Reportagem publicada originalmente na edição 396 da RS EUA (maio de 1983) -

Maturação Intensa

Hoje, Sean Penn é um dos nomes mais respeitados de Hollywood. Em 1983, o ator começava a deixar a rotina de bad boy para firmar o nome no imaginário popular

Christopher Connelly | Tradução: Ligia Fonseca Publicado em 17/09/2012, às 12h11 - Atualizado às 12h13

"Uma vez, eu e meu amigo Emilio planejamos um negócio. Foi em uma daquelas vezes em que estávamos sem fazer nada e dissemos: ‘Vamos realmente seguir em frente com isso. Até o fim. Ninguém vai rir’. Um cara chamado Kelly sempre saía do ônibus escolar com o Emilio. Um dia, eu estava na esquina com outro amigo no meu carro. Tínhamos pistolas calibre 22 com balas de festim, e o Emilio tinha uma bolsa enorme com sangue falso. Então, convenceu o Kelly a ir até a sorveteria com ele.”

“Aí, passamos por eles e começamos a atirar. O Emilio fez uma coisa ótima – apertou a bolsa de sangue e ela explodiu no peito dele. Ele caiu no chão. O Kelly estava segurando uma prancha de skate, apavorado, e começou a se afastar, em choque.”

“Apontamos a arma para ele, o obrigamos a sentar no banco de trás do carro e saímos. Ele está tão apavorado que nem consegue falar. Estamos usando máscaras de esqui e o chamamos de Emilio, como se tivéssemos pegado o cara errado, entendeu? Fomos até o desfiladeiro, paramos, fizemos o Kelly sair do carro e dissemos: ‘Não vamos te machucar, só te amarrar nesta árvore, então vamos embora.”

“Esta foi nossa melhor armação de todos os tempos: tiramos uma lata de gasolina do porta-malas – que estava cheia de água – e meu amigo acende um fósforo. O cara começou a gritar, derramo água sobre ele, e meu amigo aproxima o fósforo dele. Então, contamos a verdade. Daí, o Emilio chega e fazemos um piquenique. O Kelly nunca mais foi o mesmo.”

Sean Penn não participa mais desse tipo de aventura. Hoje, sabe que tem sorte de poder expressar de forma artística tamanha intensidade. Pode-se dizer que atuar salvou sua vida, fez dele uma pessoa melhor do que poderia ter sido, da mesma forma que o rock salvou John Lennon ou Bruce Springsteen.

Ninguém vai confundir os filmes que Penn fez – Toque de Recolher, Picardias Estudantis e Bad Boys – com Cidadão Kane. Embora tenha feito papéis de destaque em todos eles, nenhum lhe rendeu, ou renderá, indicação ao Oscar. No entanto, com base nos três filmes e em duas aparições relativamente breves na Broadway, Penn, 22 anos, está sendo amplamente aclamado como o melhor ator de sua geração. Até críticos que detonaram Bad Boys, o melodrama sobre garotos atrás das grades, derramaram-se em elogios a ele. Pauline Kael, da revista New Yorker, comparou o impacto de seu desempenho como o durão Mick O’Brien ao trabalho de James Dean e Marlon Brando. Na verdade, a atenção recebida por Penn tem evitado o esquecimento comercial de Bad Boys, que de alguma forma tem se sustentado nas bilheterias apesar de uma leva de outros filmes voltados para o mercado adolescente – como Vidas sem Rumo, Primavera na Pele e o clássico atemporal Joysticks.

Os diretores e colegas atores de Penn falam dele em uma linguagem que vai além da cortesia profissional. “O jovem ator mais talentoso do momento”, fala Richard Rosenthal, diretor de Bad Boys, que escolheu Penn para o papel apesar de pressões por parte do agente de Matt Dillon.

“O Sean é muito, muito bom”, elogia Timothy Hutton, que fez o colega de quarto do leal, mas rigoroso, personagem de Penn em Toque de Recolher. “Não fico nada surpreso por ele estar indo tão bem.”


“Ele vai ser um artista incrível”, afirma Amy Heckerling, diretora de Picardias Estudantis, que conduziu Penn em sua adorada performance como o surfista doidão Jeff Spicoli. “Aliás, já é.”

O que torna Sean Penn tão especial? Ao contrário de alguns jovens atores, não é sua aparência angelical. Seu rosto é comum, jovem, até atraente – nariz grande, olhos estreitos, boca pequena. Embora tenha feito personagens simpáticos, não irradia uma personalidade de bom-moço como Hutton e Dillon. O que Penn emana é uma intensidade quase irresistível, uma crença desesperada nas aspirações de seus personagens que pode ser tocante (Bad Boys) ou hilária (Picardias Estudantis). Ele aproveita as possibilidades físicas de seus papéis com um brio semelhante ao de Laurence Olivier – veja a cena em Bad Boys na qual ele esmurra dois rapazes com uma fronha cheia de latas de refrigerante até eles desmaiarem. Só que, como James Dean fez antes dele, Penn mantém sua raiva sob controle e evita o histrionismo.

Penn tem o histórico ideal para um ator. Seus pais estão no mundo artístico (o pai, Leo Penn, é ator e diretor, e a mãe, Eileen Ryan, é uma ex-atriz) e o estimularam durante toda a sua carreira. Assim, ele não fica intimidado em audições: “Minha mãe me disse: ‘Quando você entrar, vai ter que imaginar que eles não estão sentados na cadeira, e sim na privada’. É impressionante como isso te dá força”. Ele também parece não se afetar por rejeições. “Se alguém não quiser que eu faça um papel, tudo bem. É ruim se meter em encrenca por causa disso.”

“Além de ter um talento inato e intuitivo que não se pode ensinar, ele tem técnica”, diz Art Wolff, diretor de Heartland, primeira peça de Penn na Broadway. “É muito bem treinado.” Sem contar que Penn tem um compromisso quase fanático com o trabalho honesto e inteligente, faz pesquisas para seus papéis com uma avidez assustadora. Ele se manteve nos personagens nos sets de Picardias Estudantis e Bad Boys e só andava com os amigos deles. Ele ainda possui uma tatuagem que fez enquanto filmava Bad Boys.

Penn se irrita levemente com a menção dessas características. “A única coisa que não gosto de ver escrita sobre mim”, diz, “é essa coisa de Robert De Niro. Acho que não tem importância. Tudo o que importa é o que está na tela. Não preciso ser considerado um trabalhador, só quero ser o melhor que posso ser. Sei exatamente o que quero fazer”, ele continua. “Fiz minha escolha definitiva. Sou ator há quase seis anos. Tomei a decisão e nunca a questionei.”

Essa clareza de visão é muito impressionante em um rapaz de 22 anos. Ele não vai a muitos shows nem pratica esportes, mas, por enquanto, é assim que quer que seja. “Conheço um pouco o Sean”, conta Amy Heckerling, “mas realmente só conheço Jeff Spicoli.” Talvez por isso que Sean hesite em dar entrevistas. Como Amy observa, “ele se sente muito mais confortável em ser um personagem do que em ser Sean Penn”.

Sean Penn se senta à minha frente em um de seus restaurantes preferidos em Nova York – Vinnie’s Pizza, um lugar barulhento e cheio de moscas que serve pizzas em fatias. Ele se encaixa perfeitamente aqui. Pode ter sido criado sob o sol de Santa Monica, mas sua aparência sugere que passou muito tempo sob a sombra. Sua pele é pálida e um pouco áspera, as unhas são roídas até o toco, e suas roupas – uma camiseta de escola militar, um cardigã com apenas dois botões, jeans e bandana no lugar do cinto – fazem com que pareça mais um poeta galês iniciante do que um rato de praia.


Ao contrário das aparências, Penn teve uma infância típica da Costa Oeste norte-americana – horas passadas buscando diversão, entrando em encrencas com a polícia e, em geral, odiando à escola. “Eu me arrependo de ter ido a escola”, ele diz com calma, abrindo uma lata de refrigerante. Seus passatempos incluíam tênis, surfe e idas frequentes ao cinema. “Vi muitos filmes”, lembra. “Só recentemente cheguei ao ponto de me importar se é um filme bom ou ruim. Gostava de tudo.”

Quando Penn tinha 16 anos, seu irmão mais novo, Chris – também um bom ator, que aparecerá em O Selvagem da Motocicleta, de Francis Ford Coppola – ganhou uma câmera Super-8 de Natal e eles começaram a rodar curtas com os amigos do bairro. Sua obra-prima, Looking for Someone (“Procurando Alguém”), era um filme de uma hora que havia começado como um mistério de três minutos. “Tínhamos de implorar para as pessoas aparecerem nele. Saíamos a noite inteira em Westwood, filmando em estacionamentos e fazendo coisas que ninguém pediria para um dublê fazer.” Penn fala com certa empolgação. “Foi nossa primeira experiência em filmes. Víamos o que tínhamos filmado na semana anterior e saíamos à noite para filmar mais. Pulávamos de coisas de 3,5 m de altura e caíamos no concreto. Nós nos machucávamos o tempo todo, só que não podíamos admitir, porque era a escola e sempre havia algum cara trabalhando conosco pelo qual uma menina era apaixonada e perguntava: ‘Ah, posso assistir?’ Então, aquela única garota fez todos ficarmos durões. A única coisa que elas não poderiam ver era a atuação. Isso era particular.”

Depois da formatura, Penn conseguiu um emprego como assistente de produção no Los Angeles Group Repertory Theater e atuava ocasionalmente. Quando finalmente decidiu ter algumas aulas de interpretação, Peggy Feury, amiga de longa data da família, não sabia ao certo se queria Sean em sua turma. “Na maioria das vezes, não aceito gente que não foi à faculdade. Se aceito, tento fazer com que estudem meio período. Só que o Sean já tinha muita certeza do que queria fazer. Estava disposto a ler e pesquisar tudo. Depois de uma só aula, soube que não havia nada para me preocupar”, ela explica. O aluno recorda: “Tinha sentimentos mistos quando comecei as aulas.” No final, absorvi a maioria das coisas que ela dizia”.

Foi nas rigorosas sessões de quatro horas por dia, quatro dias por semana de Peggy que Penn começou a desenvolver e aperfeiçoar suas habilidades: analisar uma cena, dividi-la em partes, extrair a lógica sem sequência que pode ser vital para a performance de um ator. Outros atores têm aulas; Sean Penn as respira. Em pouco tempo, começou a fazer testes pela cidade, com sucesso limitado.

“Consegui um papel em The Time of Your Life, fazendo um jornaleiro que entra e canta músicas irlandesas. Depois de me ouvirem cantar duas vezes, fui demitido. Depois disso... bom, fui fazer uma peça no Santa Monica College. Trabalhei nela por cerca de três meses, sabendo que seria apenas uma apresentação, mas era um papel que eu realmente queria fazer. Foi um ótimo exercício, mas só isso.”

Ele não tinha dinheiro, emprego, nem perspectivas. Nada além de uma espécie de obsessão que se parecia muito com esperança. “Sabia que conseguiria o trabalho que queria”, diz Penn, “porque eu tinha de conseguir. Estava com pouco dinheiro no banco, vindo de trabalhos esporádicos. Só estudando e fazia algumas peças. Minha capacidade já estava se esgotando. Então, comprei uma passagem só de ida para Nova York.”


Na véspera de sua partida, um antigo amigo da família, Jordan Rhodes, foi até sua casa e, por acaso, trazia o roteiro de uma nova peça para a qual audições estavam sendo realizadas em Nova York. A peça era Heartland, de Kevin Heelan, e Rhodes conhecia o diretor, Art Wolff. Uma audição foi marcada para ele – e foi um desastre.

“Ele entrou e, fisicamente, estava bem”, lembra Wolff. “Então pedi a ele que lesse com o ator que faria o pai dele na peça, J.C. Quinn, e ele foi horrível. Nervoso, tenso e inaudível por parte do tempo.”

Penn sabia que tinha ido mal, mas Rhodes ligou para Wolff e conseguiu uma segunda chance para ele. O que aconteceu em seguida ainda dá um nó na garganta do diretor, e até o impassível Penn chama isso de “uma das experiências maravilhosas que tive.”

“Fiquei de costas para eles. Estava lendo com outro ator, e a cena dele terminava com sua saída. E naquele instante, eu realmente estava . As coisas começaram a acontecer, o diretor enxergou isso e então falou: ‘Continue’, e acabamos fazendo o último terço da peça.”

“Lágrimas corriam pelo meu rosto”, conta Wolff. Heelan estava tremendo. Eu me aproximei do Sean e nos abraçamos. Foi simplesmente extraordinário. Nunca tinha feito isso antes e nunca mais fiz.”

Heartland terminou três semanas depois de estrear (“Ele era a melhor coisa da peça”, admite Heelan), mas um agente viu Penn e o recomendou para seu primeiro papel no cinema, em Toque de Recolher. Ele foi aprovado e começou uma filmagem agonizante sob a pressão do prazo de uma greve de diretores. Para se defender – ou, em alguns casos, para aumentar – da loucura de um set cheio de adolescentes fazendo seu primeiro filme, Penn, Hutton e Tom Cruise começaram a sair juntos após as filmagens.

Então, houve o plano genial, como Hutton explica, elaborado pelos “Três Mosqueteiros”, com um empréstimo liberal de Apocalypse Now. “Perto da Academia Militar de Valley Forge, o Merion Golf Club estava sediando o U.S. Open naquele ano, e tínhamos acesso a helicópteros e bombas de fumaça. Então, fomos até o departamento de som e perguntamos se poderíamos montar alguns alto-falantes no helicóptero. Fizemos isso no domingo, todos os maiorais do mundo do golfe dariam suas últimas tacadas para ganhar uma grana preta. Então, montaríamos um rádio no helicóptero e ficaríamos voando pela área, escutando a transmissão do golfe e, no momento certo, iríamos aterrisar no 18º buraco.

“Desceríamos assim que o narrador dissesse: ‘Agora, eis Tom Watson, o 13º abaixo da média, blá-blá-blá. O público faria um silêncio mortal’.” Hutton explode em uma aura de frenesi com “Cavalgada das Valquírias” e disparos de fuzil. “Saltaríamos do helicóptero, usando nossos uniformes militares e carregando armas com balas de festim, dizendo algo como ‘É brincadeira’.

“Só que ficamos tão empolgados com a ideia que não guardamos segredo, e a polícia ficou sabendo. Eles meio que vieram e disseram que não seria uma ideia tão boa.”


A estranha disciplina que caracteriza o trabalho de Penn não poderia ter sido mais difícil de manter do que em Picardias Estudantis, onde ele conheceu sua atual noiva, Pam Springsteen. Não que ele tenha se importado de poupá-la de sua esquisitice ou tentado arrumar tempo entre as cenas.

“Você não pode se envolver. É importante demais. É um registro permanente quando se roda um filme, e tem significado demais para ficar brincando por aí. Vejo isso acontecer muito, e é uma pena. Conheci a Pam depois. Eu a vi depois.”

“Sabe”, Penn diz, animado com seu tópico preferido, “atuar é uma questão de dizer adeus a você mesmo por dez minutos, ou o tempo que for. É o que faço. É como construir uma gaiola – a maior possível. Tomara que você a torne suficientemente forte, de maneira que, depois que entra e tranca a porta, pode simplesmente enlouquecer e fazer o que quiser. E não há como – porque você deixou essa gaiola muito forte em termos de escolhas que fez –, não há como ir longe demais. Você simplesmente pira. Não há personagem no mundo com o qual não seja possível enlouquecer, desde que você construa a gaiola.”

A agenda de Sean Penn para os próximos meses está cheia. Já terminou um papel no novo filme de Louis Malle, Alta Incompetência, no qual faz um “músico de rockabilly quase retardado do Texas”, contracenando com Donald Sutherland e Jack Warden. Atualmente, está filmando Adeus à Inocência, um drama romântico com Elizabeth McGovern. Está conversando com Kevin Bacon sobre uma possível produção das sequências da trilogia de Slab Boys, Cuttin’ a Rug e Still Life. Tem um projeto em andamento com o diretor renegado Bob Rafelson – intitulado Caminhos Violentos, trata de uma família que rouba tratores na Pensilvânia. Quer encenar Tchekhov e Shakespeare (Mercúrio em Romeu e Julieta, especialmente). Qualquer coisa que não seja um filme escapista.

“Acho que um filme como Caçadores da Arca Perdida equivale a tomar drogas”, resmunga o homem que alega nunca ter tocado em substâncias químicas recreativas. “Sou contra a ideia de ‘ah, esse filme é bom entretenimento’.”

“Meu motivo para ser ator é algo que nunca pode se dissolver assim. Não consigo descrever. Você simplesmente precisa fazer isso. Se um dia não conseguir mais dizer o que quero sendo ator, largo tudo.”

Penn, no entanto, não planeja parar. Já tomou suas decisões fortes: quer uma carreira duradoura e um casamento em breve. “A única coisa da qual tenho certeza são as escolhas que tenho feito em relação a atuar”, afirma. “As outras coisas só são parte da experiência, sabe, enquanto caminhamos”, fala.

Sorri para si mesmo. “Não quero dizer que estou me casando só pela experiência do casamento, é...” – faz uma pausa – “como você ter de continuar respirando. Conheci alguém com quem quero estar sempre. Ela cuida de mim, sabe o que estou fazendo sem que eu tenha de dizer nada”.

O que provavelmente é como ele quer que o mundo veja sua atuação. Seu rosto ou estilo podem lembrar os de alguns dos mais conhecidos bandidos do cinema, mas Sean Penn não quer ser uma personalidade ou presença. Não quer a celebridade. Nem se importa com o público. Só quer trabalhar.

“Não há muita coisa que você possa fazer da qual não se arrepende às vezes”, afirma. “Só que não importa, sabe? Desde que tenha a atuação, não importa.”

sean penn

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