Avesso a discursos demagogos, Seu Jorge faz música para divertir, mas sem se esquecer do lugar de onde veio (e para o qual não quer voltar)
Aline Oliveira Publicado em 11/05/2015, às 17h28 - Atualizado em 26/05/2015, às 11h48
Seu Jorge gosta de receber bem seus convidados. Antes mesmo de começar a entrevista, preocupa-se em saber se meu copo está cheio. “Tragam mais chope para minha amiga, por favor”, ele pede a um barman, enquanto circula pela cervejaria Karavelle, da qual é um dos sócios, no bairro paulistano dos Jardins. O calor do início de outono casa com um drinque gelado, e a postura do cantor – sempre informal, apesar do terno escuro – é um convite para um papo de bar.
Ídolo dos barzinhos, Djavan mantém a popularidade enquanto preza por uma vida reclusa.
Morando em Los Angeles desde 2012, Seu Jorge veio ao Brasil para lançar Músicas para Churrasco Vol. II, o segundo de uma trilogia, um álbum leve, conforme descreve o próprio músico. “É para festa, você não vai cortar uma picanha ouvindo música de protesto”, ele brinca.
Engana-se, porém, quem pensa que o cantor de 44 anos só fala sobre amenidades. Nascido em Belford Roxo, ele sabe que sua situação atual o livra de sofrer os preconceitos que vivia quando era anônimo e critica aqueles que questionam o fato de ele morar fora do país e não tocar em favelas. “Favela não é lugar para ninguém”, dispara. “Não tem segurança, não tem saneamento, não tem hospital, não tem porra nenhuma. Favela é o abandono do governo.”
Entre um gole e outro, Seu Jorge não perde o bom humor e, por vezes, carrega ainda mais o já forte sotaque carioca. Mostra-se orgulhoso quando fala do trabalho como ator e exalta a produção musical do país. “Amo de paixão a música brasileira”, ressalta, dizendo estar em constante progresso profissional. “Cada dia coloco um tijolinho novo.”
O que o segundo disco da trilogia Músicas para Churrasco traz de diferente?
Traz novos personagens. O primeiro tem essa ideia de que todo mundo se conhece, se cumprimenta. E o segundo é a indicação de que está chegando mais gente. Na primeira leva veio o parceiro, a amiga da minha mulher, a doida... Nessa leva chega agora o motoboy, a bipolar e a mina feia.
Alice Caymmi respeita e admira o legado familiar, mas não quer ficar presa ao próprio sobrenome.
É um disco para a classe C?
É música brasileira, música popular brasileira. Agora, sobre essa questão de classe, eu não concordo [com a ideia de que é para a classe C], é um disco mais plural. A ideia não é ficar no subúrbio, no aspecto suburbano que eu carrego, porque sou do Rio de Janeiro e acabo intensificando o sotaque, o jeito, a gíria. Desta vez, eu queria tirar isso do trabalho. Uma coisa que foi importante e determinante para isso foi a ausência do cavaquinho.
O álbum traz uma mistura de ritmos, tem funk e R&B, por exemplo.
Eu sou um cara que tem influência do Milton Nascimento, do Caetano Veloso, do Gilberto Gil, do Jorge Ben... Comecei a engatinhar na música ouvindo Jorge Ben. Então, identifico essa mistura dentro das minhas influências. Amo de paixão a música brasileira, acho que esses artistas me representam e eu procuro representar o que eles construíram.
Há cada vez mais mulheres questionando padrões de beleza. Como acha que o público feminino recebeu as músicas “Mina Feia” e “Faixa de Contorno”, que fala sobre depilação?
“Mina Feia” é o seguinte: o cara aceita que a mina dele seja feia à vista de qualquer outro, mas, para ele, ela é linda. Ela é feia para os padrões que a sociedade exige. Essa mesma mulher está lá se matando para se cortar, se “giletar” toda e ser aceita dentro de um contexto. Sobre a questão da “Faixa do Contorno” as mulheres não gostam muito de falar, quem fala mais são as “bibas”.
Você é pai de três meninas. Como cria suas filhas?
É diferente, porque lá em casa eu não mando em nada. Eu sou minoria. À medida em que a gente vai quebrando certos tabus e novas gerações vão surgindo, sem esses tabus, vai nascendo uma sociedade mais educada, mais justa e mais participativa nesse sentido. Eu incentivo minhas filhas a prestar atenção nesse movimento das mulheres. Por exemplo, suspeito que o próximo presidente dos Estados Unidos será uma mulher. Acho que a Hillary Clinton tem condições de ser presidente de um país que avançou em muitos temas, mas que é careta nisso aí.
Por falar nos Estados Unidos, o que você acha do Barack Obama?
Ele resolveu todos os problemas que disse que iria resolver e até os que não disse que resolveria. Por exemplo, o problema [do embargo a] Cuba ele não disse que iria resolver, mas resolveu; Guantánamo, a morte do [Osama] Bin Laden, a retirada das tropas do Afeganistão, do Paquistão e do Iraque, a questão da Rússia e da Ucrânia – e, nesse caso, sem jogar uma bomba, só com sanções. Ele criou um programa de saúde inédito, inclusive, impondo que os ricos paguem mais. Hoje, o índice de inscrição para o seguro-desemprego é o menor em 15 anos. É um país diferenciado.
Você mora com sua família em Los Angeles. Por que optou por lá?
Tranquilidade. Eu precisava ser pai. No Brasil o Seu Jorge estava dentro de casa. Eu não conseguia levar minhas filhas para passear, ir à escola delas sem ter a aclamação do público. Nos Estados Unidos não tem isso. Lá eu tenho uma vida normal de pai, que sai, dá uma volta com o cachorro.
Sua mudança não teve nada a ver com a situação do Brasil?
Não. Saí em 2012, antes de a coisa toda ficar assim.
E como você vê o momento político que vivemos atualmente?
Acho que a política brasileira está passando por uma crise de identidade muito grande. Não reconhecemos mais quem nos representa. É um problema muito sério, porque atinge a percepção da capacidade de o Brasil ser um país colossal, como ele merece e tem condições para ser. O mundo todo torce para o Brasil e para o brasileiro, eu percebo isso [lá fora]. Os programas sociais não são um problema, mas causam um rombo muito grande e fazem com que as pessoas não se movam para alcançar outro plano. As contas do governo também não batem. Acho que uma série de ministérios deveria ser suprimida e que precisamos de gestores mais sérios. Está cada vez mais difícil representar o Brasil fora daqui, e essa é minha função. Não saí do Brasil para me tornar um gringo – eu saí para afirmar o Brasil. Mas está difícil, porque nossas mazelas e feridas estão expostas e as pessoas não acreditam na gente. Isso interfere diretamente no meu trabalho e carreira.
Nelson Motta acumula paixões musicais enquanto intensifica seu principal passatempo: o trabalho.
Você já disse que nunca quis tocar na favela, porque fez de tudo para escapar daquela realidade.
Favela não é lugar para ninguém. Favela não é legal. Não tem segurança, não tem saneamento, não tem hospital, não tem porra nenhuma. Favela só sofre preconceito. Eu quis sair mesmo. Eu não quis ficar enterrado na favela. Nasci lá, mas não quis ficar enterrado lá. Favela não é meu mundo, meu tudo, porra nenhuma. A favela é o abandono que o governo deixou pra gente. E hoje eu não quero tocar na favela para não me envolver com tudo que está errado lá dentro.
E não tem como não se envolver?
Minha flor, olha só, não vamos ser hipócritas aqui, né? Eu sou um pretinho tentando viver honestamente, coisa que é muito difícil no Brasil. Você correr pelo certo no Brasil é foda, é muito difícil. Então, imagina, você vai cantar numa área que é dominada pela milícia, seu pagamento vai vir do dinheiro da milícia. Eu não quero me envolver com isso, cara. Agora, quando for pacificado, quando não tiver nem milícia nem bandido, eu vou. Mas, se tiver essa complexidade, como posso estar lá, se eu não quero me envolver? Não tem como. A comunidade muitas vezes está na mão de uma milícia, na mão do poder do tráfico. Aí, você entra pra tocar na comunidade, mesmo convidado pela associação de moradores, mas o dono da milícia quer conhecer você, quer tirar foto contigo, quer seu telefone. E você vai dizer não pro cara? Melhor não ir.
Você é a favor da pacificação das favelas?
Quem não quer paz na vida? Todo mundo quer paz. Agora, se você me perguntar se eu sou a favor do programa de segurança do Rio de Janeiro, aí vai ser preciso estudar. É outra história. Mas que o povo precisa de paz, precisa. Tanto quem vive no asfalto como quem tá no alto do morro. A mãe solteira, a criança a favela, a madame do calçadão... todo mundo precisa de paz. Todo mundo quer viver bem. O morro do Vidigal conseguiu, por exemplo. A favela Santa Marta conseguiu. Tem comunidade que conseguiu. Mas a gente sabe o que acontece. Preciso registrar isso: eu tinha 17 anos, era um garoto magro, alto, feio, subnutrido e pobre, que vivia com uma enxada e uma cavadeira na mão, cavando poço e capinando o quintal dos outros o dia inteiro, com as pernas sujas de barro. Mesmo assim, a polícia implicava comigo, me humilhava, porque eu era de dentro da favela e não tinha pai general. Aí, o garoto mete a mão no ferro, mete bronca com o revólver.
Em A Origem, Hyldon recria o clássico Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda.
Graças a Deus eu não precisei disso, mas tive que sair de lá, porque senão, você vai vendo tanta coisa, tanta covardia, tanta, tanta maldade... O patrulheiro que fica me enchendo o saco, dizendo “Pô, o Jorge agora mora nos Estados Unidos”, tem que se lembrar do seguinte: eu era morador de rua, um fodido e meu dinheiro eu fiz centavo por centavo sem sacanear ninguém, sem roubar ninguém. O Brasil em que eu acredito é esse que está na Avenida Paulista ralando; é o Brasil do motoboy, das mães solteiras fazendo faxina como diaristas, dos garçons, dos seguranças. Esse é o meu Brasil, eu vim daí. Agora, vem essa galerinha de Facebook e de Twitter [falar de mim]. Pô, morre e nasce de novo para poder chegar perto de mim, morou?
Sobre a carreira de ator, você viverá seu primeiro protagonista no faroeste O Matador, de Marcelo Galvão. Como está a preparação?
Já li [o roteiro]. É um personagem interessantíssimo. Eu acho que vou me transformar muito na hora, na locação, quando chegar na aridez, no descampado, no barro mesmo. Aí, acho que o personagem vai surgir.
Você também fez o pai do Pelé no filme homônimo sobre o jogador, previsto para este ano.
O mais bonito desse filme é perceber a história do Pelé. Ele foi como eu: teve pai e mãe; não tinha o financeiro, mas tinha abraço e beijo o tempo todo. A mãe do Pelé foi muito importante para a carreira dele. Ela diz não para o Pelé e o pai acata, mas sem o pai saber ela resolve ver o menino jogando e percebe o quanto ele é mais feliz com a bola no pé. E o mais engraçado é que eu nasci em 1970, no dia 8 de junho de 1970. Naquela época, o Brasil era uma festa só, porque tínhamos acabado de ser tricampeões mundiais de futebol e o Pelé tinha se consagrado. E olha a loucura: a mãe do Pelé tinha um puta medo de que ele fosse jogador, e tudo que minha mãe queria era que eu fosse jogador. Quando o Pelé chegou ao Brasil, ela me levou, com dias de nascido, para ver o carro do Corpo de Bombeiros, que ia desfi lar com a seleção e a taça Jules Rimet. Minha mãe estava comigo embrulhado nas mãos e achava que, se o Pelé me visse, iria mandar uma energia. Ele vinha acenando; quando estava chegando perto da minha mãe, ela me levantou, mas o Pelé acenou pro outro lado e virou as costas pra mim. Minha mãe odeia o Pelé. Contei pra ele essa história, ele riu demais.
Discografia comentada: Tim Maia, o groove do síndico.
Você comentou há pouco sobre o preconceito que sofria na favela. Hoje ainda sofre preconceito?
Por eu ter melhorado, e muito, economicamente, não convivo com o preconceito. Sou blindado disso. Consegui. Mas com meus irmãos [os pais de Seu Jorge tiveram quatro filhos] é diferente. Eles sentem, sofrem; eu sei o que eles passam, são subjugados. É complicado.
Você acha que suas filhas, se não fossem suas filhas, sofreriam preconceito?
Elas passam por coisas semelhantes por serem filhas do Seu Jorge. Elas me dizem: “Pai, eles só estão me tratando bem agora, porque descobriram que você é meu pai”. Já se queixaram disso. Mas tem outra coisa, eu recebo admiração da negrada, dos mais pobres. Meu sucesso estimula as pessoas.
O que você acha de ser essa referência?
É muito bom. O chato é ser exemplo. Não quero ser modelo de nada. Mas é legal ser uma referência.
Acredita ser uma referência para o jovem negro?
Principalmente para o jovem negro. O jovem negro é o que mais está morrendo no Brasil. É o que mais é assassinado, mais atacado, mais vai para a cadeia.
Analisando o contexto do país e a sua trajetória, você em algum momento imaginou que chegaria aonde chegou?
Ser referência eu não imaginava. A única coisa que eu realmente queria era fazer parte da música brasileira. Queria ter o carinho e a admiração dos meus ídolos, das pessoas que eu admiro, como Caetano, Gil, Marisa Monte. Tenho gratidão. Quando eu estava na merda, eu não pirei. Agora que melhorou muito eu não posso pirar. Quando estava na pior, eu aceitei, continuei minha trajetória e acabei encontrando muita gente boa na minha vida, que foi me incentivando. Mas todo dia vamos colocando um tijolinho novo... estamos em obras, desculpe o transtorno.
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