A casa do festival Demosul
Mateus Potumati Publicado em 14/08/2007, às 11h21 - Atualizado em 02/09/2007, às 22h22
Em 1979, Gal Costa fez um show em Londrina (região norte do Paraná). Reza a lenda que, após a apresentação, um jornalista quis saber o que a cantora achou da cidade. Ela teria dito, com sua languidez de menina baiana, que Londrina era uma "fazenda iluminada". A declaração melindrou alguns dos locais. Ainda que a cantora qualificasse como "iluminada", estava limitando à condição de "fazenda" uma cidade que arriscava, com o brio acanhado do interior, os primeiros passos de seu projeto cosmopolita. Para uma cidade que começava a se achar grande, uma declaração como essa foi um choque indesejado de autoconsciência.
Quase 30 anos depois, muita água rolou. Londrina é hoje a terceira maior cidade do sul do país (quase 800 mil habitantes na região metropolitana), tem taxas de desenvolvimento elevadas (analfabetismo a 6,42%, IDH a 0,824 etc.) e festivais de primeira linha nas áreas de teatro, música, dança, cinema e circo. Conta com uma população jovem, imensa e renovada anualmente por gente de todo o Brasil, que chega para estudar em uma de suas 11 universidades. Só a UEL, a maior delas, responde por 18 mil desses estudantes. Com a natureza a favor, as entranhas da terra vermelha pariram uma nova geração de "iluminados".
A nova safra de produtores e roqueiros londrinenses não só não dá a mínima para referências pejorativas à sua condição interiorana, como aprendeu a usá-la em seu favor. Chamando a si próprios de "caipiras brutos", estão transformando a cidade em um dos focos do novo cenário independente brasileiro. Não que a idéia de encarar a caipirice como projeto estético seja nova. Antes da famosa declaração de Gal Costa, um coletivo de artistas - incluindo Domingos Pellegrini, Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção - já explorava idéias parecidas. O auge dessa geração foi o espetáculo Na Boca do Bode, em 1973. Com concepção avançada, o show deixou claro que existia uma produção relevante na cidade. Anos depois, porém, o núcleo duro do movimento se dispersou.
O caminho recente da escalada caipira-bruta vem sendo trilhado desde 1997. A partir daquele ano, o trabalho da extinta produtora Madame X inseriu a cidade em um circuito restrito de shows internacionais, que incluiu Buzzcocks, Fugazi e Superchunk. Os shows formaram público, além de abrir algum espaço a bandas locais, que aumentou a partir de 2001, com a criação da Braço Direito Produções e do Festival DemoSul, o qual em seis anos saltou de uma estrutura confusa para a condição de maior evento do rock independente no interior do país (feito fora de uma capital). Na última edição, em novembro, se apresentaram 25 bandas de todo o país (mais uma da Argentina), lista que incluiu nomes como Superguidis, Macaco Bong, Grenade, Ambervisions, Bidê ou Balde, Junkie Bozo, Rogério Skylab e Forgotten Boys.
Mas a enxada caipira-bruta não abriria tantas picadas no perobal sem um fator. O investimento público na área de cultura em Londrina aumentou sensivelmente com a atual administração, a partir de 2001 - não por coincidência, ano em que o DemoSul surgiu. "Antes de 2001, a cidade só tinha o FILO (Festival Internacional de Teatro de Londrina), o Festival de Música e a Escola de Dança. Com o aumento dos recursos, várias expressões culturais se consolidaram", diz Waldir Grandini, coordenador da Incubadora de Projetos da Secretaria de Cultura. Em 2006, o Promic (Programa Municipal de Incentivo à Cultura) destinou R$ 1 milhão para o financiamento de produtores independentes. Dessa quantia, R$ 60 mil foram destinados ao festival. Quantias irrisórias se comparadas a editais federais ou ao orçamento de qualquer festival grande no país, mas que fazem a diferença em uma cidade onde se virar sem dinheiro é um estilo de vida.
No caso do DemoSul, há ainda outro fator: o núcleo de produção do festival é todo da Vila Nova, área rica em fãs do Ramones mas modesta em termos de renda. São pessoas que dificilmente produziriam cultura sem financiamento externo. O fenômeno DemoSul não deixa de ser um exemplo de mobilidade social, como atesta o produtor do evento, Marcelo Domingues: "Sem o apoio do Promic, o festival não aconteceria como acontece hoje".
Além do dinheiro, o que faz diferença é o acompanhamento aos projetos. "As autoridades da cidade estão começando a entender que o DemoSul não é apenas um 'show de rock', mas um pólo de criação, de intercâmbio e até de movimentação financeira", explica Waldir Grandini. O reconhecimento do sucesso do festival se traduziu em números, também: o orçamento do projeto quintuplicou em seis anos. "O papel do DemoSul é fundamental para a criação de uma 'economia solidária da música', que está aos poucos construindo um mercado paralelo, com outra lógica."
Apesar da realidade quase febril, em que o rock foi adotado pelo governo, ainda há problemas a serem superados. A legislação do Promic tem falhas que deixam os produtores de cabelos em pé. Sem contar o desgaste inerente à política, toda vez em que ela se incorpora ao "jogo". Do ponto de vista da conexão, o rock caipira-bruto ainda precisa dialogar com o Brasil. O principal passo, os londrinenses já deram: manter um número razoável de bandas, ter bons estúdios e um festival que garante uma articulação com o resto do país. Como dizia Arrigo Barnabé, já basta para superar a condição de "engrenagens tão sombrias, esquecidas pelos deuses".
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