Idealismo, paixão e teimosia movimentam as engrenagens da prolífica indústria dos festivais independentes brasileiros
Rodrigo Lariú Publicado em 14/08/2007, às 11h00 - Atualizado em 02/09/2007, às 22h21
Ao criarem os festivais Juntatribo (em 1993, em Campinas), Abril Pro Rock (Recife), BHRIF (Belo Horizonte) e o Humaitá Pra Peixe (Rio de Janeiro), os três em 1994, seus produtores tinham um objetivo principal bem definido: ajudar as bandas de que gostavam. Hoje, já chegam às dezenas os festivais independentes acontecendo durante todo o ano, do Pará ao Rio Grande do Sul. A explosão recente desta espécie de evento motivou a fundação da Associação Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin) e o contínuo nascimento de novos projetos. Só em 2006, três novos festivais aconteceram, alguns com verba inicial de R$ 70 mil já na primeira edição.
Um conceito é básico para entender toda a movimentação em torno dos festivais independentes: sem eles, grande parte dos artistas de hoje (independentes ou não) como Nação Zumbi, Los Hermanos, Autoramas e Detonautas, teriam sua carreira profissional dificultada ou atrasada. No começo dos anos 90, várias bandas utilizavam caminhos alternativos para divulgar seus trabalhos e chegar a uma gravadora. Esse caminho havia sido criado por bandas underground do fim da década de 80, como Pin Ups, Killing Chainsaw e Second Come. Elas cantavam em inglês, não eram unanimidade na imprensa e dependiam de seus próprios meios para existir. Faziam shows em locais pequenos, vendiam suas próprias fitas demo e usavam os fanzines como principal meio de divulgação. Este era considerado um "desvio" do esquema do rock brasileiro de então, quando estúdios caros, empresários e muita grana eram o único caminho para se criar uma carreira. Nomes como Raimundos, Pato Fu, Little Quail & The Mad Birds, Chico Science & Nação Zumbi, Concreteness, Planet Hemp, brincando de deus e dezenas de outros pegaram esse "desvio".
Em 1994, com a estabilização econômica do Plano Real, bandas, gravadoras independentes e fanzines aperfeiçoaram o modelo underground de fins dos anos 80, unindo a ideologia do it yourself e contatos país afora. Mais eficiente do que fazer tudo sozinho era unir várias bandas, vários fanzines, várias gravadoras independentes em um único evento: nascia o festival independente.
Ao mesmo tempo, nos Estados Unidos não se falava de outra coisa que não fosse o Lolapalooza, festival itinerante criado por Perry Farrell (Porno for Pyros e Jane's Addiction), que reunia a nata do mercado independente norte-americano e era o sonho de consumo de amantes de música mundo afora. A impressão que se tinha daqui, pleno período pré-internet, era de que tudo de relevante acontecia durante o Lolapalooza.
No Brasil, o histórico de eventos desse tipo era praticamente nulo. Os festivais da época passavam longe de ser independentes: Rock in Rio e Hollywood Rock eram eventos de marca, atrelados ao mainstream e muito distantes da realidade do nascente mundo independente. É histórica a campanha dos fãs para incluir o Sepultura, no auge do sucesso do disco Arise, no Hollywood Rock de 1993. E isso porque a banda já nem fazia mais parte do cenário independente na época.
Pensando em eventos que reunissem as bandas emergentes, as primeiras edições do Abril Pro Rock, Juntatribo, Humaitá Pra Peixe e BHRIF apresentaram nomes que poucos na época tinham ouvido falar: Tube Screamers, Raimundos, Muzzarellas, Paulinho Moska, Corações e Mentes, Coma, Funk Fuckers, Low Dream, mundo livre s/a., Inhumanoids, Waterball, Mickey Junkies, Skijktl, Serpent Rise; e internacionais, como Fugazi e Swamp Terrorists. A intenção era clara: em vez de reunir dezenas de milhares de assinaturas e implorar para que uma banda entrasse num festival de grande porte, produzia-se um show para as novas bandas tocarem.
A estabilização da economia ajudou o nascimento da cena, mas também impulsionou o mercado musical brasileiro dos "grandes". As gravadoras majors criaram fenômenos de venda como Mamonas Assassinas, a axé music, o pagode e o sertanejo. Turbinada por discos que vendiam centenas de milhares de cópias, por um mercado fonográfico que era o sétimo maior do mundo e por muito dinheiro, instaurou-se uma espécie de "monocultura musical" no país. A saída, mais uma vez, eram os festivais independentes.
Fugindo do período do primeiro trimestre, "quando nada acontecia na cidade, a não ser o axé", o produtor Paulo André montou o Abril Pro Rock no quarto mês de 1993, e assim vem sendo há 14 edições. "Todos achavam loucura, mas percebi que algo de novo acontecia na cidade e que faltava um lugar para as bandas se apresentarem", relembra. Paulo era dono de uma loja de discos em Recife e viu no evento uma saída para divulgar seu negócio e a música de seus amigos e clientes, além de reunir a emergente cena musical local. Há quilômetros de distância, Bruno Levinson, produtor do festival carioca Humaitá Pra Peixe, teve visão semelhante: "Sempre enxerguei no Humaitá uma vitrine para que os artistas se desenvolvessem, para que pudessem criar carreiras a médio e longo prazo", explica. "Era muita gente boa sem espaço para tocar."
Com a devida atenção da imprensa, as grandes gravadoras perceberam a novidade e passaram a enviar "olheiros" aos festivais. Consagrado no primeiro Juntatribo, que teve cobertura ampla da MTV, a banda brasiliense Raimundos foi contratada pelo selo Banguela, uma parceria dos Titãs com o produtor Carlos Eduardo Miranda, distribuída pela Warner Music. A Sony Music já tinha o selo Chaos, onde lançara Skank, Gabriel O Pensador e lançaria Chico Science e Planet Hemp, esta última revelada pela segunda edição do Juntatribo. Ainda na primeira metade da década de 90, quase todas as gravadoras multinacionais tinham selos independentes. A BMG reativou o selo Plug (que nos anos 80 lançara Picassos Falsos, Engenheiros do Hawaii, Replicantes, Violeta de Outono, Obina Shock, entre outros), contratando o Pato Fu. A EMI ativou o selo Rock It!, capitaneado por Dado Villa-Lobos (Legião Urbana) e André Muller (Plebe Rude), que lançou discos de bandas mais alternativas como Second Come, Pelvs, Gangrena Gasosa, Low Dream e Dungeon. Não por coincidência, todas essas bandas participaram, em algum momento, de festivais independentes.
Atentos a essa movimentação, mais festivais surgiam. No Rio de Janeiro, sede das grandes gravadoras, nasceu o SuperDemo. De Curitiba veio o BiG, uma insanidade com quase 100 bandas. Em Salvador, o Boombahia. Em São Paulo, o Screamadelica. Em Goiânia, surgia o Goiânia Noise Festival, hoje considerado o principal festival independente do país e cuja primeira edição aconteceu em 1995.
Mesmo sendo cria da primeira leva de festivais independentes, o Goiânia Noise só se estabeleceu e tornou-se referência quando optou pelo formato que hoje é usado por quase todos os outros eventos semelhantes: seus shows acontecem em locais de médio porte, sempre com dois palcos, 75% das atrações são independentes, muitas delas originadas na própria região onde o festival se realiza e usando leis de incentivo para alcançar subsídios (mas o evento não deixa de acontecer caso a verba não saia).
"Eu acho que o fato de Goiânia estar longe dos grandes centros, de não ter uma história roqueira e mesmo assim organizar um festival com 20, 30 bandas de rock pesou muito", analisa Fabrício Nobre, um dos produtores. "Eu sempre pirei nos festivais europeus, com mais de um palco, onde você mistura atrações aparentemente díspares como Ratos de Porão e Violins", diz. "O público sempre foi muito receptivo em Goiânia. O simples fato de você tocar guitarra já é contestador e o público do festival assiste a tudo. Isso impressiona as bandas que vêm de fora e a imprensa."
Se durante a segunda metade dos anos 90 os festivais independentes eram vistos apenas como provedores de novos talentos para o mainstream, a cena começou a mudar no começo da década atual. Antes, a principal propaganda dos festivais era ter revelado uma banda para o mercado fonográfico. A história diz que o Abril Pro Rock revelou a cena mangue, a banda baiana Penélope e o Los Hermanos; o festival MADA de Natal lançou o Detonautas; o Humaitá Pra Peixe empurrou a carreira do Planet Hemp e de Marcelo D2.
Atualmente, em um cenário onde a tão falada "crise do mercado fonográfico" e a nova orientação política iniciada com o primeiro mandato do governo Lula dão as cartas, a ordem é seguir uma orientação auto-suficiente voltada para o fomento do mercado independente como fim, e não mais como meio. O discurso mudou: o que mais se lê em jornais são as bandas questionando se vale a pena assinar com uma grande gravadora. Por sua vez, as grandes gravadoras não mandam mais olheiros aos festivais, onde cresce a quantidade de estandes de gravadoras independentes, que vendem seus discos e camisetas diretamente ao seu público. No Goiânia Noise de 2003, o estande da Monstro vendeu, em três dias, R$ 8 mil e quase 100 discos.
A maior função dos festivais continuava sendo gerar o intercâmbio entre bandas, fanzines, selos, produtores e jornalistas, mas agora está ligada principalmente ao próprio mercado independente. Aí mora a grande diferença do modelo atual em relação aos festivais da década passada: o evento passa a ser visto como um amplificador da produção musical e cultural daquela região. Em um país de dimensões continentais, cidades distantes do eixo Rio-São Paulo se espelham neste modelo de evento para entrar no mapa brasileiro. Enquanto fenômenos de massa como É o Tchan ou Banda Calypso se desligam das raízes e tornam-se acontecimentos nacionais, são os festivais independentes que garantem a projeção de cidades, estados ou regiões.
No final de 2005, 14 produtores dos principais festivais nacionais se reuniram em Goiânia para criar a Abrafin (Associação Brasileira de Festivais Independentes). Segundo a associação, para ser independente, um festival deve escalar pelo menos 75% de artistas não ligados às gravadoras multinacionais, não pode ser gerido pelo governo, não pode ser bancado por grandes veículos de comunicação ou por grandes empresas. Pelo estatuto, Tim Festival, Claro que é Rock, Nokia Trends e Skol Beats não são considerados festivais independentes, pois são financiados por grandes marcas. Da mesma forma, eventos como Ceará Music, Planeta Atlântida e Festival de Verão de Salvador não poderiam se associar.
Isso não significa que os independentes não queiram o apoio de marcas. "Não vejo problema em me associar a essas empresas, desde que a parceria seja saudável," diz Bruno Levinson, do Humaitá Pra Peixe, o qual já teve patrocínio da TIM, Pepsi, Sprite, Clearchannel e conta com o apoio da operadora Oi em sua edição 2007. Mesmo com o patrocínio, seu festival foi convidado a se associar à Abrafin. "O fato de eu ter feito a edição de 2005 com patrocínio e a de 2006 sem, para mim só confirma que o meu evento é independente o suficiente para se associar a uma marca ou acontecer sem ela."
Atualmente, parte da verba de um festival independente vem de apoio governamental. A edição 2006 do Abril Pro Rock custou R$ 720 mil, sendo que um quarto do valor veio do apoio que o Governo de Pernambuco fornece desde 1995. Outra parcela saiu da Petrobras. A edição mais recente do Goiânia Noise custou quase R$ 300 mil, dos quais um terço saiu da Lei Goiás de incentivo cultural. "Se não fosse o público, que nesta edição foi de 6 mil pessoas, teríamos perdido dinheiro", lamenta o produtor Fabrício Nobre.
Além dos altos custos, a montagem das programações dos festivais surge como problema, uma vez que contratar nomes de peso como Los Hermanos ou Pato Fu implica em cachês e passagens que às vezes custam mais que o custo total de um festival com bandas menos conhecidas. "Ao não escalar bandas assinadas com grandes gravadoras, o festival abre espaço para a gravadora da sua cidade, que está lançando um disco de uma banda local", explica Pablo Capilé, produtor do Calango e do Grito Rock, ambos de Cuiabá. Outro obstáculo, os altos custos de produção, interessa diretamente ao Governo Federal. Dione Manetti, diretor do Departamento de Fomento à Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego, vê nos festivais "uma manifestação de organização coletiva em busca de soluções próprias para questões como emprego". Curiosamente, o Ministério do Trabalho e Emprego se interessou pelos festivais antes que o Ministério da Cultura. "A política do governo atual é conversar com todos, com os 'grandes' e com 'os pequenos' e detectamos nos festivais uma forma organizada de autogestão que interessa ao programa de economia solidária", explica Manetti.
O "viés político" já está no modus operandi de alguns desses festivais, como o Calango, em Cuiabá, "nascido" em 2001 com uma verba de R$ 35 mil da lei de incentivo estadual. Já em sua quarta edição, o festival custou R$ 200 mil, 30% dos quais saíram desta mesma lei. O restante ficou por conta dos rendimentos com bilheteria, bar e do fundo de cultura municipal. "Toda ação é política", define Capilé. "Nossa intenção com o festival é fortalecer o mercado de cultura e toda a cadeia produtiva que gera emprego e educação para o nosso estado. O governo não se intromete no formato e na programação do festival, é uma relação de parceria." Mesmo com um melhor relacionamento com empresas privadas e com o governo, os festivais ainda sofrem para aparecer para o grande público. Dados da Abrafin indicam que a maioria dos 300 mil espectadores dos festivais realizados em 2006 são jovens (16 a 34 anos), das classes A, B e C, com instrução de nível médio a superior.
Contando com bandas novas ou consagradas, com ou sem dinheiro, com verba do governo ou ajuda privada, com milhares de pessoas na platéia ou com apenas uma centena delas, a existência do festival independente é diretamente relacionada à perseverança de seus organizadores. A primeira edição do festival Se Rasgum No Rock, em Belém (PA), contou com Wander Wildner, Cachorro Grande e mundo livre s/a, teve uma média de 2 mil pessoas por noite e, mesmo assim, amargou um prejuízo total de R$ 11 mil. "Mas encaramos isso como lucro, pois para a primeira edição, o retorno que o festival deu em visibilidade nacional para a cena local e para o patrocinador já quase que nos garante para o ano que vem", explica o produtor Marcelo Damaso. A dificuldade de transpor barreiras e atingir um público mais amplo representa um dos grandes obstáculos dos festivais independentes - obstáculo este que os organizadores adoram tentar transpor. "Nós pensamos na possibilidade de trazer a Pitty em 2007", divaga Damaso. "Mas, a princípio, eu prefiro ficar mesmo com os grupos independentes."
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