Sem apreço pelo ócio, Alceu Valença não sente a passagem do tempo enquanto busca de maneira impaciente a própria reinvenção como músico, cineasta e poeta
Mauro Ferreira Publicado em 15/10/2014, às 12h31 - Atualizado em 24/10/2014, às 15h35
Frases e mais frases saem com naturalidade da boca veloz de alceu valença. é um jorro contínuo de falas e ideias que denotam a hiperatividade da mente jovial do cantor e compositor de 68 anos completados em 1º de julho. “Eu falo muito, né?”, reconhece ao final da entrevista realizada na casa que mantém no Rio de Janeiro, uma cobertura no bairro do Leblon. • Sim, Alceu Valença fala muito. Já foi convidado a participar de um talk-show em que deveria divagar sobre estresse. Ele fez o programa, mas preferiu não desenvolver o tema, alegando falta de condições justamente por ser estressado. “Eu sou doido, falo comigo mesmo”, afirma. Mas o artista pernambucano tem motivos para falar. Ele acabou de lançar o CD e DVD Valencianas, projeto com abordagem sinfônica de sua obra, e está estreando como cineasta, assinando direção e roteiro de A Luneta do Tempo.
O folhetinesco cordel de amor e ódio, morte e ressurreição, é ambientado no sertão de Pernambuco, no tempo do cangaço comandado pelo mítico casal Lampião (Irandhir Santos) e Maria Bonita (Hermila Guedes). O filme saiu do papel e ganhou as telas com trilha sonora assinada pelo próprio Alceu. Músicas inéditas como “Incelença de Cangaço” e “Senhora Dona” situam as origens da obra enraizada na infância do artista, época em que o menino Alceu via e ouvia cantadores e emboladores na interiorana cidade natal, São Bento do Una (PE). Lá, também absorveu a música do conterrâneo pernambucano Luiz Gonzaga, inspiração explicitada no roteiro da produção.
Na música, tantas referências resultaram em som com linguagem pop, “o rock que não é rock”, como conceitua o próprio artista. “Minha música tem uma timbragem de rock. É a roupagem que eu dou que faz com que minha música entre em tudo que é lugar”, ele explica, sem exagero. Tanto que, por meio de um antigo vídeo de “Vou Danado pra Catende” (1975), o trabalho do cantador roqueiro entrou na mente de Richard Perry, do grupo canadense Arcade Fire, que manifestou publicamente em março deste ano o encanto pelo som de Alceu Valença. “Ele disse que foi a coisa mais maravilhosa que ele ouviu nos últimos tempos”, gaba-se, lembrando que gravou nos anos 1970 álbuns com sonoridade roqueira, como Vivo! (1976). Cultuados, alguns desses discos retornarão às lojas em 2015 em reedições em vinil, via Polysom, juntamente com Saudade de Pernambuco, gravado por Alceu em Paris, em 1979, mas nunca editado oficialmente. Até então disponível em versões piratas, a gravação sairá oficialmente em CD.
Aos mais de 40 anos de carreira, iniciada em 1972 com o álbum Quadrafônico, ao lado de Geraldo Azevedo, o músico enxerga obra e vida com amplitude. “Eu olho tudo de frente para trás e de trás para a frente, como Lampião no roteiro do meu filme. O tempo em si é um buraco negro, a existência do nada, como canto em ‘Embolada do Tempo’”, afirma, sem medo da passagem dos dias. “O tempo é um senhor de rugas e marcas, mas a minha cabeça é a mesma. Eu me sinto novo pra caralho. O espelho é que me diz que eu estou mudando. A minha cabeça é de menino. Nas rodas em que frequento, eu olho e penso que sou menino diante das pessoas amigas. Fico pensando que eu sou mais novo do que pessoas que são mais novas do que eu. Mas aí, quando vou fazer xixi no banheiro do bar, vejo que estou mais velho. Mas é só quando eu olho
no espelho. Sou um moleque traquina, sempre fui.”
Hoje, a traquinagem preferida de Alceu é A Luneta do Tempo, seu reencontro oficial com o cinema, 40 anos após ter trabalhado como ator e ter gravado a trilha sonora de A Noite do Espantalho, filme lançado em 1974 e dirigido pelo amigo compositor e cineasta bissexto Sérgio Ricardo. Quando o assunto é cinema, o sentido do tempo é mais elástico para Alceu. “A Luneta do Tempo é muito antigo, porque o filme começa com minha mãe na fazenda Riachão, de meu tio Alceu, irmão de meu pai”, ele conta. “Quando a gente ia para a fazenda, nas férias, minha mãe gostava de fazer cinema de sombras. Pregava um lençol na parede, pegava uma vela e imitava um fantasma. E a gente assistia àquilo maravilhado, e tudo isso foi ficando na minha cabeça. As histórias que o meu pai contava também eram cinematográficas. Histórias da saga dos cangaceiros, das valentias dos Valenças... por isso, digo que o projeto do filme existe desde sempre.”
Com 100 anos, devidamente festejados em abril, a mãe de Alceu, Adelma, mora no Recife (PE), cidade para onde a família do cantor migrou em 1955. A matriarca viveu o suficiente para ver o delírio cinematográfico do filho virar realidade na tela, solidificando uma relação com a sétima arte cultivada pelo músico desde a infância. Com baixo índice de pobreza, a cidade natal do artista tinha cinco grupos de teatro e dois cinemas para meros 5 mil habitantes nos anos 1940. Em um dos cinemas, o Rex, o moleque Alceu assistia a filmes de caubói e via a mãe se emocionar com a saga de …E o Vento Levou (1939). O outro cinema da cidade, intitulado Luiza Bispo, também era bem familiar para ele, já que o projetor da sala tinha sido presente de um primo do artista – presente dado com a condição de que, a cada sessão, o Cinema de Luiza Bispo exibisse como trailer o vídeo do casamento desse primo. “São Bento do Una era uma cidade tão pequena que a minha avó era prima do meu avô, que era primo do meu outro avô. Olha que loucura: são todos parentes!”, exclama, reforçando a veracidade de uma história com jeito de filme. Essa trajetória teve lances dramáticos na época em que Alceu teve o que chama de um “embate problemático” com o pai, quando decidiu virar artista. “Na visão do meu pai, se eu tocasse violão, eu seria o cara que iria virar boêmio. O medo dele era esse.” Alceu iniciou o curso de direito em 1965, antes de começar a virar artista, em 1969. Em 1999, quando o pai morreu, já em paz com a carreira escolhida pelo filho, o cantor entendeu que precisava voltar à fazenda de sua infância. Lá, encontrou o figurino de Lampião que usou ao participar de um capítulo da novela Mandacaru, exibida em 1997 pela extinta TV Manchete. “Como não me pagaram cachê, eu peguei aquela roupa para mim”, rememora. A roupa foi o mote, há quase 15 anos, para a criação das primeiras linhas do roteiro de A Luneta do Tempo.
“Eu me vesti daquele negócio e comecei a delirar. Pedi a um amigo que me filmasse dizendo o texto do filme, que, na época, eu nem sabia que era filme”, lembra Alceu, que comprou sua primeira câmera de vídeo em 1982, nos Estados Unidos. A partir daí, o roteiro foi tomando sucessivas formas. “Escrevia compulsivamente. Escrevi tanto em cima de um computador mal colocado que machuquei a coluna cervical. No final, eu caía no chão, com uma dor filha da puta. Mas fui delirando, inspirado pelas histórias que meu pai me contava.
Formatado com a ajuda da leitura de um manual de roteiro publicado pelo escritor Doc Comparato, o texto do filme de Alceu começou a ser mostrado também compulsivamente a amigos e conhecidos. Quando caiu nas mãos de Walter Carvalho, o fotógrafo e cineasta garantiu a Alceu que, sim, era cinema o que acabara de ler. O roteiro passou também pelas mãos de outros cineastas, entre eles Andrucha Waddington. Só que os incentivos dos amigos não foram suficientes para a concretização. Alceu então resolveu fazer ele mesmo o filme. Após ter assistido a 15 aulas com uma professora de cinema, o diretor debutante partiu para a ação, filmando em 2009 o longa-metragem, que foi concluído em 2011, 12 anos após ter começado a escrever o roteiro. “Quis fazer o filme por mim, para não parecer com ninguém”, resume.
Hoje, uma década e meia após os primeiros delírios, A Luneta do Tempo entra em cartaz no circuito de festivais, preenchendo o tempo e a vida de Alceu. “Cinema é demorado mesmo, mas o meu é mais”, diz. “Só que, em nenhum momento, eu fiquei apavorado com nada. Nunca fiquei chateado. Era bom estar dentro do processo lento de realização do filme.” Alceu se diz extremamente ativo – ficar a esmo é, para ele, entediante. “Eu fico chateado com não ter muito o que fazer. O filme me preencheu muito o vazio do dia a dia. Os momentos de descanso são chatos, até porque eu ando isolado aqui no Leblon.” Atualmente, a rotina dele pelo bairro nobre do Rio se resume a pegar o filho na escola, caminhar e passear brevemente pela internet (que ele diz “só olhar”; também não é fã de televisão).
Ainda que não seja extremamente conectado à web, o cantor tem lançado músicas inéditas exclusivamente em formato digital. Canção outonal gravada na cadência do xote, “Quando o Amor Vai Embora” anunciou em junho o projeto As Quatro Estações de Alceu Valença. O cantor vai jogar na rede, em breve, outra música desse pacote, o samba “Era Verão”. “Ninguém sabe que eu componho samba”, ressalta, antes de cantarolar versos da canção em que simula a ginga dos bambas cariocas. A ideia da gravadora Deck é editar mais tarde um álbum físico com todas as músicas inéditas lançadas digitalmente. “Componho na hora que eu quiser. Componho muito. Dar vazão a isso tudo é que é problemático”, afirma.
Alceu valença lançou este ano dois álbuns de caráter retrospectivo. Gravado entre 2001 e 2002, mas retocado em 2013, Amigo da Arte saiu em fevereiro, na temporada carnavalesca. É um disco em que o artista exercitou sua memória foliona para traçar o roteiro musical do Carnaval de Olinda (PE). No recente Valencianas, lançado em agosto em CD e DVD, Alceu registra ao vivo o show sinfônico que percorreu o Brasil em 2012. Nele, a Orquestra Ouro Preto – regida pelo maestro Rodrigo Toffolo – enquadra o cancioneiro de Alceu em uma moldura clássica, sem abrir mão da voz do cantor. As ladeiras classicistas de Ouro Preto (MG) desembocam nas ladeiras carnavalescas de Olinda (PE), expandindo os limites de uma obra enraizada nas tradições nordestinas, mas turbinada com a pegada do rock and roll, sem fronteiras.
É por isso que ele não se enquadra na pecha de “som regional”. “Tudo no mundo é regional”, rebate. “O regional se torna universal a partir de uma plataforma de lançamento. O country norte-americano é tão regional quanto a música indiana. Mas o country se tornou universal por causa das rádios, da indústria do disco. Então, essa questão é uma bobagem. Existe uma falta de conceito. O que é som universal? O som universal, eu penso, é o som do vento. Talvez seja mais universal do que o lamento do blues. Mas o blues é tão universal quanto o lamento do negro de Angola.”
“Na minha cabeça, não vejo diferença em nada”, ele continua. “Claro que, com uma mídia, as pessoas vão ficando só com uma linguagem. Vou a um restaurante japonês e ouço o tempo todo música em inglês. Essa coisa é muito louca. Tenho uma coisa muito crítica em mim, porque sempre gostei de filosofia.”
Quando menino, Alceu ouvia Elvis Presley e Ray Charles na casa dos amigos de infância. No entanto, diz que nunca teve ídolos. “O artista, quando tem um ídolo, monta muito naquilo ali e aí fica parecido com seu ídolo, virando um subproduto dele”, decreta. “Não me pareço com ninguém. Nunca me senti maior do que ninguém. Mas também não me sinto menor. Então, pode vir Mick Jagger no seu cavalo puro-sangue que eu vou no meu jegue. Duvido que Mick Jagger cante as minhas coisas como eu. Como eu também não canto as dele como ele.” Sem fronteiras estéticas, mas com discurso nacionalista (“O Brasil precisa ser Brasil, precisamos olhar para nossas raízes, temos que cuidar da nossa casa, da nossa gente”), Alceu Valença espera que o presidente eleito neste mês de outubro priorize a educação e a saúde. O artista crê em um futuro mais próspero, futuro do qual espera ser testemunha ocular. De família longeva, com tios habituados a ultrapassar a barreira dos 100 anos de vida, o amigo da arte quer completar 134 anos. “E por que não 135? Porque eu não quero...”, diz, com a valentia dos Valenças.
Em palavras
“Virei poeta”, avisa Alceu Valença. É simulando o sotaque português que o cantor e compositor pernambucano revela que seu primeiro livro de poesias vai ser lançado em janeiro de 2015 por uma editora lusitana, a Chiado. Com textos novos e antigos, alguns escritos desde os tempos em que Alceu exercia o ofício de jornalista no Recife, a compilação O Poeta da Madrugada abarca também letras de música. Foi em Portugal, no tempo ocioso da calada da noite, que Alceu começou a exercitar com mais regularidade a veia poética que até então pulsava publicamente apenas nas letras escritas para as melodias de seu cancioneiro. No Brasil, a contínua inspiração já não vem com hora marcada. “Eu acordo, pego meu tablet e começo a escrever poesia. E aí é que eu perco o sono mesmo”, conta, embaralhando os conceitos de noite e dia na embolada do tempo.
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