Mano Brown - RUI MENDES

Eminência Parda

Mano Brown se diz mudado, apesar de também afirmar que continua o mesmo. Entre a família, o rap, os amigos e os negócios, um dos artistas mais importantes dos nossos dias quer deixar de ser um refém da imagem que ele mesmo ajudou a disseminar

Por André Caramante Publicado em 11/01/2010, às 10h31

"Ô zica, a fita é a seguinte: entra na praça à direita, depois pega a primeira à esquerda e, por último, à direita de novo. Tem de fazer um 'Z'. Vamos decidir a parada hoje. Qualquer coisa, me liga." O roteiro chega pelo celular. É noite abafada, começo de novembro, quando deixo a porta da Escola de Samba Pérola Negra, na Vila Madalena, em São Paulo, reduto contemporâneo da boemia paulistana, rumo a um bairro vizinho. Da outra ponta da linha chega mais uma senha: "É pique rua de periferia, tem casinhas humildes". Nos quase dez minutos para percorrer as ruas da área oeste de São Paulo, um flashback: a conversa cara a cara prestes a começar, na verdade, era o desfecho de um debate iniciado três anos antes.

Confira o VÍDEO com os bastidores das fotos de capa com Mano Brown.

Ao apontar na "rua estilo periferia", encravada no bairro classe média, ninguém à espera. Chamo ao telefone e, em segundos, percebo pelo retrovisor surgir alguém vestido com uma camisa Adidas vermelha da seleção da Turquia, nº 17 às costas, calça jeans e tênis Nike. Sorrisão na cara, cabelo raspado, com um risco à la Mike Tyson, o homem pardo à porta é Pedro Paulo Soares Pereira, um dos mais intrigantes e importantes artistas da música brasileira ao longo das últimas duas décadas, dono de versos cujos ecos estão impregnados em todo o Brasil. O aperto de mãos é acompanhado do cumprimento com origem no candomblé, ombro a ombro. Pedro Paulo convida para entrar na casa dos seus amigos, onde ouve um som.

A voz de Jorge, então somente Ben, domina o ambiente. Vem de um computador. Ele canta "Lorraine" acompanhado de Tim Maia na gravação de um show em 1981. Pedro Paulo vibra, mas os acompanha discretamente. "Os dois são referências pra mim", reverencia. Ele teve o sonho, mas não conseguiu gravar com Tim. Nem com Wilson Simonal, outro ídolo. Mas tem orgulho de já ter dividido o palco com Jorge. Quando a música para, rompo o breve silêncio para perguntar se ele está mesmo decidido a falar e a finalmente aparecer sozinho na capa da Rolling Stone. "É a hora! Tenho coisas para falar. Querem me ouvir, vou falar."

Pedro Paulo se tornará quarentão em abril próximo. "Estou virando um tiozinho, mano." Antes de bater nos quatro ponto zero, ele surpreenderá novamente quem o escuta desde 1988, quando tinha 18 anos e entrou nos ouvidos de muitos brasileiros - por amor ou por ódio - com suas rimas. Pedro Paulo é Mano Brown, a mais importante, influente e respeitada personalidade do rap brasileiro, o piloto dos Racionais MC's, uma das vozes das periferias do país - posição rejeitada por ele, mesmo depois de ter guiado o único grupo nacional de rap capaz de vender 1,5 milhão de discos oficialmente no Brasil até hoje (sem contar outros cerca de quatro milhões na conta da pirataria). Mas aquele Mano Brown conhecido pelo Brasil "estava condenado a virar estátua, sem utilidade", como ele mesmo diz, na sua autodefinição.

"O Racionais parece ter uma cartilha a seguir e não fomos nós que a escrevemos. Foi a opinião pública. Somos reféns das palavras, mas não posso ser refém de nada, nem do rap. Vamos quebrar. Aquele Mano Brown virou sistema viciado, uma estátua óbvia demais. Pergunta tal coisa que ele vai responder tal coisa. Eu estava mapeado e rastreado", constata. Para registrar parte desta nova fase, foram quatro encontros e cerca de 15 horas de conversas mantidas ao longo de 11 dias do mês de novembro último, incluindo uma sessão de fotos - colada em uma outra sessão para ouvir algumas das novas músicas, ainda inéditas. Neste bonde estão o músico com formação clássica e compositor William Magalhães, filho do lendário Oberdan Magalhães, alma da fábrica de samba-soul-funk Banda Black Rio, e o rapper Marcos Dias Carneiro, o Dom Pixote, a quem Brown vez ou outra chama de Fiote. Antes de ter sido assassinado em alguma rua da Babilônia paulistana, o irmão mais velho de Dom Pixote o ensinou a ouvir Racionais. Para Brown, o talento de Pixote no rap é a vingança do irmão de sangue.

Cinco dias após o encontro no lado oeste, Mano Brown chega à casa da veterana fotógrafa inglesa naturalizada brasileira Maureen Bisilliat, no coração dos Jardins, bairro elitizado paulistano. Está a bordo de um Audi A3 preto. No bolso, uma onipresente escova de dentes.

Ele e a dona da casa se admiram. "Ela tem uma mente mil grau", diz. Sempre quando atraca por lá, faz questão de já saltar do carro e ir direto apertar as mãos dos trabalhadores da rua, os manobristas, os seguranças, os porteiros. "Gente que serve os bacanas" e gosta de sua música e de seu jeito.

Na cadeira de balanço da sala repleta de fotografias e peças de arte do Xingu, o rapper tenta organizar os pensamentos, milhares e difusos. "Tenho tanta coisa para falar, meu Deus do céu." Está de regata branca, tatuagens à mostra. Do antebraço esquerdo salta um mapa do continente africano. Do braço direito, uma cruz onde se lê "Provérbios 15-16-17". Ele já foi do candomblé e frequentou igrejas evangélicas. Hoje, diz não ter mais credo. Levanta, vai até o cinzeiro, apaga o cigarro. "Sou contra a religião. Porque virou empresa. Deus está nas pequenas coisas." A cruz na pele é a mesma estampada na capa do disco Sobrevivendo no Inferno, marco de 1998.

Tento uma pequena provocação, invertendo uma ordem jornalística, e peço para Brown começar a falar. Ele retruca sutilmente: "Não, cara. Você tem que perguntar. Sair falando assim é foda. Posso até sair falando, mas tem que ser interessante, né?" E emenda que, em 80% do tempo, não há separação entre o cidadão, o ídolo Mano Brown e o pai de família Pedro Paulo, marido de Eliane e pai de Jorge, 14 anos, e de Domênica, 10 anos, batizados em homenagem declarada a Ben (ele já teve um time de futebol chamado Charles 45). "Mas, em 20% do tempo, separo. Senão fica todo mundo louco, nem eu aguento. É uma situação em que tenho de usar a inteligência. Não dá para ser politizado sempre, músico sempre, engajado sempre. Também tenho meu momento de ser simplesmente um ser humano, gostar do que todo mundo gosta, fazer parte. Tento ser companheiro e ter companhias mesmo sendo o Brown. É difícil ser companhia de um cara que nem eu, deste nome, 'Mano Brown'."

Antes de explicar a tal dificuldade, Brown já está com outro cigarro entre os dedos, tragadas fortes, fumaça para o alto, testa franzida, sobrancelhas em itálico. "Porque gera expectativa de várias coisas. Nem todo mundo que está comigo tem que estar engajado nessas minhas ideias, nessa vida que tenho. As pessoas também são livres. Daí eu prefiro andar com pessoas comuns, que pensam o que eu penso, mas não vivem diretamente das coisas que eu falo e canto. Pessoas comuns, que entendem e têm uma forma mais equilibrada de enxergar a vida. Há predisposição do rapper em ser contestador e nem sempre as pessoas que estão ao meu redor são assim, e eu preciso delas ao meu lado para me dar essa noção do que é o povo e do que eu queria que fosse o povo também."

Ao lado - e não à frente - é onde ele muitas vezes gostaria de estar. Há dias em que Brown deseja ser simplesmente um vagão qualquer do trem que não a locomotiva. "Eu queria ser mais um. Mais uma roda, não o propormaquinista. Não dá para nascer Bob Marley todo dia, não dá para nascer Tupac ou Lula todo dia."

Por isso, hoje, diz que seu rap não tem mais de ser conselheiro de ninguém, e sim companheiro. Os anos de guerrilha - e já se vão 21 desde a estreia em disco, Holocausto Urbano - forjaram o guerreiro de versos duros que hoje busca outras formas de cantar a mesma realidade dos bairros pobres das grandes cidades.

"Não vou mais traçar retrato de lugar nenhum para ninguém. Muito menos para os ricos. Eu não vou mais mapear minha quebrada para os caras. Não vou lavar roupa suja para eles ouvirem."

O tempo passou e o Mano Brown de hoje é bem diferente daquele que ainda habita o imaginário brasileiro. "Eu ouvia pouco. Falava muito e ouvia pouco.Hoje, eu continuo falando muito, mas eu ouço muito também. Isso interfere nas músicas, não tem como negar", constata.

Para ouvir, Brown teve de se aproximar das pessoas ao seu redor, e não no sentido físico. "Antes, os caras faziam festa, todo mundo feliz, só cerveja, e eu na água, caretão, trouxão no meio dos caras. Todo mundo lá e eu só sentado, vendo os problemas sociais da festa. Meus amigos felizes pra caramba e eu: 'É, mano, o segurança lá... [fecha a cara para simular estar nervoso]'. Vi que estava isolado, vivia numa bolha social."

Sem querer passar fórmulas de como fazer rap ou lições de vida, diz: "A gente é o que a gente come, bebe, respira e convive, irmão. Você vai se ilhar em uma filosofia que só pertence a você? Inteligência é estar no convívio, participando, interagindo. Não é se isolar. Essa empáfi a de achar que sabe tudo e os outros não sabem nada passou a me irritar. No rap, isso me irrita".

Ele reconhece a evolução que ainda busca para o seu rap no funk feito ao estilo carioca, com suas batidas cruas e definidoras de uma identidade tribal. Sabe que funk e rap podem formar grande parceria. "Gosto [do funk] porque sou contra esses preconceitos furados de achar que música arrasta [corrompe] alguém. Arrasta quem já é predisposto a ser arrastado."

Para escrever o próximo capítulo da história da sua música, nestes sete anos sem disco inédito dos Racionais, Brown esteve na França, na Inglaterra, em Portugal e, no seu rasante mais importante, na "república dos loucos", como define Christiania, bairro dinamarquês hippie de Copenhague. O lugar mereceu versos para um rap ainda inédito apresentado na nossa conversa e que acabou perdido no computador de algum amigo. A batida, "num estilo mais Los Angeles" - que é onde Brown quer chegar quando produz suas novas bases - foi feita numa espécie de oficina de rap, ao lado de franceses, norte-americanos e colombianos. "Quero que minha música tenha a mesma pegada da música feita pelo George Clinton."

Outros setores da vida de Mano Brown andam na velocidade da luz. Hoje, além da música, sempre o tema que mais o atrai e o deixa solto ("Me perguntam pouco sobre música", diz durante o ensaio fotográfico, enquanto dança um ou outro sucesso do rap norte-americano, uma inusitada exceção já que gosta mesmo é de música antiga), Brown divide seu tempo entre muitas reuniões. É raro o dia em que não rasga as ruas de São Paulo no A3 para sentar à mesa e ouvir propostas de parceria em algum negócio - situação inexistente no passado. Ele afirma sempre fazê-lo pensando no rap, em progresso para a música. "Precisamos evoluir nesse nosso movimento de música."

Mas ele não quer pouco. Não se diz simplesmente aberto para negócios. "Aberto não é o termo", explica, rindo forte. Ainda é jogo duro. "Vamos colocar uma explicação para isso: tudo que for para um benefício coletivo, um progresso autossustentável, estou aí para ouvir. Nada que seja escravagista, nada que seja paternalista do rico para o pobre. Quero que o barato venha, que a gente consiga organizar e que funcione por muito tempo. Esse é o termo do momento, mundial: sustentabilidade", diz, com um sorriso ainda mais forte, para depois contar o desejo de uma indústria de música negra forte no Brasil. "Tenho o sonho de ter tipo uma Motown [hoje os Racionais são donos da gravadora Cosa Nostra]." E, se a Globo voltar a convidá-los para um programa de TV, como já fez no passado, diz, haverá votação instantânea entre os integrantes do que ele chama de "família" - músicos, produtores e amigos que acompanham as ideias de Brown.

Por essas e outras, Brown é chamado de "presidente" pelos parceiros de som que o acompanham no que ele chama de movimento que, com a devida propor novo CD da Banda Black Rio com lançamento previsto

ainda para este ano, ele investiu dinheiro do próprio bolso. Ao lado de William Magalhães, a quem chama de Monstro e que considera outra referência musical, ele colocará nas ruas o álbum Supernova Funk Samba, um caldeirão sonoro negroide. Será duplo, com 33 faixas e participações que incluem Gilberto Gil, Chico César, Seu Jorge, Elza Soares, César Camargo Mariano, Márcio Local e Mariana de Moraes, neta de Vinicius de Moraes, todos convidados de acordo com o gosto musical de William. Também estarão no disco o próprio Brown, Ice Blue (parceiro na vida e nos Racionais), Dom Pixote, o rapper Dubronk's e também o produtor Devasto. "Jovens muito talentosos no rap", avaliza o presidente.

Algumas das músicas do disco já têm causado divergências entre os ouvintes de Brown e até entre seus parentes. "Mulher Elétrica", há tempos disponível na internet, é o saco de pancadas da vez. Nasceu quando ele ouvia discos antigos no bar de um amigo e se deparou com a versão de "Electric Lady", da banda Con Funk Shun. Como não fala inglês, muitas das músicas que cria nascem depois de ele pegar uma versão original no idioma estrangeiro e encaixar rimas em português.

Ao consultar o filho, Jorginho, por entender que o gosto musical do menino reflete o dos jovens de hoje, Brown foi voto vencido ao dizer que estava na dúvida entre gravar um videoclipe de "Mulher Elétrica", sua primeira opção, ou "Mente do Vilão", outra das suas no novo CD da Black Rio, que sairá pela Cosa Nostra. O filho ainda prefere o estilo mais gangsta de o pai cantar. "Fiz um som diferente hoje, mas ainda é o gueto, nunca deixará de ser", argumenta. Mas ele não está desamparado dentro de casa. Dodô (Domênica) apóia a ode às mulheres. Brown também gosta de mostrar seus novos sons para os jovens dos becos da Zona Sulantes de lançá-los. Ele respeita a opinião deles e, não raramente, ouve muitas críticas às músicas.

Para ele, trabalhar com William Magalhães foi como estar ao lado de um de seus ídolos internacionais, Barry White, cujo som "Just the Way You Are" o faz tremer: "É muito antiga. Quando toca, vejo lá no fundo do baú da vida, eu estava lá não sei onde, sinto saudade das pessoas. É por isso que gosto dessas músicas. Sinto até o cheiro do café da época, mano, o cheiro da comida''.

O rapper Tupac Amaru Shakur, morto a tiros em setembro de 1996 em Las Vegas, ainda é a referência maior. "Thugz Mansion", do próprio, é o melhor rap internacional para Brown, que na maior parte do tempo ouve "muita música velha", como diz. "Pra Mãe", de Nill no álbum Longa Estrada Caminhada, foi o rap em português que mais o marcou até hoje. Ao ver a mãe, dona Ana, enquanto estava hospedado em Salvador, à espera de mais uma apresentação, Brown conta que chorou durante meia hora refl etindo os versos de Nill. "Comecei a pensar coisas muito profundas e que não dizem respeito à maioria."

Quando não está com os Racionais nem fazendo música nova, Brown dedica tempo a outra ação para chacoalhar o rap: o coletivo Big Ben Bang Johnson. "É uma explosão musical bem louca, tem a ver com o Ben Jor e também com o ex-corredor Ben Johnson", explica.

O Big Ben, um nome que Brown sonhou soar como o de uma banda funk dos anos 70, é a soma de vários nomes do rap paulistano que, a princípio, foram reunidos por Brown para cantar apenas músicas inéditas. Mas ele foi voto vencido. Não tem integrantes fixos nem repertório definidos. É mutante. Muda como um time de futebol e reúne principalmente os rappers que têm o respeito do próprio público dos Racionais, entre eles Helião, Sandrão, DJ Cia (RZO), DJ Lá, Cobra e Cachorrão (Conexão do Morro), Aplik e Wdee (Consciência Humana), Ice Blue, Dom Pixote e Du Bronks.

Nesse período de gestação do novo disco dos Racionais, assim como Brown e Blue levam à frente o Big Bang, KL Jay e Edy Rock também fazem apresentações com outros artistas do rap nacional, principalmente com o grupo A Família, de Campinas, e com rappers da nova geração, como Thig e Sombra.

Muitas das músicas do novo disco dos Racionais, provavelmente metade delas compostas por Brown e a outra metade por Edy Rock, mas sempre com várias participações, são mostradas entre os quatro integrantes do grupo quando eles estão em quartos de hotéis, entre um show e outro, segundo o DJ KL Jay. "Queremos que as músicas deste nosso novo disco fiquem pelo menos uns dez anos na cabeça das pessoas. Por isso estamos nos preparando bastante para quando entrarmos no estúdio no começo de 2010", projeta o DJ. Das novas, "Se Tá na Chuva" é conhecida desde outubro de 2006. Quando há álbum novo na rua, os Racionais fazem de quatro a seis apresentações por final de semana em todo o país.

Segundo Rosemeire de Jesus, empresária do grupo, com disco novo ela recebe em média 50 ligações por dia para possíveis apresentações e, não raramente, de pedidos inimagináveis para outros artistas da música brasileira. "Tem muita gente que liga até mesmo para pedir ajuda financeira", ela conta. No time de maiores de todos os tempos escalado por Brown estão, além de Barry White e Tupac, Marvin Gaye (cujo álbum Here, My Dear, de 1978, um presente de Zegon, a metade brasileira do grupo N.A.S.A., não sai do som do seu carro), The Bar- Kays, Earth, Wind & Fire, George Clinton e, com a camisa 10, James Brown. "Quando tiver uma casa grande lá no Jardim Apurá [bairro na Zona Sul de São Paulo, meio mato, meio urbanizado], quero ter caixas de som em todos os lugares para quando for receber meus amigos. Caixas embutidas até nos muros. Quando acordar, quero só apertar o play e viajar", diz. E qual será a primeira música nesse empreendimento? Sugiro "Make It Funky", de James Brown. "Essa é bruta!", devolve.

As novas ideias de Brown têm bastante influência do primo, Paulo Eduardo Salvador, também 39 anos, o Ice Blue, o mais empresarial dos quatro Racionais. Foi com Blue que Brown começou. Eram a dupla B.B.Boys (Black Bad Boys). Inspirados nos norte-americanos do Run DMC, mudaram para começar os Racionais MC's, com Kléber Geraldo Lélis Simões, o DJ KL Jay, "o mais sério dos quatro", nas palavras de Brown, e Edvaldo Pereira Nunes, o Edy Rock, "Coquinho" para Brown, "maloqueirão que nem eu". Foi Milton Sales, o primeiro produtor e empresário dos Racionais, um segundo pai de Brown, segundo o próprio rapper, quem os juntou.

"Sempre digo ao Brown: 'Temos de parar para ouvir quem quer que seja, mesmo que amanhã a gente vá falar não. Foi assim quando assinamos contrato com a Sony para distribuir um disco nosso. Não deu certo, já era. Cada um para o seu canto", conta Ice Blue. Ele afirma que o mais difícil sempre é conseguir transitar entre os extremos sociais, atravessar a ponte e sempre ser da mesma maneira, sem mudar a identidade, ser o mesmo homem.

A ponte, no caso, é ao mesmo tempo, símbolo de uma segregação socioeconômica tão criticada pelos Racionais desde 1988 - e que só depois de muitos anos passou a ser enxergada por Blue pelos dois lados - e elo entre esses mesmos opostos da cidade, os mais e os menos abastados.

Ele diz que, agora, a primeira intenção é não falar do monstro sem conhecê-lo. "A gente tem que dar oportunidade para um novo momento. Somos gravadora independente. O jeito de distribuir a música agora é diferente, é por meio do marketing. E vai ser por de um telefone se uma marca pagar. Hoje, a pirataria e a internet são incontroláveis. Sou a favor de colocar o novo disco dos Racionais de graça na internet e o fã paga quanto quiser", diz Ice Blue, enquanto se prepara para ir ao QG de William Magalhães, onde ouviríamos algumas músicas novas de Brown e seus aliados.

Esse novo momento dentro dos Racionais teve, claro, espaço para polêmica. No ano passado, Mano Brown e Ice Blue aceitaram uma encomenda da Nike e encabeçaram a produção de um disco disponibilizado para download gratuito no site da empresa. "Eles querem que eu faça uma ponte com a juventude para aliar esporte, música e a marca", conta Brown.

O disco O Jogo É Hoje, com 11 faixas cantadas por duplas de novos talentos do rap nacional selecionadas por Brown, rendeu o que ele diz ser, sem revelar quanto, "um bom dinheiro para os padrões do rap". E faz questão de afirmar ter investido boa parte na indústria do rap.

A porção dos "novos tempos" que mais interessa aos ouvintes - a música - deve chegar no primeiro semestre de 2010. Se depender de Brown, o trabalho inédito dos Racionais sai antes da Copa do Mundo na África do Sul. Ele gosta de imaginar que o público dos Racionais e até alguns dos jogadores da seleção brasileira possam se inspirar no seu som ainda antes da disputa do mundial de futebol. E não é um mero devaneio do fanático torcedor do Santos. "O Bob Marley também era santista, mano", gosta de lembrar.

Muitos jogadores de futebol, a maior parte originária de famílias humildes, gostam dos Racionais. Kleber, lateral esquerdo do Internacional e que disputa vaga na seleção para ir à Copa, contou recentemente para Brown (os dois se conhecem desde os tempos em que ele jogou no Santos) que a faixa-título do álbum promocional (cantada por Dom Pixote e Ice Blue) deixou os jogadores do time gaúcho extasiados momentos antes de um clássico contra o rival, Grêmio. "Os caras do Inter ficaram em choque com o som. Eles entraram com tudo, cheios de garra", diz o artista, orgulhoso.

Em março deste ano, Ronaldinho Gaúcho contratou os Racionais para um show na sua festa de aniversário em uma fazenda na região de Porto Alegre. "Ele viu a gente e falou: 'Não acredito!' E nós também: 'Não acredito!' Maior barato. Ele curte mesmo. Ele sabe que o tempo [aqui no Brasil] é curto. Então, curte intensamente porque sabe que vai ficar lá [fora do país] um ano sem ver ninguém. É louco você ver o cara empolgadão com a sua pessoa ali, sem nem saber o que fazer para agradar", conta Brown. "Negro Drama" (do disco Nada Como um Dia Após o Outro Dia, de 2002) está na tracklist do site oficial do jogador do Milan e também foi a música escolhida por Ronaldo Fenômeno para comemorar três gols marcados em 8 de julho deste ano. Teria sido uma jogada mercadológica do patrocinador e seu atleta símbolo? "Será? Pode ser", desdenha Brown.

O atacante Robinho, hoje no inglês Manchester City, "melhor nos últimos tempos", nas palavras de Brown, também o respeita. "O Robinho me ligou no Natal", conta. Brown foi um dos convidados para a festa de casamento do atacante da seleção.

Enquanto devora, entre goles de refrigerante, dois ou três lanches preparados pela nossa anfitriã, Brown diz gostar de jogar videogame com o filho, "sempre com o Santos", e também que o menino, um ótimo dançarino de hip-hop, nas palavras do pai coruja, aprende muito sobre músicas antigas quando joga Grand Theft Auto e sintoniza a rádio virtual "Los Santos". Ele folheia brevemente o novo livro da dona da casa, onde vê retratos de Cartola e fica impressionado ao vê-lo sem óculos escuros.

Mano Brown é um profundo conhecedor do soul, do funk e da disco music dos anos 60 e 70. "Eu o comparo com um Obelix, mas ele caiu num caldeirão de sabedoria musical", diz William Magalhães. E, nessa, até o Rei foi captado pelo radar criativo do artista do gueto. Roberto Carlos tem o inspirado em uma das músicas inéditas. Sim, Brown ouve todo tipo de música - incluindo Guilherme Arantes, um cara "gente boa pra caramba" para quem ele já cantou "Marina no Ar" quando o viu em um aeroporto.

"Aonde quero chegar ouvindo Roberto Carlos? Essa é uma boa pergunta. A música começou quando assisti ao enterro de Michael Jackson pela televisão e vi um monte de gente cantando, aquela comoção. Fui embora pensando no tema 'quanto vale o show'? Tem uma música do Roberto que fala [Brown imita o Rei]: 'o show já terminou'. Fui prestar atenção no som do Roberto Carlos, na letra, na ideia... Que letrão! O cara está falando para a mina que, para ser feliz, tem que separar agora. Acabou, vamos tirar a maquiagem e pá, umas ideias muito profundas. Quando você vê uma cena parecida assim no dia adia, você fala: 'Tem a ver, né, mano?'. E o cara já falava isso em 1973. Louco, hein?" Mas Brown ainda está com dificuldade para finalizar a música, intitulada "Quanto Vale o Show" em tempo de colocá-la no próximo disco dos Racionais. Não encontrou nenhum produtor que goste especificamente dessa sua viagem sonora com o Rei. Ele já tem a base da música em mente e, sem encontrar quem a execute, prevê produzi-la sozinho. Quer fazer o som em cima de trechos "não muito famosos, uns metais loucos", do tema da série cinematográfica Rocky, "Gonna Fly Now". Empolgadão, ele eleva a voz para explicar sua criação. "Show, show, show! Mas ninguém viajava na ideia, malandro. Tem aquela parte 'Califóóóórnia' (sic) [tenta imitar os vocais da música], tem uns trechos na sequência ali que são pá, mano, é o auge do barato, o barato arrepia. Eu fui tentar explicar na ideia e os caras [os produtores com quem tem trabalhado] não têm muita paciência para fazer. Eles não gostam do som em si, por causa do rock. Os caras são conservadores, mas eu vou fazer. Essa tem de vir no disco novo, senão passa o tempo."

Outra criação já batizada é "Cores e Valores", um som descrito como bastante próximo de "1 por Amor, 2 por Dinheiro", faixa do disco Nada como um Dia... A música terá várias participações de artistas do rap nacional. Brown sempre quer trazer as pessoas a seus projetos, abrir portas. Edgar Vida Loka, um parceiro de Brown, já fez sua parte da letra e surpreendeu o amigo. "Cores e valores é a noção de cada um, certo? O Edgar escreveu a parte dele falando assim: 'Stilo Schumacher, amarelo ou vermelho'; olha as noções de cores dele, 'um preto no piloto, uma rosa do lado'. Olha onde ele foi nessa ideia das cores, eu achei louco [Brown canta um pedaço da letra de Edgar]. São cores. Cores para ele é isso aí. Eu já vou falar de outras coisas, falar de torcida organizada, escola de samba, time de várzea. Mas já entendi a mente do Edgar e achei louco também. Ele fala de preto no piloto, mas não precisou falar do racismo, já deu para entender."

Neste momento, analisando a letra de Edgar, Brown conclui: "É aqui que o rap mudou. Às vezes, o subentendido é mais forte do que a letra em si, direta. Um preto no piloto num [Fiat] Stilo Schumacher amarelo é enquadro, malandro. O segundo raciocínio é melhor do que o primeiro. É nesse estágio que a gente tem que melhorar".

Brown diz que um exemplo de letrista a ser seguido é Chico Buarque, com quem gostaria de fazer músicas. "Ele tira surfe em cima dessas ideias aí, por isso que ele é o cara. Faz você pensar na primeira parte, na segunda ideia, na terceira ideia, na quarta, ele faz você pensar em todas ao mesmo tempo." E cita a estrutura da obra-prima "Construção": "Ele troca as palavras e você pensa em 300 mil coisas quando ele muda uma palavra para o lugar da outra. Vamos nos inspirar nos bons".

E com Caetano Veloso, assim como com Chico Buarque, um artista respeitado pela intelectualidade do Brasil, ele pensa em fazer um som? "Tenho o maior respeito pelo Caetano, mas que tipo de som a gente faria? Alguém ia ficar esquisito nessa. Não que eu não goste dele. Acho o Caetano do caralho. Ele é inteligente, está à frente do tempo o tempo todo." Brown também afirma ter vontade de gravar um dia com "gente do contexto" na música brasileira, como Zeca Pagodinho, Leci Brandão ou Djavan. Já gravou com o pagodeiro Belo e o com partideiro alto Almir Guineto, mas quer repetir essas parcerias. Entre elas, a mais desejada é a com o cantor e compositor Cassiano, que hoje praticamente vive recluso. "Já tentei, mandei recado, mas ele não quer, porque já foi muito enganado. Ele não está a fi m de começar do zero uma nova relação de amizade. Queria ouvir da boca dele. Por que você não quer, Cassiano?"

Nessa mesma toada, reconhece sempre ter usado suas letras para denunciar abusos por parte da polícia, mas hoje prefere fazer isso com mais sagacidade, ironizando, sem tratar os policiais com tanta seriedade. Ele canta um trechinho de uma de suas novas músicas, "Mente do Vilão": "Pé de porco é pé frio, vocês são meia de lã, rã, rã, rã". Pé de porco é polícia. Ele não quer mais dar nomes aos bois por acreditar que, quando aponta o dedo para um, deixa um rebanho de inimigos passar despercebido. "Atrás da farda tem um trabalhador mal remunerado. Chapéu atolado, a mente dele foi feita lá dentro [da corporação]. Ele não é a peça principal, ele é uma das peças. Agora, é claro, na rua, é com ele que a gente vai bater de frente, não é com o sargento, com o coronel. Um policial nunca é igual à gente."

Na maneira de Brown enxergar a sempre tensa relação entre a maior parte dos jovens das periferias e a polícia, principalmente a militar, ele diz ter percebido que o policial negro tende a ser mais agressivo do que o branco. "Na hora do enquadro, ele pensa que é íntimo seu. É a falha do policial negro. Ele quer ser íntimo. Ele não aceita ser confrontado. E a tendência do policial negro é ser mais agressivo do que o policial branco. Ele quer se impor."

O último grande incidente envolvendo o grupo e a PM aconteceu durante uma apresentação do evento Virada Cultural, na Praça da Sé, em maio de 2007, quando um show foi interrompido após parte do público que assistia os Racionais ter entrado em conflito com os policiais. A confusão, nunca antes comentada publicamente por Brown, foi causada, segundo ele, porque um PM caiu no chão quando tentava deter um jovem. "Vi a cena, foi do lado esquerdo [do palco]. Falei uma frase: 'A polícia foi feita para seqüestrar escravo fujão e é isso até hoje'." Depois, segundo ele, o PM agrediu o jovem que o driblara. "Os moleques viram e todo mundo se revoltou. Eles [PMs] estavam ali dispostos a arrumar treta. O barato era o Racionais e eles já vão com medo. Já são incumbidos de fazer uma função com medo. E um cara com medo... A primeira atitude violenta foi deles."

Mas foi em janeiro de 2005 que Mano Brown enfrentou um dos dias mais tristes de sua carreira. Quando os Racionais cantavam para 1.200 pessoas em Bauru, interior de São Paulo, o estudante Luís Fernando da Silva Santana, de 19 anos, foi morto a tiros por José Roberto Lourenço de Moura Júnior, de 21. Ainda com vida, Luís foi arrastado ao palco, sangrando muito. Brown se perdeu no "Pai Nosso" que rezara. "Invadiram o palco para tirar foto, pedir autógrafo, por cima do corpo. Fiquei nervoso, empurrei uns fãs. Na volta do show, deu aquele vazio, aquela incerteza de você estar ou não no caminho certo, de você ter culpa ou não, se podia interferir. Em Brasília, na saída de outro show, vi dois .mortos com a camisa dos Racionais. Nunca quisemos, mas também sei que a gente canta para a rapaziada que é fio desencapado." Brown também planeja fazer um filme. Na sua cabeça, o roteiro já começou a ser escrito e a história começa com uma narração ao estilo de Gil Gomes, radialista famoso por roteirizar dentro da cabeça de seus ouvintes, com voz inconfundível, a violência em São Paulo.

A inspiração cinematográfica de Brown passa pelo documentário Wilsinho Galiléia, feito em 1978 pelo diretor João Batista de Andrade e que era para ser exibido no Globo Repórter, mas foi embarreirado pela ditadura. A produção mostra a vida de um jovem ladrão, famoso na crônica policial paulistana no fi m dos anos 70 e morto pela polícia. Em 2007, Brown assistiu a fita ao lado do diretor na sala da veterana fotógrafa. "Ao ver aquelas imagens de favela dos anos 70, lembro-me da minha época, de quando eu era moleque. Chapei." Fez inúmeras perguntas a Andrade e soltou: "Quem sabe um dia a gente ainda não faz um trampo junto?"

No meio deste ano, quando falava com Rappin' Hood sobre Wilsinho Galiléia, Brown ficou abalado. Perguntara a Hood se ele conhecia em sua área da cidade um lugar chamado Cinco Esquinas, na divisa entre o bairro paulistano do Sacomã e a cidade de São Caetano do Sul, no ABC paulista. Antes da resposta afirmativa, Hood quis saber o motivo da pergunta. Assim que ouviu de Brown sobre o documentário, o amigo disse que, no dia anterior, estivera com Biscuí, ladrão que perdera um olho durante um roubo ao lado de Wilsinho e um dos personagens do filme. O agora "tiozão com olho de vidro" havia mandado um abraço para Brown. "Eu não acreditei, mano." Imaginava que todos os personagens retratados por João Batista estavam mortos, pela vida criminosa que levavam. "Até a mãe do Wilsinho está viva. Mora num barraco cheio de cachorros."

Menino nascido no hospital da liberdade, no Centro de São Paulo, Pedro Paulo foi criado em bairros humildes da Zona Sul com o suor escorrido exclusivamente do rosto da mãe. Dona Ana, 80 anos completados dia 9 de dezembro, foi durante muito tempo a única pessoa da família que conhecia. Do pai, de origem italiana, nada ou quase nada se sabe. Mágoa, tristeza? "Não dá para ter mágoa de uma pessoa que você nunca viu." Não ter tido o pai ao lado ajudou a moldar o caráter de Pedro Paulo. O pai faltou, mas ele e a mãe tiveram ajuda de Isac Santa Rita, pai-de-santo, filho de nigerianos, pai de 20 filhos legítimos, e que, vez ou outra, não cobrava o aluguel de dona Ana na casa em que ela era inquilina com o filho. "Ele nos ajudou demais. Como não tinha o pai presente, seu Isac era o homem de barba que beijávamos no rosto. Ele tem 90 anos e é o pai-de-santo mais zica que já existiu", conta Brown, que puxa na memória o ano de 1994. Depois de conseguir juntar R$ 7 mil embaixo do colchão, tudo ganho com o rap, deu entrada em uma partamento de um conjunto habitacional e deixou o aluguel.

Com Pedro Paulo ainda criança, dona Ana, vez ou outra, era chamada ao colégio interno (metade pago pela mãe e metade pelo patrão dela à época) onde o filho ficou por dois anos e meio para conversar com a professora dele, que queria saber por que o menino, sempre calado e pensativo, só usava roxo, marrom e preto nos seus desenhos. "Eu não gostava de amarelo, verde, azul-clarinho." Estudou até a antiga 8ª série por porque, diz, não conseguia aprender biologia, química nem física. Mas aprendeu uma tática de guerrilha - ou das cavernas - para conquistar o sexo oposto. Na época em que ganhara a maioridade, estava numa festa e simplesmente carregou a mulher que hoje é sua esposa. "Foi do jeito mais absurdo. Eu joguei ela no ombro e subi as escadas. Estou com ela até hoje." Aos 19 anos, já com os Racionais despontando com sucessos como "Hey Boy" e "Pânico na Zona Sul", Brown foi lapidado por Milton Sales, que sempre disse ao rapper ter ajudado a criar o Partido dos Trabalhadores. Muito do Mano Brown conhecido pelo grande público teve influência de Milton. "Ele até hoje me dá puxões de orelha, sempre com razão e autoridade", diz o rapper. Até por essa influência Brown admira tanto o presidente Lula e diz ter vontade de que a ministra Dilma Roussef seja a escolhida nas próximas eleições presidenciais. "Mas, para isso, ela tem de falar com a alma." Por apoio a Lula, Brown admite votar em Dilma, mas não descarta escolher a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva em 2010.

Outros parentes Brown só foi conhecer quando já estava no auge da fama, em 1999, durante um dos shows de lançamento do épico e já clássico Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais. Tinha 29 anos e, antes de cantar em Salvador, resolveu partir de carro com dona Ana e o amigo Black Blue (um dos produtores dos shows dos Racionais) para Riachão do Jacuípe, perto de Feira de Santana. Havia 55 anos que aquela senhora, até um pouco dura com o filho e derretida com os netos, não pisava na cidade. Ao chegar, ela foi reconhecida pelo padre. Em poucos minutos, alguns parentes se aproximaram.

Um deles viu o filho de Ana e, depois de cumprimentá-lo, perguntou: "Essa sua tatuagem aí no braço direito é igual àquela da capa desse novo disco dos Racionais, não é?" Surpreso, Black Blue entrou na conversa: "Ô truta, você não conhece, não? Seu primo é o Mano Brown!" Foi uma festa só e, em pouco tempo, "uns 500 parentes cercaram a praça", narra Brown, que ficou nervoso por Black Blue ter falado sobre sua identidade. "A atenção do momento tinha de ser a minha mãe." Pedro Paulo sabe que dona Ana tem orgulho do filho, mas não costuma ouvir isso dela. "Ela fala mais para as amigas." E até hoje, se dona Ana vê o filho com um cigarro nas mãos, dá sermão. "Ela bate na mão e derruba o cigarro."

Naquele mar de parentes recém-descobertos, o artista percebeu, porém, que ainda havia muito a descobrir. "Nunca tive família de sangue. Queria ver se alguém parecia comigo, se o meu nariz era de lá. Mas eu descobri que não. A minha raiz tem muito a vê com meu pai. Meus primos são diferentes de mim, são mais escuros. Não tem influência branca no meio deles - talvez muito pouco, bem menos do que eu. E eles são humildes mesmo. Povo do Nordeste, do Norte, sofredor, guerreirão mesmo. Indo lá, eu descobri que tinha muito parente meu em São Paulo que morreu. Durante a minha infância, eles estavam em São Paulo e eu não sabia."

Então com 29 anos, Brown embarcou numa ideia de que precisaria ganhar muito dinheiro, pois achava que tinha de ajudar todo aquele povo de Riachão, coincidentemente também chamado de Fundão, assim como o pedaço da Zona Sul de São Paulo onde ele costuma se esticar no divã madrugada ou outra. "Gosto de ir na Fundão para escutar as filosofias dos mais loucos, daqueles perdidos na madrugada. Às vezes, antes de voltar para casa, vou lá ouvir." Para Brown, aquela família de Riachão era sua responsabilidade. "Eu estava com a oportunidade e eles não tinham. Mas descobri que eles têm uma dignidade que é muito maior até do que uma ajuda minha. Eles não dependem da minha ajuda para ser nada. Se tentasse ajudar, eu atrapalharia."

Também aos 29, no auge das conquistas com Sobrevivendo no Inferno e a música mais reconhecida do disco, "Diário de um Detento", Brown "chapou o coco", como diz. Perdeu o rumo. Por vontade dele, que só queria ficar o dia todo na favela da Vila Fundão, os Racionais pararam de fazer shows naquele período. Foi a época em que o rapper conviveu muito com Emerson, um amigo de 25 anos de idade que o contestava bastante, e por isso ganhou sua admiração. Neguinho Emerson era envolvido com o crime e, como Brown acreditava fazer músicas para pessoas como o amigo, essa relação de amizade o fez questionar o alcance de sua música. Decidiu, então, remodelar os Racionais. Principalmente depois de não ter conseguido resgatar Emerson, que foi inspiração para algumas músicas e morreu num acidente de moto, do mundo do crime. Reza a lenda que Neguinho Emerson cansou da vida e se jogou de moto numa contramão.

De cor parda ("e raça negra"), Brown diz que os iguais a ele, mestiços, sofrem mais com o racismo do que os negros atualmente. Na visão dele, os pardos não usufruem do recente fortalecimento da autoestima do povo negro, que acontece há mais de uma década e engloba desde o sucesso dos Racionais até a eleição de Barack Obama. "No Brasil, você não vê gente da minha cor fazendo comercial, fazendo nada. Se eu não fosse o Mano Brown, seria invisível na rua." Há uma música sobre o tema pronta para o novo disco dos Racionais, não por acaso intitulada "O Homem Invisível".

Nas conversas com o negro Ice Blue, o assunto também surge. "Sou até muito mais discriminado do que o Blue. E os caras da minha cor, desse meu tom de pele, também. Você vê nas cadeias, na Febem. O cara tem medo hoje de discriminar um cara como o Blue, tem medo de falar um 'a' para um preto. Agora, um cara como eu, é toda hora, irmão. É pobre, tem cara de pobre, tem cor de pobre. Se quiser, fala que é 'moreninho'. Tenho um biótipo de ladrão. É um lance do brasileiro. Quando a escravidão estava para ser abolida, tinha muitos filhos de branco com preto nas ruas, abandonados, que não eram nem um nem outro, e foram virar ladrão mesmo. A primeira classe de gente abandonada foi a dos filhos de branco com negro, o filho rejeitado do patrão. Foram os primeiros vagabundos, que não serviam nem para um nem para outro, nem para escravo nem para senhor. É uma teoria pequena minha, não é a regra."

Invertendo o jogo, admite que ele mesmo, por mais evolução que persiga, ainda tem suas questões de preconceito para resolver. "Eu era pobre e louco, não conseguia ver um playboy como um ser humano. Hoje consigo, mas não significa que goste dele. Sei que ele deve ter filho, mãe, tudo, mas isso não quer dizer que eu queira fazer parte da família dele." Com olhar firme, um cigarro entre os dedos e ciente de aonde quer chegar com sua música, Brown finaliza: "Se existe algum tipo de radicalismo, estou exercendo mais ele hoje".

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