudar a estrutura de dependência, de posição subalterna na divisão do trabalho”, mas não o fizeram.
A época de bonança ficou no passado – em diversos casos, a economia não apenas estagnou como sofreu piora. No entanto, é visível que a América Latina foi uma das regiões em que a pobreza e a desigualdade foram reduzidas com mais intensidade nas últimas décadas, mesmo que ela siga liderando os rankings de pobreza e disparidade de renda entre os países em desenvolvimento.
Dados compilados em meados de 2014 mostraram que mais de 56 milhões de pessoas saíram da pobreza extrema na América Latina entre 2000 e 2012. O estudo foi divulgado em um comunicado mundial do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), intitulado Sustentar o Progresso Humano: Reduzir Vulnerabilidades e Construir Resistências.
“Nesse período houve uma diminuição da desigualdade social nesses países. Os governos tiveram condições econômicas de fazer uma boa inversão de recursos orçamentários
em políticas sociais”, completa Wagner Romão, professor do Departamento de Ciência política da Unicamp. “Programas de transferência condicionada de renda, como o Bolsa Família, no Brasil, povoaram todo o continente.”
Houve, portanto, uma melhora inegável na região. Romão destaca que “teve até [uma sensação de] euforia”, reflexo do quadro de crescimento econômico continuado, geração
de empregos e uma considerável ampliação de políticas sociais.
O atual cenário econômico, no entanto, não poderia estar mais distante. O colapso global de 2008 afetou a estabilidade e o crescimento experimentados pela América Latina na última década (ainda que, no caso do Brasil, isso não tenha ocorrido de maneira imediata). Muitos dos países que antes aproveitavam os bons ventos na economia não se prepararam para o que viria a seguir. “Essa é a grande questão da América Latina”, acredita Pfeifer. “Vimos nos últimos anos, em nações como Venezuela, Argentina, Equador, Nicarágua, Bolívia, Brasil e Cuba, um modelo em que a distribuição social se faz por meio de uma forte intervenção do Estado na sociedade. Hoje, partimos da premissa de que o Estado não detém mais os recursos que teve no período curto e recente das commodities. Quem soube aproveitar e construir reservas tem um colchão de garantia para dar conta do momento de crise global da economia. Os que não tiveram essa sabedoria hoje enfrentam problemas.”
A alternância de governos que está ocorrendo na América Latina é vista por diversos estudiosos como conservadora e até neoliberal, por ter os olhos voltados para o mercado. “De fato, está se abrindo uma agenda de governos neoliberais, que têm outra maneira de ver a economia, defendendo muito mais a presença do setor privado”, explica a economista Alessandra
Ribeiro. Ela ressalta que nesse modelo “busca-se a eficiência do setor privado para assim voltar a sustentar taxas mais expressivas de crescimento em um momento em que as commodities não vão ajudar”.
“O neoliberalismo enquanto teoria/ proposta não segue um compromisso de equidade social e distribuição de renda”, complementa Pedro Bocca. “A aposta do neoliberalismo é que, ao fortalecer alguns setores da elite econômica, como consequência outros setores da sociedade vão se dar bem, porque aumenta-se o emprego e crescem os investimentos.”
Sobre as críticas dos governos que se autodenominam de esquerda aos governos que estão atualmente no poder, o professor do Mackenzie Rodrigo Prando opina: “Isso de considerar que neoliberal e liberal estariam ligados mais à direita e outros modelos à esquerda não existe. Até porque o governo do PT não fez uma revolução nem trouxe os meios de produção para as mãos dos trabalhadores. Olhando para o exemplo do João Dória, um empresário que ganhou no primeiro turno em São Paulo: ele foi o mais bem votado na periferia da cidade. E por que a pessoa na periferia não acha que ele é um inimigo? Porque [ele é inimigo] só para quem ainda está com a cabeça no muro de Berlim [1961- 1989], no século 19 e início do século 20”.
O professor do curso de direito da Universidade Metodista de São Paulo Antônio José Vieira Jr. corrobora a tese. “As pessoas estão acompanhando mais a gestão pública. Elas veem a política como um prestador de serviço, que tem de dar resultados. Então, votam em quem aparenta ter capacidade de proporcionar isso.”
A análise da história política da América Latina nos últimos 30 anos mostra um movimento pendular. Nos anos 1980 e ao longo da década de 1990, os eleitores escolheram reeleger governos ditos liberais. Acreditava- se que uma plataforma de reforma orientada pelo mercado seria capaz de domar o desemprego, a inflação e, assim, melhorar a renda. Mais tarde, veio a insatisfação com tais lideranças e diretrizes, e os latino-americanos se voltaram para governos considerados centro-esquerda, esquerda e populistas.
“O que aconteceu com os regimes do final dos anos 1990? Governos como o do Fernando Henrique Cardoso [1995-2003] e o do Carlos Menem [Argentina, 1989-1999] trabacombateram a inflação, implantaram um regime de responsabilidade fiscal, promoveram política de austeridade, câmbio fixo, moeda forte, mas não conseguiram dar conta de entregar políticas sociais abrangentes e universais. Alguém sempre ficava para trás. E isso incomoda até quem é beneficiado”, afirma Alberto Pfeifer.
“Sempre há uma reação”, complementa Wagner Romão, da Unicamp. Contra a falta de políticas sociais dos chamados anos do neoliberalismo na América Latina, a população deu votos a figuras e partidos com propostas voltadas à diminuição da desigualdade; diante da corrupção e de problemas econômicos deixados por essas gestões, o eleitor retornou ao lado oposto.
Movimento pendular, onda neoliberal, guinada à direita: a denominação do momento vivido atualmente pela América Latina é o que menos importa. O essencial, segundo os especialistas ouvidos para esta reportagem, é que os governantes entendam e entreguem o que a sociedade requisitou nas urnas – o desejo de crescer enquanto nação e de obter melhorias na vida cotidiana. “Muita gente que viveu a ascensão nesta última década experimentou a boa sensação de ter o filho na faculdade, ter carro, casa própria”, analisa a economista Alessandra Ribeiro. “Agora, essas mesmas pessoas começaram a voltar para uma situação financeira menos confortável. E ninguém quer isso. Todos querem viver bem.”
A ERA DOS EXTREMOS
Enquanto países latinos buscam mudanças em prol da economia, nações desenvolvidas abraçam discurso do medo
A América Latina passa por um momento de ressaca depois de ter se refestelado no banquete econômico proporcionado pelo boom das commodities. Mas não é só a região que atravessa um período de apreensão – especialistas apontam para a onda de medo e intolerância que abrange vários países. “A crise econômica mundial abriu uma janela que deveria ser preenchida com novas alternativas, planos para as nações. Mas na ausência desses planos – até porque não existe vazio em política – entram em cena as saídas autoritárias”, afirma Gladstone Leonel, doutor em direito do Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Segundo ele, é a isso que assistimos nos Estados Unidos e em alguns países da Europa. “Há cinco anos, a figura do empresário Donald Trump, candidato do Partido Republicano à presidência dos Estados Unidos em 2016, não teria a menor repercussão nem o apoio de certa parcela da população, mas hoje tem força. Da mesma forma, o discurso do Jair Bolsonaro [deputado federal pelo PSC-RJ] atrai uma parcela significativa da população brasileira.” Leonel faz uma ligação entre o que vemos hoje e momentos sombrios da história contemporânea. “Essas saídas autoritárias em períodos de crise foram fundamentais para o surgimento do fascismo, do autoritarismo e do nazismo”, diz o estudioso. “Elas nascem nesses momentos em que as pessoas acabam se apegando à figura de um messias, de um salvador. Cria-se um discurso do medo e elegem-se inimigos. No panorama mundial, hoje o inimigo é o imigrante do Oriente Médio.”
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