Depois de denunciar esquemas de corrupção na polícia civil do Rio de Janeiro, o médico Daniel Ponte diz pagar o preço por ser honesto: é um prisioneiro dentro de sua própria cidade e tem pressa, como se achasse que não vai viver muito
Gustavo de Almeida Publicado em 22/09/2008, às 17h57
Daniel Ponte anda apressado pela rua Marquês de Abrantes, uma das duas principais do bairro do Flamengo, na Zona Sul do Rio. Sem camisa, chama a atenção pelo olhar atento e por cumprimentar velhos conhecidos apenas com um sinal de positivo com a cabeça, como se tivesse pouca intimidade.
Na mão direita, enrolado, algo de pano que se parece - e é - sua camiseta. A cena se passa com a rua lotada em um fim de tarde do outono carioca. Alunos da Faculdade Bennett saem das provas de meio de ano e se misturam aos freqüentadores do botequim logo em frente. Muitos passam em direção à estação do metrô. Donas-de-casa passeiam com cães ou filhos. Não importa se ser humano ou animal, todos são minuciosamente observados por Daniel, que mexe o braço nervosamente para evitar que a camiseta desenrole.
Quando chega à academia, coloca a camiseta cuidadosamente em cima de um pequeno banco e vai para a esteira, correr, respirar, suar. "Engordei mais de 15 quilos por causa do estresse", diz, limpando o suor da testa e olhando em volta, só para conferir.
A hora da ginástica passa rápido e Daniel Ponte, ex-vice-diretor do Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro, se apronta para os 120 metros que terá de andar na volta para casa. Lá, depois do banho rápido, ele se volta para as poucas atividades que lhe restam: ler, navegar na internet, ver televisão, conversar com os amigos pelo telefone que sabe estar grampeado. Ele tem pressa, como se achasse que não vai viver muito. Talvez esteja certo. Talvez não.
Daniel Ponte hoje é um prisioneiro dentro de sua própria cidade, o Rio de Janeiro, tomado por todos os tipos de máfia. E é com o olhar de um condenado à prisão perpétua e ar sombrio que ele dá um sorriso sem esperança e suspira: "Acho, sinceramente, que não tem mais jeito. Ninguém acaba com a miséria se não acabar a corrupção. Só que ninguém acaba com a corrupção".
Até setembro de 2005, Daniel era um brasileiro como qualquer outro, com crenças e dúvidas. Já formado em Medicina e Direito e concursado para a Polícia Civil do Rio, recebeu o convite para assumir a vice-presidência do IML. Nem pensou duas vezes. Hoje, reconhece ter sido ingênuo.
Em poucos meses no IML, conheceu o horror. A marca do órgão era o abandono: cadáveres eram abandonados nos cantos, colocando em risco a saúde dos funcionários, não havia reagentes químicos, por todos os lados havia milhares de laudos pendentes, os exames de tóxicos eram imprecisos e os peritos não dispunham nem mesmo de um aparelho de raio X. "Todo dia chegava alguém morto por tiros. E, por causa da falta de raio X, muitas vezes os cadáveres eram enterrados ainda com os projéteis. O resultado disso? É a impunidade dos assassinos."
Quando foi avisado de que era um homem marcado para morrer - "Fui avisado pelos policiais Alexandre Várzea e Wilson Queiroz de que seria morto" -, Daniel começou a gravar conversas e relatos de pessoas que participavam ou sabiam dos esquemas de corrupção. Um dos relatos gravados é o do oficial de cartório Wilson Queiroz, segundo Daniel, uma das pessoas que o ajudou a descobrir que estava condenado à morte. No relato de Wilson, são descritas fraudes previdenciárias, esquemas de corrupção com funerárias e extorsão de famílias que, ainda em estado de choque, tentam liberar o corpo de um ente querido no IML a fim de apressar o enterro.
"As famílias pagavam R$ 250. Cada setor do IML ficava com R$ 20, e o que sobrava ia para o chefe da Polícia Civil", afirma Ponte, referindo-se ao ex-chefe da Polícia Civil e hoje deputado estadual do Rio, Álvaro Lins (PMDB).
Você lê esta matéria na íntegra na edição 23 da Rolling Stone Brasil, agosto/2008
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