Obcecado em combater as FARC, o governo Uribe negligencia a renovação do paramilitarismo. Mais danoso que a guerrilha, os neopara colombianos aprofundam ainda mais o drama das migrações forçadas no país.
Por Maurício Monteiro Filho Publicado em 11/05/2010, às 10h23
O táxi parece percorrer uma exposição a céu aberto. Os gordos de Botero estão espalhados por toda a parte, em Medellín, região norte da Colômbia. Há uma praça batizada com o nome do artista, o mais renomado do país, tomada por 23 esculturas de bronze quase negro. Não muito distante dali, passamos pelo Parque San Antonio e novamente nos deparamos com as formas infladas e solenes. Uma delas, um pássaro que talvez tenha lembrado uma pomba um dia, parece ter inchado tanto que explodiu.
Não foi obra de Botero: a escultura, hoje um amontoado de bronze retorcido, foi mais uma vítima do conflito armado que marcou a cidade durante a década de 1990, tendo a cocaína como combustível. Nunca foi descoberto o grupo responsável pelo feito que aproximou a arte de Botero do cubismo de Picasso. Além do pássaro, o atentado, ocorrido em junho de 1995, vitimou dezenas de pessoas, entre mortos, feridos e ensurdecidos pelo barulho da explosão.
Enquanto Medellín luta para deixar pra trás esse passado de conflitos sangrentos, rumamos direto para onde ninguém consegue esquecê-lo. O destino do táxi é San Javier, comuna 13 (as comunas são os bairros de periferia de Medellín). Mais especificamente, procuramos um lugar chamado La Escombrera. Estamos atrás de escombros.
À medida que subimos, a estrada sinuosa vai rareando de casas e pessoas. A paisagem começa a fazer jus ao apelido da área. Escavadeiras revolvem a terra, fazendo grandes buracos no morro.
A entrada de uma das várias pedreiras que estão no local é guardada por militares fortemente armados. É claro que pedras e areia não são os bens mais valiosos que se encontram no solo destas bandas. A desconfiança com que os soldados nos recebem faz os rumores da cidade sobre a comuna 13 parecerem mais verossímeis. Dizem que, entre os escombros de La Escombrera, há sangue.
Mas perguntas são tão bem-vindas quanto jornalistas. E nem o auxílio do taxista, César Augusto, quebra o gelo. Ninguém ali falaria.
Boatos à parte, é certo que bastante sangue foi derramado nestas terras. Depois da morte de Pablo Escobar, comandante do famoso Cartel de Medellín, assassinado pela polícia em 1993, foi a vez do novo inimigo público número um colombiano, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), se infiltrar nos morros de Medellín. A comuna 13 era um de seus quartéis-generais nas franjas da cidade.
Para combater a ameaça guerrilheira, o exército e as forças policiais lançaram, em 2002, a operação Orion, uma ofensiva maciça morro acima, que visava erradicar qualquer presença dos rebeldes naquela zona pobre de Medellín. Os combates terminaram com números expressivos, segundo fontes oficiais: 243 presos; seis rebeldes, quatro militares e um civil mortos; e duas pessoas sequestradas pelas Farc libertadas.
No entanto, de acordo com críticos da operação, a aritmética oficial negligenciou o sumiço de cerca de 70 pessoas, além de execuções ilegais. Esses desaparecidos seriam, hoje, parte dos escombros em La Escombrera, apontada como uma grande vala comum.
O Exército colombiano não mente ao negar responsabilidade por esses desaparecimentos e mortes. Apesar de as autoridades ainda estudarem a viabilidade de se escavar o local em busca de corpos, os autores da chacina e dos sequestros já são há muito conhecidos.
Nascidos no seio do estado colombiano, como a solução mais eficaz para a chamada contrainsurgência - o combate aos guerrilheiros das Farc -, os paramilitares eram quem carregavam os fuzis que abateram as dezenas de vítimas da operação Orion não contabilizadas oficialmente.
São deles também os dedos que pressionam os gatilhos por grande parte da zona rural do país, coagindo e matando camponeses, indígenas, afrodescendentes e populações tradicionais, que acabam forçados a abandonar seus locais de origem em busca de segurança em outras regiões do país. O volume sem precedentes de migrações internas forçadas - chamadas de desplazamientos - confere ao país um inglório recorde: a Colômbia é a segunda nação no mundo nesse quesito, atrás apenas do Sudão. A Consultoria para los Derechos Humanos y el Desplazamiento (CODHES) avalia que esse número esteja na casa dos quatro milhões de pessoas. As cifras do governo são menores: 2,3 milhões.
Hoje, expulsos os guerrilheiros e retirado o Exército, são os paramilitares - ou seus herdeiros - que seguem dominando as comunas em Medellín. A despeito dos esforços oficiais para refazer sua imagem, a cidade sofre com um recrudescimento dos conflitos na periferia. Segundo o Human Rights Watch (HRW), o número de homicídios no primeiro semestre de 2009 foi quase o dobro do registrado no mesmo período de 2008. As bandas, as gangues locais, disputam ferrenhamente o domínio regional, em nome do monopólio das bocas de tráfico e da vacuna, a propina paga por comerciantes ou empresários de transporte, entre outros, para operar nas áreas controladas por esses grupos.
Alguns estudos sustentam que o fenômeno do paramilitarismo na Colômbia se inicia já entre as décadas de 1920 e 1930, como uma reação dos proprietários de terra aos movimentos que reivindicavam a reforma agrária. Mas, oficialmente, esses grupos surgiram bem mais tarde, quase simultaneamente à criação das Farc, em 1964. E quem deu à luz os paras foi a própria legislação colombiana. Enfrentando um período de fortes tensões sociais, o governo promulgou o decreto 3398, de 1965, e a lei 48, de 1968. Ambos diziam respeito à organização da defesa civil no país. Na prática, os textos abriram uma brecha para o armamento da população, o que possibilitou a criação das chamadas autodefensas.
Mas, surgido para ser a anti-Farc, o movimento acabou tomando dimensões incontroláveis, tornando- se ele próprio criminoso, envolvendo-se na ação de milícias na periferia das grandes cidades e na zona rural, associando-se com o narcotráfico - o que também ocorre com a guerrilha. A partir de 1997, as 37 organizações armadas paramilitares então conhecidas passaram a ficar reunidas sob o nome genérico de Autodefensas Unidas de Colômbia (AUC).
Entre 2003 e 2006, num processo conhecido como desmobilização, uma rodada de acordos diretos entre a elite paramilitar e o governo de Álvaro Uribe culminou na entrega das armas, com a garantia de penas mais brandas para os que cooperassem e a perspectiva de reintegração à vida civil. Dados oficiais dão conta de que mais de 30 mil pessoas abandonaram as autodefensas nesse período. Chefes lendários dos chamados bloques - unidades locais paramilitares - se entregaram voluntariamente. Muitos deles acabaram, segundo fontes, a pedido do próprio presidente, extraditados para os Estados Unidos, e sequer respondem a processos por crimes paramilitares. A acusação mais comum que pesa contra eles é de narcotráfico, uma forma bastante conveniente de reescrever a história.
Desde então, pelo menos no discurso de Uribe, não existem mais paras atuando na Colômbia. Dessa maneira, a opinião pública passou a se concentrar exclusivamente nos crimes praticados pela guerrilha, em especial as Farc, e a tolerar toda forma de repressão aos suspeitos de terem ligações com os rebeldes.
Gloria chabarría conhece de perto os efeitos da Operação Orion. Seu filho, Carlos Emilio Torres, foi um dos desaparecidos na ocasião. Após o sumiço, ela ficou dois anos sem sair de casa. Agora, religiosamente, todas as quartas-feiras de manhã, ela se divide entre o choro e a resignação com um grupo de mulheres em frente à igreja de La Candelaria, no centro de Medellín. Estendem centenas de fotos pelo chão e acendem velas. Vivem o luto incompleto de não poderem enterrar seus mortos ou sequer saber se os familiares e amigos que sumiram sem deixar resquícios estão, de fato, mortos. O coletivo é chamado de Madres de la Candelaria, uma versão colombiana das Madres de la Plaza de Mayo argentinas. São Glorias, Amparos e Luzes - nomes que contrastam com as causas de seus protestos. Ao todo, são 1.756 famílias envolvidas.
Participando dos encontros das Madres, Gloria recobrou a energia. Mas continua vivendo o conflito que marca boa parte das presentes. "Por um lado, sempre mantenho a esperança. Mas, por outro, espero que se façam logo as exumações para resolver tudo", revela.
Os maridos e os filhos dessas mulheres são vítimas tanto de ações da guerrilha como de grupos paramilitares. "A maioria dos casos de desaparições forçadas de que temos conhecimento são obra dos paramilitares", declara Amparo Mejía, coordenadora das Madres. Os algozes são quase que velhos conhecidos, sempre lembrados por seus alias, seus nomes de guerra. HH, Alemán, Jorge 40 e Don Berna - o líder maior dos paras em Medellín - são alguns deles.
Para as Madres, dizer que os responsáveis pelo sumiço de seus parentes são os paras equivale a declarar que o culpado de seu drama é o Estado colombiano. "São forças criadas paralelamente pelo Estado para ajudar com as operações de 'limpeza'", afirma Amparo.
Atualmente, as Madres podem receber os benefícios das chamadas versões livres, mecanismos previstos na lei 975 de 2005, conhecida como Lei de Justiça e Paz, a mesma que dá conta das desmobilizações tanto de paras como de guerrilheiros. Por elas, os ex-paras relatam às autoridades todos os crimes que tenham cometido. Isso abre caminho para que as famílias das vítimas recebam uma indenização do governo colombiano. Mas a promiscuidade da relação entre Estado e grupos armados ilegais na Colômbia faz com que mesmo essa compensação seja vista com descrença. "Não concordamos com a comissão de reparação porque é uma organização do Estado, e não das vítimas", diz Amparo Mejía.
Nem todas as iniciativas do poder público colombiano de mitigar os danos causados pelo conflito devem ser descartadas. São investigações de um braço do Judiciário do país, a Fiscalía General de la Nación, que tentam restaurar, ao menos uma parte, da verdade. Em uma nação tomada pelo conflito armado há pelo menos cinco décadas, os maiores detentores dessa verdade são os mortos. E Gustavo Duque é um de seus mais valiosos interlocutores.
Fiscal exumador, Duque percorre a região oeste do país - o que inclui os departamentos (estados) de Chocó e Antióquia, cuja capital é Medellín, e o chamado eixo cafeteiro, com os departamentos de Caldas, Risa ralda e Quindió, escavando fossas em busca de corpos de desaparecidos. Em cerca de três anos de trabalho, ele e sua equipe já exumaram mais de 400 corpos - cerca de 130 foram entregues às famílias e mais de 200 estão sendo analisados em laboratórios.
Convivendo basicamente com restos mortais bastante deteriorados, ele possui uma visão mais balanceada do conflito. Do ângulo pelo qual ele vê a história - o das valas clandestinas -, a violência é uma motoniveladora de destinos. "Todos os grupos à margem da lei - a guerrilha, os paramilitares, os narcotraficantes e os delinquentes comuns - usam os mesmos métodos. Praticam sequestros, torturas, desmembramentos, esquartejamentos e depois colocam as vítimas em valas de dois por tres metros", explica.
E essas valas podem estar encravadas nas florestas e nas margens dos rios de Chocó, como podem estar em plena cidade. Mas Duque conta que, por sua experiência, é possível dizer que há muito mais fossas na zona rural.
E atrás da gente que corre risco de acabar em uma dessas valas que estamos, quando tomamos o rumo das cidades de Turbo e Apartadó. A região, próxima da fronteira com o Panamá, é conhecida como Urabá e inclui trechos dos departamentos de Córdoba, Antióquia e Chocó. É uma área de forte presença da indústria bananeira e mineral, e uma zona de tráfego intenso de mercadorias - legais e ilegais - por estar na costa do Atlântico. Some-se a isso a predominância de populações negras, além de indígenas e outras populações tradicionais. Essa configuração marcada por interesses antagônicos fez de Urabá uma das regiões que mais sofreram com a guerra civil colombiana. E que o governo, sem sucesso algum, tentou rebatizar de território da reconciliação.
Talvez por isso o exército esteja atento aos mínimos movimentos de quem chega a essa zona, especialmente quando se trata de gringos munidos de câmeras fotográficas. Depois de sacarmos algumas fotos da estrada, avistamos um posto militar, e o soldado ordena que o táxi em que estamos encoste. Em tom matreiro, o militar diz:
- Una requisita...
Já estamos habituados - em Medellín, a rotina de revistas era a mesma. O militar diz que as câmeras do quartel por que tínhamos passado havia pouco registraram que estávamos tirando fotos.
- Mas não podemos tirar fotos?
- Sí, se puede, claro.
O diálogo é um retrato da Colômbia: um país cheio de liberdades, mas todas elas vigiadas de muito perto por militares armados até os dentes. Tudo é permitido, desde que te revistem antes.
Preferimos manter a coerência com o que dizem nossos passaportes: estamos na Colômbia a passeio. Difícil é entender o que dois brasileiros vieram fazer num lugar tão sujo, barulhento, com uma zona portuária decadente e um ar poeirento e pesado.
A confusão na cabeça do militar só aumentava, enquanto ele abria nossas mochilas e encontrava equipamento fotográfico profissional, gravadores, blocos de anotação e farta literatura sobre o conflito armado na Colômbia, com bastante ênfase na temática do paramilitarismo. Ele se detém em um dos livros, que tem "AUC" escrito em letras grandes na capa, por vários segundos.
Enquanto nos liberava, intrigado, dava para notar que seu olhar entendia que não estávamos exatamente a turismo na região. Mas ele sabia que podia nos entregar tranquilamente à nossa própria sorte, porque, se há algum lugar no mundo que não perdoa passos em falso, esse lugar é Urabá. Ele só nos deixou seguir porque estava tão óbvio que estávamos mal-intencionados - jornalismo é sinônimo de má intenção na Colômbia - que só poderíamos ser um par de idiotas.
Em um ato de pura idiotice, saímos de Turbo em direção a San José de Apartadó, um vilarejo a meia hora de distância em um chivero, jipe caindo aos pedaços que faz o transporte local. Nosso destino está na estrada, do lado direito: a Comunidad de Paz de San José de Apartadó (CDP).
Visitar a comunidade não é uma ideia tão boa porque se trata de uma área de passagem de todo o tipo de grupo armado legal ou ilegal que atua na Colômbia. Naquele espaço, operam as Farc e outros grupos guerrilheiros, como o Exército de Libertação Nacional (ELN); os paramilitares e as Forças Armadas, às vezes em conjunto com os paras. O intenso tráfego de helicópteros militares sobre uma das serras vizinhas confirmava o dado. E não se tratava de exercício de rotina. No momento em que cruzamos os limites da propriedade, o Exército estava em guerra com as Farc.
Estar em solo não era alento nenhum. O terreno está crivado de minas antipessoais. No dia anterior, uma moradora havia pisado em uma delas e se ferido gravemente. Esses explosivos, mais comumente usados pelas guerrilhas, deixaram em 2009 109 feridos e 32 mortos no país, segundo o Human Rights Watch.
A palavra paz, nesse contexto, soa como um palavrão. Mas é quase que um atestado de sobrevivência para a comunidade. Como ela, outras 11 localidades na região têm a paz grudada em seus nomes. Não é uma questão retórica. Na Colômbia, a expressão diz respeito a zonas humanitárias (ZHs), regiões ameaçadas pela presença armada ilegal, fundamentadas no conjunto de princípios do Direito Humanitário Internacional, e que também deixaram de confiar na segurança oferecida pelo Estado, por meio da força pública. Os arredores de San José de Apartadó são uma verdadeira colcha de retalhos de ZHs.
Essa precaução é necessária porque, nessas paragens, reina a lógica que prega que "o amigo do meu inimigo também é meu inimigo". Assim, qualquer suspeita de associação com o Exército vai gerar ataques por parte da guerrilha. Qualquer indício, por mais ilusório, de aliança com as Farc, gerará pressões dos paras. E assim sucessivamente. Por isso, declarandose comunidade de paz, o coletivo se afirma neutro em relação a esses vínculos, negando aproximação com os grupos ilegais e com o Exército, braço armado do Estado, em quem esses povos não botam fé alguma por sua proximidade com os paras.
Selecionar melhor as amizades é estratégico para esses agricultores. Mas nem o isolamento tem garantido qualquer tranquilidade por aqui. Apesar de contar com uma linha direta com redes de proteção inter e supranacionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), e do apoio constante de organizações humanitárias, a CDP já contabiliza quase 200 de seus membros mortos desde sua fundação, em março de 1997.
O pior momento da história da comunidade ocorreu entre os dias 21 e 22 de fevereiro de 2005. Na ocasião, uma operação comandada por militares, mas com a presença de paras, resultou na morte de cinco adultos e três crianças.
Jesus Emílio, conhecido como El Negro, é um dos representantes da CDP. Ele explica a razão de tanto assédio aos camponeses que ocupam essas terras. "A região de Urabá tem muita riqueza. Temos o Mar do Caribe a uns 20 quilômetros. É uma zona bananeira, que gera muitas receitas. A terra é muito produtiva. Todos esses motivos justificam a presença dos atores armados", analisa. O potencial econômico da área ainda conta jazidas minerais abundantes.
Diante desse panorama, não é difícil entender os interesses em jogo, muito menos o papel do paramilitarismo na área. Aos olhos dos rebeldes como também dos grupos de autodefensas, a presença de agricultores e populações tradicionais é um obstáculo. Para as Farc, eles representam um problema por serem eventuais informantes de Exército e paras. E para o Estado e os grupos sucessores das AUC, a existência dos camponeses freia a exploração econômica da área.
Por isso, os paras, antes e depois da desmobilização de 2006, atuam como verdadeiros batedores dos empreendimentos econômicos. Abrem caminho, expulsando ou dizimando as populações locais, para as companhias mineradoras, bananeiras e, mais recentemente, de palma africana - ou dendê.
Essa relação ficou comprovada quando, em 2007, a companhia de frutas e vegetais sediada nos EUA Chiquita Brands Inc. admitiu ter injetado US$ 1,7 milhão para financiar ações das AUC entre 1997 e 2004. A companhia tem como subsidiária a Banadex, que explorava o mercado bananeiro de Urabá.
Essas ações visavam combater as Farc em Urabá. Mas como os camponeses eram frequentemente acusados de ligações com os rebeldes acabavam sofrendo sob o fogo cruzado. Para piorar, a mera suspeita de associação com a guerrilha se tornou salvo-conduto para a realização de operações militares desastradas nas terras dos trabalhadores rurais.
O subproduto direto dessa postura das AUC de leões-de-chácara dos empreendimentos econômicos é o desplazamiento em massa. E o aumento, nos últimos anos, do número de migrantes forçados caminha a par e passo com uma alta nas ações de grupos sucessores dos paras, mesmo após a desmobilização de 2006, contradizendo o próprio presidente Uribe. Mais longe: as ofensivas dessas novas autodefensas superam as da guerrilha, consideradas os únicos atores armados ilegais em atividade pelo Estado.
Segundo o Observatório do Conflito Armado, da Corporación Nuevo Arco Iris (CNAI), entidade que tem diversos estudos sobre a guerra civil colombiana, "desde o início de 2008, as ações dos chamados grupos neoparamilitares [assim denominados por se tratarem de paras pós-desmobilização] são em maior número que as das Farc". Ainda segundo o órgão, essa expansão se dá tanto nas zonas rurais como nas urbanas, incluindo Medellín e Bogotá, capital do país. No final de 2008, os crimes cometidos pelos neoparas chegaram a superar, em ocorrências, a soma daqueles perpetrados por Farc e ELN juntos. No início de 2009, os herdeiros das AUC chegaram a realizar o dobro de ações das Farc.
Segundo um balanço publicado pelo CNAI no final de 2008, as novas autodefensas estavam presentes em 136 municípios do país, sendo 30% deles na costa atlântica - justamente onde se localiza a região de Urabá. Os números da Missão de Apoio ao Processo de Paz da OEA são ainda mais impactantes: avaliam que os neoparas estão presentes em 153 cidades.
Em contraste com a evolução do desplazamiento interno colombiano, esses números ganham contornos mais dramáticos. De acordo com o HRW, entre 2004 e 2007, período que coincide com o surgimento dos neoparas, a quantidade de pessoas que migraram forçadas aumentou significativamente. Em 2004, 228.828 pessoas foram desplazadas. Em 2007, a cifra chegou a 327.624. Entre esses migrantes, 37% afirmam ter abandonado seus lares por pressões dos paras contra 29,8% das Farc.
Em uma manhã de sábado, em frente ao coliseu - um centro de práticas esportivas - de Turbo, as filas quilométricas eram a medida do impacto social do desplazamiento. Centenas de pessoas aguardavam o recebimento de uma ajuda bimestral do governo no valor equivalente a cerca de R$ 30. A periferia de Turbo está inundada de pessoas desarraigadas de seus locais de origem, forçadas a migrar por causa da violência.
No próprio coliseu, um monumento simples relembra as vítimas de um desplazamiento em massa ocorrido em Riosucio, em 1997. A região, conhecida como Baixo rio Atrato, departamento de Chocó, é uma das líderes nacionais em expulsão de moradores. Há uma peculiaridade na área: a grande maioria da população é afrocolombiana. Nos últimos quinze anos, segundo dados do Registro Único de População Desplazada, mais de 250 mil pessoas se evadiram das terras em 50 municípios do Baixo Atrato. O movimento coincidiu com o momento em que essas populações receberam títulos de propriedade como reconhecimento às origens africanas - algo como os quilombolas, no Brasil. Guerrilha e paras disputaram renhidamente esses territórios, passando por cima dos moradores no processo. Ficou célebre no país o caso do líder de uma comunidade da região, Marino López, que foi morto, esquartejado e decapitado, e teve sua cabeça usada como bola de futebol por seus assassinos.
O monumento é mantido por uma organização liderada por mulheres desplazadas, a Associação de Familiares das Vítimas da Violência de Riosucio/Clamores. Oitenta e nove famílias fazem parte, em um total de 536 pessoas. Reunidas em torno do totem de pedra com inscrições que narram o acontecido, elas rezam um Pai Nosso e cantam: "Era um sonho que se fez realidade/ A resignação de seu coração/ Algum dia chegará a redenção".
Josefina Mena Moreno, uma das representantes da Clamores, conta que, em fevereiro de 1997, ela foi obrigada a fugir de sua comunidade pelo rio, em botes. "Nós nos chamamos assim porque clamamos por paz, por reparação integral, porque saímos muito mal saídos. Perdemos nossos bens e familiares." Desde o desplazamiento, essas famílias, que antes dependiam da agricultura de subsistência em suas terras, vieram para a periferia de Turbo e sobrevivem como podem, sem auxílio algum do governo.
O Estado colombiano teria prestado ajuda suficiente a essas pessoas se não tivesse sido o maior responsável por seu desplazamiento. A migração massiva forçada dos habitantes de Riosucio foi o resultado da brutal Operação Genesis do Exército, equivalente em larga escala da Operação Orion, mas na zona rural. Os objetivos: expulsar as Farc da região. E os parceiros na empreitada mais conhecidos ainda: os paramilitares. Durante três dias, as Forças Armadas bombardearam a área, expulsando, de uma só vez, 25 mil pessoas. Três mil delas, entre as quais Josefi na, acabaram em alojamentos precários em Turbo, numa fuga que chegou a durar até um mês pelos rios e montanhas. Nenhum guerrilheiro foi morto.
O convívio duradouro com forças armadas ilegais parece ter impregnado o Estado colombiano das mesmas táticas terroristas conduzidas por elas. Em fevereiro de 2009, isso ficou evidente num escândalo protagonizado pelo Departamento Administrativo de Segurança (DAS), o serviço de inteligência colombiano, que responde diretamente ao presidente Uribe. O caso, deflagrado por reportagem publicada na revista Semana, apontava que o órgão realizou, durante anos, interceptações ilegais de telefone e e-mail e perseguições a críticos do governo - sindicalistas, juízes, defensores de direitos humanos, jornalistas e políticos de oposição.
De acordo com o periódico, numerosas chamadas de um magistrado da Corte Suprema passaram por escutas ilícitas. Nesse caso, o alvo das ações do DAS, que duraram até o fim de agosto de 2009, era o juiz Iván Velásquez, principal investigador da chamada parapolítica, a infiltração do paramilitarismo no alto escalão da política colombiana.
Na contramão das declarações oficiais sobre o fim do paramilitarismo na Colômbia, recentes investigações da Corte Suprema do país identificaram uma estreita colaboração entre membros do Congresso Nacional e grupos paramilitares ainda em atividade. Mais de 80 deputados e senadores, em sua grande maioria partidários de Álvaro Uribe, estão envolvidos, entre investigados e já condenados.
Domingo de manhã, em um bairro nobre de Bogotá a Avenida principal está interditada, tomada por pedestres e ciclistas. Também aqui tirar fotos é prontamente reprimido. O policial nos explica: nenhum agente da força pública pode aparecer em imagens de qualquer tipo. Os guardas privados dos grandes edifícios ao redor parecem se importar menos, e são eles quem carrega as armas mais modernas.
Temos uma entrevista a poucas quadras dali. Não há seguranças, mas somos recebidos por um policial federal na guarita do prédio onde mora nossa fonte. Já me acostumando com a presença ostensiva de agentes mantenedores da ordem, pública ou privada, comento com o policial
- Todos os prédios por aqui têm policiais federais nas guaritas?
O rapaz me corrige:
- Não. É só para ele.
"Ele" é o jornalista Hollman Morris, diretor do programa independente Contravía, que nos recebe em sua casa, numa janela de poucas horas entre viagens. A segurança não é exagero: sob o nome, codificado, Puerto Assis, pasta AZ 2.2. 2004-2005, contendo 159 folhas de informações variadas, está arquivado todo o trabalho de inteligência realizado pelo DAS sobre o jornalista Hollman Felipe Morris Rincón.
Entre as folhas oito e 41, estão seus dados pessoais, informações sobre atividades profissionais e vida privada. Constam do arquivo menções a filhos, pais e companheiros de trabalho. Todas as suas viagens entre janeiro de 2001 e novembro de 2005 estão catalogadas, bem como as ameaças - foram várias, vindas da guerrilha, mas sobretudo dos paras - entre 2000 e 2009. Em uma delas, Morris recebeu uma coroa fúnebre destinada a seu próprio funeral. Na compilação, Hollman é descrito como um "jornalista beligerante, que apresenta o programa Contravía, em que critica as atividades das autoridades".
"Uribe nega a guerra. Incomoda ao governo que a imprensa perceba a verdade", contra ataca.
Morris e o presidente colombiano travam um combate homem a homem há algum tempo. O auge desse confronto se deu em 2005, quando Uribe o acusou publicamente de ser um rebelde das Farc. A acusação veio após Hollman ter chegado ao local onde ocorreria uma libertação de reféns das Farc, o que levou o governo a especular sobre fontes privilegiadas do jornalista junto à guerrilha.
"Existe uma outra Colômbia: indígena, camponesa, afrocolombiana, que é feita de vítimas. Sofro ameaças por dar voz a essas populações", declara Morris.
Redimindo o significado da palavra rebeldia, tão surrada em seu país, o artista Fernando Botero fez uma réplica idêntica do pássaro de bronze explodido em 1995 no Parque San Antonio. Desde 2000, a escultura perfeita está lado a lado com a eviscerada, para quem quiser ver. É uma aula de história colombiana: o passado a poucos metros do presente, anunciando o que será deste se continuar sendo traçado à imagem e semelhança daquele. Mas 50 anos de guerra parecem ser capazes de desencorajar qualquer visionário - se ele não for Botero, e, certamente, Uribe não é.
Ironicamente, olhando para os dois pássaros negros, parece que o que foi vitimado pelos explosivos é mais sólido do que o incólume. Talvez sejam os efeitos da vivência prolongada nesta outra Colômbia, onde a paz não pousa e a violência reina.
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