Paraíso perdido na Amazônia, a região de Nova Olinda vive em conflito: de um lado, comunidades a favor da extração da madeira; de outro, aquelas que querem manter suas terras. O impasse continua
Por Felipe Milanez Publicado em 02/12/2010, às 11h55
O excesso de céu e águas que se abre à minha frente a partir da proa do barco é deslumbrante. A floresta é uma linha verdejante suave no horizonte, que marca a distinção entre o azul cósmico e o azul mais escuro do rio. Nas margens, praias com areias brancas. Dinael Cardoso, liderança indígena e uma das personalidades mais ativas no Movimento, me acompanha. Chegando a uma pequena comunidade estendida na beira do rio Arapiuns, ele aponta para uma dessas margens paradisíacas, que poderiam estar no Caribe, escoltadas pelo verde da mata: "Foi ali, ano passado. Vai fazer um ano agora que as balsas queimaram".
É apenas uma ponta de areia, chamada São Pedro, que marca uma confluência. A partir daqui, cada vez mais o Arapiuns, afluente do Tapajós, se fecha, até culminar em uma bifurcação. De um lado, o Maró. Do outro, o Aruã. Essa terra em frente, para onde sigo, se chama Gleba Nova Olinda. O fogo de um ano antes selou a ligação política entre a insurgência presente na Nova Olinda e as comunidades ribeirinhas ao longo do Arapiuns, criando o Movimento em Defesa da Vida e da Cultura do Rio Arapiuns. Em oposição estariam os empresários que comercializam madeira da região, as comunidades que são ligadas a esses empresários e os agentes econômicos com interesse mais amplo: a mineradora Alcoa, que explora bauxita e faz prospecção em toda a área, e os produtores de soja.
Não apenas pelo significado político, mas também pela dimensão social de unir as comunidades, o protesto e o fogo rebelde em balsas carregadas de madeira marcou definitivamente essa curva do Arapiuns.
O fogo explodiu em chamas gigantes pelo meio do rio, de um tamanho nunca antes visto, em um calor nunca antes sentido. As labaredas invadiram o breu, seguiram o outro dia e queimaram por mais duas noites. As comunidades da beira do rio estavam unidas na revolta.
O sindicato dos trabalhadores rurais, que convocou a manifestação, havia abandonado a luta. O Procurador Federal declarou que havia indícios de extração irregular da madeira. A Secretaria de Meio Ambiente (Sema) veio fiscalizar a origem das toras e disse que tudo era legal e dentro dos conformes. Ou seja, a madeira continuaria saindo. "Sendo saqueada", pensaram as lideranças que estavam no local. Não houve ordem de ninguém para dar início ao fogo, mas uma reação coletiva, em assembleias. "O motivador maior da queima foi a conivência do Estado com a exploração madeireira. O Estado não quis discutir com as comunidades, mandou apenas um técnico para fiscalizar. Isso revoltou os manifestantes, que esperaram por um mês", afirmou uma liderança que não quis ser identificada.
Quase um ano atrás, no dia 10 de novembro, cansada de uma manifestação que já durava um mês, a multidão queimou duas balsas carregadas de madeira, avaliadas em R$ 5 milhões. Se a região vivia tempos de medo e tensão, o ato tornou-se um divisor, o momento em que as comunidades que lutam contra os empresários perceberam que poderiam se insurgir.
Neste último ano, sem a demarcação da terra indígena pretendida pelos índios borari, sem a regularização dos assentamentos das comunidades ribeirinhas, mas com as autorizações de corte de madeira na área e o patrimônio florestal sendo assim comercializado, o ambiente na Gleba Nova Olinda está tomado de medo e tensão.
"O medo sempre existiu. Mas eu não fiquei com medo de abandonar a luta. Fiquei com mais vontade de lutar", diz Odair José Alves de Sousa, o Dadá, 28 anos, segundo cacique da aldeia borari Novo Lugar (o primeiro cacique é seu tio Higino, mais velho e experiente). À noite, a água do rio é ainda mais escura. Reflete as estrelas tão nitidamente que a sensação é a de que o barco levita. A aldeia Novo Lugar dorme na terra firme onde atracamos. Há calma no ar. Nessa hora, Dadá pode ficar tranquilo para conversar. Em 2007 ele foi sequestrado e espancado. Desde então faz parte do programa de proteção à testemunha e anda com seguranças. Mas, depois que surgiu o Movimento, a confiança na capacidade de luta aumentou. "O movimento está forte. Nossa luta é justa", afirma.
Antes do episódio do fogo, escorriam semanalmente pelo Arapiuns cerca de 40 balsas carregadas de toras. Cada uma com uma média de dois mil metros cúbicos de madeira. Agora, diz Dadá, se passarem três balsas por mês é muito. Foi o fogo? "Questão de amedrontamento", analisa o jovem cacique. O fogo transferiu, ao menos em parte, o medo para o "outro lado". "A gente está falando no canal de rádio que não tem hora nem momento para ter outra manifestação, para pegar outra balsa. Então eles reduziram a quantidade", explica. O foco da pressão é a empacada regularização fundiária da Gleba, estacionada em gabinetes e negociada entre audiências públicas e lobbies políticos.
Nova Olinda se divide em duas posições antagônicas. Para entrar na Gleba, é preciso estar de um lado. "A gente vai ter que discutir com a comunidade." Minha recepção na aldeia Novo Lugar é permeada de desconfiança. Poucas semanas antes, eles haviam recebido uma jornalista que se mostrou envolvida com o tal "outro lado". Para ter acesso, era preciso explicar que minha presença não implicava em vínculos diretos com o "lado de lá", os empresários madeireiros, identificados pelo apoio que recebem de comunidades como Fé em Deus, Repartimento e Vista Alegre. Em todas as outras comunidades, o procedimento de abordagem foi o mesmo. Como iniciei a viagem pelo lado da resistência aos empresários, que se encontrava antes pela logística do rio, as comunidades opostas fecharam as portas.
Um daqueles paraísos perdidos na Amazônia, lugar de floresta altamente preservada, onde um sonho de éden ainda parece persistir, a região de Nova Olinda é banhada por rios de águas escuras, que escorrem de forma sinuosa, de difícil acesso, praticamente isolando a área na seca do acesso de barcos maiores - com o rio cheio, leva-se pelo menos um dia para se chegar de barco até Santarém, percurso feito em semanas nas canoas tradicionais.
Com 182 mil hectares, a Gleba integra um mosaico de terras, no Oeste do Pará, parte em Santarém e outra em Juriti, que está em lento processo de regularização fundiária: o conjunto de glebas Mamuru-Arapiuns, com 1,2 milhão de hectares. Seria a primeira de cinco glebas de terras públicas nessa região a ter o problema de destinação do uso resolvido - para exploração, preservação ou uso tradicional. O processo, assim que concluído, poderia servir de modelo de resolução para as demais terras. Algumas áreas de assentamento já foram regularizadas. Falta definir a situação dos assentamentos de duas comunidades, Prainha e Vista Alegre, e a demarcação da terra indígena. A conclusão estacionou, e a tensão cresceu.
Há cerca de 15 comunidades na área. Pela lei, elas devem ser ouvidas sobre sua ocupação e o uso que fazem da terra, e as necessidades devem ser respeitadas na hora da concessão do título, seja na forma de projeto de assentamento, que pode ser coletivo ou em lotes individuais, seja na forma de uma reserva indígena. Mas as interferências externas, ou seja, dos novos migrantes, mudaram a relação pacífica que existia entre as comunidades, que hoje não se comunicam.
Seria natural imaginar que todas demandariam direitos semelhantes. Mas há aquelas que querem a presença dos empresários, e as que refutam. Permeada por essa disputa, surge uma batalha por identidades: para marcar suas diferenças e posições políticas assumem cada uma suas raízes. A grande batalha acontece entre as que reivindicam a identidade indígena, do povo Borari, e aquelas que querem se ver brasileiras e modernas.
Foram os gaúchos (termo genérico para forasteiros) que trouxeram o sonho do progresso e os conflitos. Empresários madeireiros transferidos pelo governo do Pará, eles ocupavam uma área pública que havia sido transformada em terra indígena de ocupação dos índios caiapós no Sul do Estado. O governo paraense decidiu, à época, fazer uma espécie de permuta com os empresários, transferindo-os para outra área administrada pelo Instituto de Terras do Pará (Iterpa). Com a transferência dos títulos, veio junto a grilagem da terra. A partir de 2002, começaram a surgir "laranjas" e milhares de novos madeireiros permutados. Na floresta, cortes de lotes sobrepunham-se, enquanto as populações locais observavam tudo cada vez mais esmagadas nas margens.
Para as comunidades a favor da chegada dos madeireiros, da pesquisa mineral de bauxita ou da instalação da agricultura mecanizada de soja, deixar a vida dura da exclusão em que vivem tornou-se um objetivo urgente. Ainda que tenham se dividido entre grupos que passaram a apoiar a entrada dos empresários, recebendo benfeitorias para isso, e os que os enfrentaram, recebendo ameaças, mas mantendo o sonho da autonomia. A comunidade Repartimento, no rio Aruã, foi a primeira a ceder. No rio Maró, o povoado de Fé em Deus tomou a frente, liderado por Manoel Benezildo Sousa, que passou a agrupar lideranças com ações financiadas pelos empresários. Os benefícios imediatos como um gerador mais potente, alguns salários e alguns empregos na extração da madeira, são de grande importância para quem vive na área. Mas podem ser considerados baixos se comparados ao valor em potencial das terras que estão em jogo. A contrapartida exigida para a chegada do progresso é a demanda por terras menores no processo fundiário em curso.
Contrárias aos madeireiros, as outras comunidades se organizaram com o sindicato dos trabalhadores rurais e os movimentos sociais da região. Decidiram lutar para garantir a terra de uso tradicional. Pelo menos, a maior fatia possível do bolo que estava sendo dividido. Esse é o lado do chamado Movimento no conflito instaurado na Nova Olinda.
Em uma terça-feira pela manhã, estive em Fé em Deus, para conhecer as reivindicações, demandas e os benefícios que têm sido distribuídos. Chovia, ventava, e o dia tinha um aspecto antipático. Eu havia sido informado de que poderia não ser recebido quando o barco que faz a linha de transporte até Santarém, o Crê em Deus, que levava as lideranças aliadas aos madeireiros para uma audiência pública na cidade, atracou junto ao que eu estava para me avisar: a minha presença na área não estava autorizada.
Não souberam informar do que se tratava a audiência pública para a qual haviam sido convocados - no caso, era para discutir a situação ambiental de um porto construído em Santarém, pela Cargill, para o escoamento da soja. Mas o transporte era pago.
Chegando em Fé em Deus, percebi um clima de tensão. Pessoas assustadas, conversas em voz baixa sobre a presença do forasteiro, olhares preocupados. Até que jovens líderes vieram informar que não seria realmente possível o diálogo na ausência de Benezildo de Souza e outras lideranças políticas. No pátio da escola vi tremularem bandeirinhas coloridas que anunciam a festa junina, marcada para o sábado seguinte. A comunidade borari Novo Lugar não vai ser convidada. Na festa deles tampouco alguém de Fé em Deus foi chamado. Sequer fui convidado para entrar na comunidade. A justificativa: eu estaria comprometido com o "outro lado". Nova Olinda, dividida, vive uma guerra fria.
"Não queremos conversa. Vocês vieram aqui criar índio. Nós queremos ficar em paz e resolver os problemas", disse um dos líderes da Fé em Deus. Atrás da roda de homens, gritou uma senhora: "A gente fala com vocês, depois vocês vão embora e a gente fica aqui, correndo perigo". O temor que ela expressa representa alguma repressão interna que aquele povo vive e sobre a qual não quiseram falar.
Em Fé em Deus e nas demais comunidades que se comportam como se tivessem sido pressionadas, também se desconfia de jornalistas. Quando têm interesse de que algo seja publicado, convidam aqueles vistos como pertencentes a "seu lado". Assim foi com um jornal local, de Santarém, o Impacto, e a revista Veja, que publicaram reportagens sob a égide de progresso e desenvolvimento. Ambos veículos de imprensa deixaram naquelas terras um rastro de desconforto que atinge qualquer jornalista que for para a Gleba, tornando infrutíferas qualquer tentativa de contato com os produtores rurais e os empresários.
Acompanhando um antropólogo de um instituto federal de pesquisa, interessado em compreender a relação das populações tradicionais com o Estado e sem nenhuma relação com questões étnicas, eu não havia sido levado por quaisquer dos dois lados do conflito por terras na região. Da mesma forma que os que desejam o progresso consideram terem "seus" jornalistas, também pensam disporem de antropólogos que os defendem. Nesse caso, eles contrataram Edward Luz, um antropólogo missionário, cuja missão é provar que nessa área não existem índios. Engajado de corpo e alma em acabar com o assunto, jovem líder evangélico na faixa de 30 anos, casado e pai de família, filho do pastor e presidente da Missão Novas Tribos do Brasil e formado em antropologia pela Universidade de Brasília, Edward Luz "nasceu e cresceu em berço missionário", o próprio me diz numa linda manhã de sol em São Paulo. Era o primeiro dia da primavera de 2009, a mesma época em que tinham início as revoltas no Arapiuns. Estávamos em uma sala confortável na Universidade Mackenzie, junto de uns 15 alunos. Ele ministrava um curso para ensinar outros missionários a traduzirem a Bíblia para línguas indígenas. A missão, aqui, é levar a palavra da religião protestante para povos indígenas de pouco contato ou mesmo isolados. Um caso de proselitismo, que causou ao pai de Edward Luz (os dois têm o mesmo nome) a expulsão do território dos índios Zo'é, quando o filho ainda era criança. Além do proselitismo, também foram acusados de genocídio pela Funai, em razão de epidemias que podem ter provocado. Os Luz, desde então, foram proibidos de entrar em terras indígenas na posição de missionários.
Contratado pela Associação Comunitária dos Trabalhadores Rurais do Aruã e Maró (Acutarm), que é ligada aos empresários, foi solicitado a Luz, segundo ele escreveu em uma carta à qual tive acesso, "que se inteirasse dos fatos que vinham transcorrendo na região da mesopotâmia do Maró e o Aruan" para orientar a associação. Ele esteve nas três comunidades que "se autointitulam indígenas", mas o acesso lhe foi negado. Ele quer analisar a situação étnica dos borari, que vivem em Cachoeira do Maró, Novo Lugar e São José. Essa demanda fundiária dos indígenas, dependendo dos cálculos da Funai, pode ficar entre 35 e 80 mil hectares. Edward sabe como funciona a Funai - ele já foi contratado pela própria para identificar terras indígenas do povo Kokama, na região do rio Solimões. Mas ele derrubou as pretensões da própria Funai e hoje responde a um processo.
A mais recente disputa de antropólogos sobre o tema ocorreu em meados de agosto, em Santarém, numa audiência pública. De um lado estavam Edward e Inácio Regis - intelectual local que também se apresenta como pesquisador e que também quer provar que aqueles índios, na verdade, não são índios, e que a terra deve ser destinada ao desenvolvimento. Em oposição estavam a antropóloga Manoela Carneiro da Cunha, professora aposentada da Universidade de Chicago, e Maria Rosário Carvalho, da Universidade Federal da Bahia.
Régis, que, procurado por e-mail, não respondeu a tentativas de entrevista, afirmou que os índios do Tapajós estão sendo induzidos a se assumirem indígenas. Luz disse que os vizinhos e parentes dos índios do Maró afirmam que eles não são índios. As duas mulheres foram polidas, e disseram que não estavam na área fazendo pesquisas de campo e, portanto, não poderiam opinar sobre o caso específico. Deixaram no ar, no entanto, que consideram essas comunidades indígenas sem colocar em questão a legitimidade da identidade.
Assim como minha presença na área foi notada com rapidez, o mesmo ocorre quando os órgãos públicos aportam para debates fundiários. De acordo com o relatório de um funcionário do Ibama que participou de uma fiscalização em 2007, a embarcação da equipe foi interceptada por uma lancha conduzida por Edson Taparello, na qual também estava Fernando Belusso, dono e gerente, respectivamente, da empresa Rondobel: "Indagaram para onde ia a equipe", escreveu o funcionário.
Os empresários estavam acompanhados de Manoel Benezildo e da repórter Gerciene Belo, do jornal Impacto. Convocaram uma reunião-surpresa, sem programação oficial - burocracia que se faz necessária para ter a presença de representantes públicos. A equipe do Iterpa cedeu à pressão e deslocou-se na lancha do empresário. O técnico do Ibama preferiu não comparecer, pois, segundo ele, tratava-se de transporte oferecido por uma empresa que tinha interesse direto no problema e isso poderia causar interferência na fiscalização.
O relatório do Ibama, cujo integrante não compareceu à reunião, descreve o que a funcionária do Iterpa lhe contou: "Os participantes decidiram pela regularização fundiária dos lotes comunitários na modalidade individual, conforme era desejo, também, dos empresários". A Terra Indígena Cachoeira do Maró está em processo de demarcação pela Funai. A última visita de funcionários do órgão ocorreu em setembro deste ano e buscava identificar fisicamente o local de ocupação. Para a Funai, não está em questão a autenticidade da reivindicação dos índios. "Não cabe ao Estado, ou à Funai, dizer quem é índio e quem não é", afirma Márcio Meira, presidente da entidade
A lei e a antropologia, segundo Meira, definem a legitimidade da afirmação étnica pela autodeclaração. "Índio é qualquer membro de uma comunidade indígena, que se reconhece como tal e é reconhecido pela comunidade como um membro", explica. É questão de afirmação social, histórica, econômica e cultural.
Na complexa teia de demandas por terras da Gleba Nova Olinda, a bola da vez é a criação do Projeto de Assentamento Estadual Agroextrativista (Peaex), que envolve as comunidades Vista Alegre e Prainha. Os títulos podem ser regularizados em cinco ou 25 mil hectares, em lotes individuais ou coletivos. E, para cada possibilidade, surge uma pressão contrária. É onde ocorrem os maiores achaques, já que a demanda dos boraris está nas mãos da Funai. Em Vista Alegre e Prainha também há divisão. Um lado, liderado por Márcio Crispim, na Prainha, e Sidiclei Fernandes dos Santos, na Vista Alegre, presidentes de associações locais montadas pelos empresários, pede ao Iterpa uma pequena área de cinco mil hectares e lotes individuais, de forma que vão poder seguir vendendo madeira para os empresários. A maioria se mostra contra esse posicionamento, mas não sabe como se manifestar oficialmente. Pedem um assentamento de lote coletivo, com cerca de 25 mil hectares - número próximo ao definido por uma pesquisa realizada pelo Museu Paraense Emilio Goeldi, e que identifica a área realmente ocupada pelo uso tradicional, incluindo reservas de caça e terras para plantações de mandioca, como entre 15 e 20 mil hectares.
Algumas associações comunitárias, como a Acutarm, estão unidas para a luta por uma terra menor. No dia 18 de junho ocorreu uma reunião com os empresários, os presidentes das associações, equipes do Iterpa e da Sema. "Os funcionários públicos não estavam capacitados juridicamente para a discussão fundiária. Estavam ali apenas para fazer vistorias dos planos de manejo de madeira", relatou um funcionário do Ministério Público que não quis se identificar. Isso não foi um empecilho, pois a reunião ocorreu, de acordo com um relatório do MP, inclusive com a presença dos madeireiros Rosenil Vaz, Francisco Souza e Alfredo Sippert.
Laurimar dos santos, o guariba, 63 anos, vive na Prainha e mostrou-se revoltado com a situação que está vivendo quando nos encontramos. Simpático, ele afirmou que não gosta de ir à cidade: "Lá nos tratam que nem bicho, nos chamam de índio". Santos não aceita um terreno de cinco mil hectares para toda sua família e comunidade. "Estão nos espremendo, vamos comer areia", esbraveja.
Contrário à posição de Santos está o desejo de Márcio Crispim, que me recebeu de uma forma também simpática, ainda que um tanto desconfiada. Crispim é presidente da associação da sua comunidade, mas ele não se lembra do nome. Diz que não precisam dessa terra toda. Sobre a associação que preside (mais tarde descobri que se trata da Ainorma), Crispim afirmou que nunca houve uma reunião ou assembleia, assumiu sem desconforto que é ligado aos madeireiros, e que por isso recebe um salário com carteira assinada. Está certo de estar contribuindo para o desenvolvimento da região. Mas em outra roda de conversa comentaram que ele deseja partir para Manaus com o dinheiro que tem recebido.
Crispim é amigo de Sidiclei, pastor evangélico da Vista Alegre, que por sua vez é amigo de Edward Luz, o antropólogo missionário. Sidiclei também luta para convencer sua comunidade a aceitar um território menor, ajudar os empresários e receber benefícios e investimentos em troca. Só que Sidiclei deu uma derrapada no terreno da ética, logo após o episódio do fogo no Arapiuns. E foi obrigado a retratar-se publicamente de seus atos, acusado de achacar sua própria comunidade. Ele havia escrito uma carta, "impulsionado pela raiva da informação que foi repassada para nós", em suas palavras, e resolveu escrever outra em seguida, para as autoridades, desmentindo-se da primeira. As duas cartas estão com o Ministério Público do Estado. A primeira é um abaixo-assinado organizado por ele, no qual a comunidade abria mão de 20 mil hectares em favor das empresas madeireiras e do desenvolvimento regional. Mas a história não foi bem assim, segundo Sidiclei. Em 7 de dezembro passado, ele assinou a segunda carta, direcionada ao Iterpa, na qual constava: "A lista foi feita como um abaixo-assinado das pessoas que queriam um gerador e não dos que queriam a ampliação da área da comunidade... quem foi coletar essas assinaturas fui eu... quando conversava com os moradores, explicava que era uma lista para conseguir o gerador". Resumo: o abaixo-assinado que ele mesmo organizou foi feito para pedir a diminuição de terras, e não para ganhar um gerador elétrico.
Sidiclei abriu para o Iterpa o jogo para reduzir o território comunitário. Mas seguiu lutando ao lado daqueles que ofereciam o gerador em troca de madeira de lei. As doações têm sido feitas, e a comunidade tem se mostrado receptiva com as benfeitorias. De acordo com o que se ouviu numa recente visita do MP à Vista Alegre, disseram que "receberam doações de seu Francisco Souza, ganharam um grupo gerador, fiação elétrica, vão construir um templo". Eles "preferem ficar com os cinco mil hectares e ter certeza de que terão os empregos com os empresários madeireiros". A promotora de justiça também os ouviu dizer que "há pessoas empregadas de carteira assinada e que recebem direitinho e que a vida melhorou bastante e acham que pode melhorar ainda mais".
Desde que a indústria madeireira passou a sofrer com a repressão à extração ilegal, a partir de 2008, o Oeste paraense foi alçado à posição de um dos grandes fornecedores do mercado. No último ano houve um crescimento de 76% das autorizações de manejo florestal, segundo o jornal Folha de S. Paulo. Operações de fiscalização têm sido realizadas - inclusive, contando com apoio logístico dos madeireiros. Por vezes são distribuídas multas. Os bens apreendidos, como carretas, motosserras, tratores, quando pegos em flagrante, têm sido liberados pela Justiça Federal de Santarém. E, por mais que os fiscais do Ibama percebam que há algo estranho no ar, eles não têm conseguido comprovar. E, em ano eleitoral, um dos setores mais importantes da economia do estado, o setor madeireiro passou a ter ainda mais influência política. "A gente sabe que tem coisa errada, que extraem madeira fora do plano. O problema é que é difícil provar", afirma um ex-funcionário do Ibama local que também não quer se identificar.
No caso do incêndio das balsas, como nem o IBAMA nem a Sema conseguiam provar as ações ilegais na região, e a demanda fundiária não foi resolvida, surgiu a revolta. Para reagir contra a retirada da madeira e a falta de definição dos títulos de terras, os moradores da Gleba Nova Olinda se juntaram com os ribeirinhos e indígenas do Arapiuns e apreenderam as duas balsas.
Diversas lideranças comunitárias estavam presentes. Agiam de forma coletiva. Mas uma personalidade, já de destaque no movimento social de resistência, foi acusada de ser uma das responsáveis e responde judicialmente pelo ato, junto de um grupo de líderes. É Dadá, do Novo Lugar. "Sou perseguido", ele diz. Tem sido assim desde que ele fez um curso de agente ambiental do Ibama, em 2003, época em que teria iniciado sua luta política.
Foi nos tempos do Ibama que Dadá, com acesso a relatórios de fiscalização e autorizações de manejo de madeira, descobriu a chegada dos madeireiros na área e passou a organizar a resistência. Com ele estavam Edil e Valnei, líderes de suas respectivas comunidades (Novo Lugar, Cachoeira do Maró e Sociedade dos Parentes). Esses dois tiveram de fugir da região, sob escolta do programa de proteção, para não serem mortos. Dadá ficou: "O que adianta eu ter uma proteção fora, se na aldeia vão ficar meus filhos, minha esposa, minha mãe, meus tios? Se querem me proteger, que seja na minha casa, na aldeia".
José Heder Benatti, presidente do Iterpa, diz que está informado das negociações por terra que estão ocorrendo sob pressão e achaque. Justifica que o Estado está tomando providências para regularizar a região e consertar os erros anteriores. "As comunidades estão sendo ouvidas, com prioridade, sobre o uso tradicional da terra", afirma, lembrando que isso não ocorreu quando transferiram os madeireiros.
Se insistirem em trocar um gerador por 20 mil hectares, Benatti diz que o instituto vai negar a titulação. "Essa pressão vai ser inócua", garante. "A área vai ser formalizada, junto ao Ministério Público, com referência ao estudo do Museu Goeldi. Eles vão ter direito à área que ocupam e usufruem." Se a programação correr da maneira que ele espera, em três anos o Oeste do Pará, que era uma área esquecida, terá regularizado 1,3 milhão de hectares. No entanto, "período eleitoral não é muito favorável para esse tipo de conversa", pondera o presidente do Iterpa. Outro problema é que, enquanto isso, a valiosa madeira que pertence em parte às comunidades, e em parte ao patrimônio público, terá sido escoada por mãos privadas.
"Eu tenho medo", relata a mãe de dadá. Dona Edite assistiu seu filho chegar em casa ferido após o espancamento, a casa dele ser queimada na aldeia, e, neste ano, o outro filho, Poró, também chegar em casa espancado, em maio último. "Dizem por aí que não tem conflito", ela diz, em alusão a declarações de lideranças de Fé em Deus e Vista Alegre. "Isso é mentira! Aqui tem conflito, e temo por meus filhos. Eu fico muito preocupada. Tem noite que não durmo. Fico tensa quando vão à cidade. Sonho que meu filho pode estar sendo morto", desabafa a senhora. "Eu tenho muito medo."
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