Novos Baianos de volta. (Da esq.para a dir.) Luiz Galvão, Moraes Moreira, Baby do Brasil, Paulinho Boca de Cantor e Pepeu Gomes - Daryan Dornelles

A Lei Natural dos Encontros

Sem nostalgia, mas com respeito pelo passado, Novos Baianos celebram um novo momento de união na história da banda

Redação Publicado em 12/08/2016, às 14h23 - Atualizado em 11/12/2017, às 17h29

Nada foi programado, tudo aconteceu no ritmo do ‘matrix’ de Deus.” Mística, mas sempre ao seu modo, Baby do Brasil começa a discorrer diante da pergunta mais elementar de uma reportagem sobre o retorno dos Novos Baianos em 2016: por que agora? “Não estávamos nem pensando nisso! Mas, com certeza, foi no momento certo. Recebemos o convite para reinaugurar a Concha Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador, em maio, e foi um sucesso. Aí, a produtora Time for Fun nos propôs uma turnê por São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.”

A resposta chega por e-mail, às 5h01 da manhã. Notívaga, Baby foi a coordenadora da entrevista dos Novos Baianos para a Rolling Stone Brasil. Ligou para dar ideias sobre as fotos, sugeriu que as perguntas fossem enviadas para os cinco integrantes da linha de frente do grupo, colocou um produtor para comandar um FaceTime com a turma reunida, ligou de novo para questionar se a pauta não estava muito política...

Cuidado justificado, já que estamos tratando de um dos grupos mais importantes da história da MPB, com uma trajetória cintilante entre 1969 e 1979. Descontando o show na Virada Cultural paulistana, em 2009, que não contou com Moraes Moreira, a formação não se juntava desde 1998, quando fez as últimas apresentações do CD de reencontro Infinito Circular (1997).

Antes da bem-sucedida turnê Baby Sucessos, que estreou em 2012, a cantora estava totalmente afastada do mundo secular. Agora, parece ter recobrado o gosto pela vida pop. O que não quer dizer que a niteroiense que nos idos de Novos Baianos era conhecida como Baby Consuelo tenha se afastado da Palavra. “Continuo subindo o monte para as vigílias, fazendo jejuns com propósito, orando, em média, uma hora por dia, buscando os frutos do Espírito Santo”, ela afirma. “Recebo convites para pregar, dar testemunho, visito pessoas em hospitais e em outros lugares que me chamam para orar. O que mudou em mim foi a filosofia de vida, que se tornou absolutamente ‘Crística’ e não religiosa. Tem sido muito, muito natural andar em santidade na Babilônia.”

A autodenominada “popstora” reconhece que o show solo que dividiu com o filho Pedro Baby – e que virou DVD – reacendeu algo, ainda que o repertório ali fosse mais focado em sua trajetória longe dos Novos Baianos. “Teve a apresentação no Rock in Rio, em que chamei Pepeu para ser meu convidado especial e isso emocionou a todos. Creio que foi o primeiro passo para tudo entrar em harmonia entre a gente”, diz Baby, em referência ao show no festival, em 2015, com canja de seu ex-marido. “Estamos em ritmo de amor fraternal, nos sentindo em família, um cuidando do outro, todos curtindo muito estarmos juntos novamente e, claro, dando muitas risadas com as experiências que vivemos”, completa.

Por falar em Rock in Rio, Pepeu Gomes não descarta que essa reunião dos Novos Baianos siga de pé até a próxima edição do festival no Brasil, marcada para 2017, e seja vista no evento. “Não acho um sonho impossível, não. Tudo pode acontecer! Temos bagagem e também temos público para encarar um festival desse porte”, confia o guitarrista, que participou de todas as edições nacionais do circo comandado pelo empresário Roberto Medina.

Até lá, o que há de concreto na agenda do grupo são os shows em São Paulo (Citibank Hall, 12 e 13 de agosto), Rio de Janeiro (Metropolitan, 2 e 3 de setembro) e Belo Horizonte (10 de setembro). O repertório traz a íntegra do álbum Acabou Chorare (1972), eleito pela Rolling Stone o maior álbum da música popular brasileira, além de músicas emblemáticas de outros trabalhos, caso de “Dê um Rolê” (lançada em um compacto, em 1971), “Colégio de Aplicação” (do lisérgico álbum de estreia, É Ferro na Boneca, de 1970) e “Na Cadência do Samba” (sucesso de Ataulfo Alves regravado no primeiro disco do grupo sem Moraes Moreira, Vamos pro Mundo, de 1974).

Paulinho Boca de Cantor explica que o clamor para uma volta da trupe nunca cessou. “Desde a semana seguinte em que nos separamos que quase todos os dias de nossa vida as pessoas nos param para perguntar quando nos reuniremos novamente. Claro que novos artistas regravando nossas músicas, a exemplo de Marisa Monte na década de 1990, ajudaram a despertar ainda mais o interesse e fizeram com que o trabalho fosse reavaliado.” O single atual de Pitty, por coincidência, é uma releitura de “Dê um Rolê”, de Moraes e Luiz Galvão, o principal letrista da gangue. Paulinho inclusive destaca o “Eu sou, eu sou, eu sou amor da cabeça aos pés”, de “Dê um Rolê”, como o verso que o Brasil mais precisa escutar neste instante conturbado em que vivemos (“Pois só o amor resolve!”, afirma), muito embora sua passagem predileta da obra dos Novos Baianos seja o “Vou mostrando como sou e vou sendo como posso”, da clássica “Mistério do Planeta”.

Indicado por Baby para dizer qual seria a mensagem política dos Novos Baianos em 2016, Moraes fez questão de voltar até as origens da banda, que saiu da Bahia e desembarcou primeiro em São Paulo, para assim reforçar seu papel de resistência durante o regime militar. “O país estava conflagrado, mergulhado numa linha dura que incluía censura, exílio e tortura”, ele relembra.

“Além das nossas músicas, trazíamos na bagagem o sonho de sermos artistas, embalados pelos tropicalistas e tantos nomes geniais daquela geração. Muitos foram impedidos pela força bruta de continuarem trabalhando aqui, deixando um vazio cultural que precisava ser preenchido. Entendemos que tínhamos a responsabilidade de sustentar aquelas conquistas.”

Ele prossegue: “Neste momento, estamos em outra encruzilhada. E os Novos Baianos estão de volta com a mesma vontade de um Brasil melhor, sempre prontos para não deixar a peteca cair. Queremos cultivar a esperança no coração e na alma do povo brasileiro. Foi isso que fizemos nos anos 1970. Somos tão alegres que os partidos de esquerda jamais nos aceitaram. Os outros partidos achavam que éramos muito loucos. Somos um todo, meu irmão! Você nunca viu os Novos Baianos dizerem ‘Abaixo a ditadura!’ Só que o meu cabelo dizia isso, minha roupa dizia, meu jeito de ser dizia, tudo dizia! Não é do nosso estilo usar palavras de ordem panfletárias, mesmo sabendo que elas têm sua função. Somos mais sutis, mais poetas.” No show da reinauguração da Concha Acústica, em Salvador, o grupo já teve uma grande oportunidade de demonstrar essa sutileza e poesia na forma de tratar as questões atuais da política nacional. Quando parte da plateia começou a gritar “Fora, Temer!”, Moraes calou seu violão e fez silêncio. Com o brado arrefecendo, Baby foi ao microfone e simplesmente anunciou: “Com vocês, Moraes Moreira em ‘Acabou Chorare’”.

Além de não se encaixarem nem em esquerda nem em direita, os Novos Baianos conviviam com outras ambivalências que fundiam a cuca dos caretas naquela época e até hoje seguem despertando curiosidade. Isso se dá tanto no terreno musical, já que eles curtiam Jimi Hendrix ao mesmo tempo que idolatravam o guru João Gilberto e pesquisavam samba e música regional, quanto no comportamental, pois viviam coletivamente, de maneira bastante alternativa, mas mantendo uma Bíblia em casa e jogando futebol sempre que possível. “Realmente, havia essa dualidade”, concorda Moraes Moreira. “Mas nós não éramos maniqueístas. A Bíblia foi importante para despertar a nossa espiritualidade. Éramos apocalípticos. Bastava vermos uma nuvem carregada que achávamos que tudo iria acontecer. A minha ideia é que diante das tensões do mundo atual temos de ser ecumênicos.”

Outro tema fascinante do universo dos Novos Baianos é o convívio em si, especialmente o período no sítio Cantinho do Vovô, localizado em Jacarepaguá, que sucede os meses em que eles dividiram um apartamento de quarto e sala em Botafogo (Rio de Janeiro). “Isso me dá a oportunidade de dizer que Novos Baianos não eram só alegria, tinha lá seus momentos difíceis”, pontua Moreira. “Imagine só tantos malucos morando juntos? Em algum momento, iriam aparecer os questionamentos. A época da minha saída, em 1974, foi um desses momentos tensos. Para mim, foi bastante sofrido, mas tinha chegado a minha hora de partir para a vida, solitariamente, para cuidar dos meus novos baianinhos Davi e Ciça [Davi Moraes e Maria Cecília, fi lhos de Moreira], pois era impossível com as condições que tínhamos no Cantinho do Vovô.”

Pepeu Gomes, que também procriou – com Baby – nesse lar comunitário e resistiu até o fim, fala com mais carinho da vivência. Mas é reticente na hora de cravar se recomendaria o mesmo a um filho. “Foi uma experiência única e verdadeira, em que dividíamos dos acordes à comida. A solidariedade imperava em nossos corações e precisamos muito dessa vibe hoje no mundo. Já recomendar o estilo de vida dos Novos Baianos para qualquer pessoa é mais delicado. Eu converso com meus filhos e alguns falam que gostariam de ter vivido naquele tempo, do modo como vivíamos. Só que a vida era muito dura pra gente. Imagino que nem todos conseguiriam segurar a barra que enfrentamos. Tanto que houve pessoas que foram morar no sítio e não seguraram a onda.”

Uma das histórias mais célebres do grupo é a de que as economias ficavam todas em um saco pendurado atrás da porta de um dos quartos. Quem precisava de grana para comprar algo, pegava o suficiente ali e resolvia seu problema. Baby joga seu olhar para esse lugar ao analisar o legado dos Novos Baianos. “O que nos manteve juntos em meio à ditadura, encarando todas as dificuldades, foi o fato de não colocarmos o dinheiro como objetivo principal. Se tivéssemos nos condicionado ao estilo do mundo, jamais teríamos feito essa obra. Ela nasceu do amor. Um amor incondicional, que multiplicava comida, as provisões de que necessitávamos. Tudo em clima de festa, sem mágoas, sem rancor, só o amor por realizar um sonho.”

Nos idos dos anos 1970, havia macetes para a lógica hippie dos Novos Baianos dar certo. Baby conta que o saco de dinheiro ficava no quarto de Paulinho, que era casado com Marilinha – ela não fazia parte da banda, mas estava sempre por ali, ciente da movimentação no banco improvisado. “Todos eram pais e mães de todos. O nosso modelo era o modelo de uma família normal, só que sem repressão”, relembra a cantora. “Todo mundo se respeitava, tinha princípios, colocava em prática o que tinha aprendido com os pais. A gente botava a mesa para comer, valorizava uma boa farinha, a goiabada, os doces de carambola. Pepeu e Dadi [baixista da banda A Cor do Som, que acompanhava os Novos Baianos] competiam para ver quem fazia o bolo mais gostoso. Não tinha drogas pesadas, ninguém ficava de porre. Cuidávamos muito um do outro para não sermos presos, numa realidade totalmente paralela ao que acontecia no Brasil.”

“Vivíamos em estado de ‘sítio’”, brinca Moreira. “A gente exercitava a nossa liberdade, o nosso amor, a nossa convivência e ia aprimorando a nossa existência. Era uma experiência, cara!”, exclama, reconhecendo que essa faceta, documentada no média-metragem – que pode ser assistido no YouTube – Novos Baianos Futebol Clube (1973), de Solano Ribeiro, tem ajudado a propagar o grupo no imaginário da nova geração, especialmente a que deseja uma sociedade mais igualitária, solidária e harmoniosa. “A gente alimenta o sonho! A gente só acredita em quem chora e sonha, em quem ainda pode ter uma utopia na vida. Novos Baianos é e sempre vai ser essa vontade de acender a chama. Isso atrai a juventude. Eles pensam: ‘Tem um horizonte bom aí pra gente ir. Vamos nessa!’”

Mesmo entendendo esse fascínio, Moreira se diz impressionado com a permanência do conjunto que ajudou a criar no final da década de 1960. Especialmente porque o respaldo crítico nem sempre foi tão gentil com eles. “A intelligentsia brasileira nunca considerou Novos Baianos um movimento. Mas eu acho que era e isso vem sendo provado a cada dia que passa”, opina o músico. “Era um movimento em movimento. Não um movimento que aconteceu e ficou lá, parado no tempo. Nós tínhamos o lado da poesia e o lado comportamental. Éramos uma família e ainda somos unidos por

ideias e ideais.”

A opinião de uma parte sem visão da crítica não importava – e uma passagem registrada no documentário Os Doces Bárbaros (1976), de Jom Tob Azulay, atesta que mesmo sem o distanciamento do tempo a força dos Novos Baianos era inequívoca. Trata-se de um momento em que o tropicalismo, grande escola de Moraes, Pepeu, Baby e companhia, assume-se influenciado por Novos Baianos. Após uma apresentação de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia, que formaram o grupo Doces Bárbaros ao completarem dez anos de suas carreiras individuais, Baby e Paulinho são recebidos por Caetano no camarim. Em um clima de descontração –ele chega a acomodar Paulinho em seu colo por um instante –, Caetano solta: “Eu disse a Baby que os Doces Bárbaros eram uma imitação dos Novos Baianos e ela respondeu: ‘Mas eu não pensei que vocês chegassem a tanto!’” A gargalhada é geral, e Baby completa: “Não nos mínimos detalhes!”

A história diverte Baby até hoje e a faz refletir sobre a atração que as pessoas sentem pelo que eles empreenderam há mais de 40 anos. “A gente era símbolo de pessoas irmanadas, de simbiose, de algo que nada pode derrubar. O encontro dos Doces Bárbaros, ainda mais com aquele nome, tinha muito disso também. Era Novos Baianos na essência.” E conclui: “Pena que naquela época não tinha um empresário que entendesse o que era um supergrupo. Pagamos um preço por isso. Não tínhamos os carros que os outros artistas tinham, os jantares ofertados pelas gravadoras. Mas criamos uma vida e hoje podemos colher dela. Estávamos à frente daquele tempo. Não tinha um grupo em qualquer lugar do mundo com as características do nosso. Hoje, quando um garoto descobre Novos Baianos, é tanto som diferente para ouvir, tanta história, que é como encontrar

um pé de manga no agreste [risos]”.

Célebre Obra-Prima

Acabou Chorare, de 1972, foi eleito pela Rolling Stone o maior disco da música brasileira

Em outubro de 2007, a Rolling Stone Brasil reuniu 60 especialistas e formadores de opinião para organizar a lista dos 100 maiores discos da música brasileira. O grande vencedor foi um trabalho que já tinha aparecido em décimo lugar ali, em segundo acolá, mas ainda não havia figurado no lugar mais alto de um pódio de respeito: Acabou Chorare. Como aponta o texto publicado na edição 13 da revista, do jornalista e produtor Marcus Preto, o mítico LP de dez faixas, editado pela Som Livre em 1972, nasceu do choque entre o grupo e João Gilberto, que sempre simpatizou com os cabeludos. “Brasil Pandeiro”, por exemplo, o samba de Assis Valente que abre o álbum, foi apresentado à patota pelo gênio da bossa nova. Já a letra da faixa-título é baseada em um relato de uma história de João com a filha Bebel que Luiz Galvão ouviu pelo telefone. “O ‘carneirinho presente na boca, acordando toda a gente, tão suavemente’ é o João mostrando para os Novos Baianos a verdadeira música brasileira”, afirma Galvão.

Sobre Acabou Chorare ser melhor apreciado hoje do que no passado, Paulinho Boca de Cantor tem uma tese. “Tivemos sucesso nos anos 1970, mas a caretice e o medo da repressão faziam com que as pessoas se afastassem da gente. Nosso modo de vida anarquista e libertário assustava demais. Era muita loucura! Então, a mídia relutava em nos dar o devido valor.” O álbum foi reeditado em vinil pela Polysom em 2014. Outras obras cultuadas do conjunto, caso de Novos Baianos F.C. (1973), devem voltar ao formato em breve.

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