Chega ao fim a era Lula. Sem ele, conseguirá o Brasil manter o protagonismo entre Washington e Teerã a partir de 2011?
Por Rodrigo Barros e Ulisses Neto Publicado em 02/12/2010, às 14h23
Oito anos após a histórica posse de um metalúrgico na Presidência da República, o Brasil entra em uma nova fase: o pós-lulismo. E a política externa será uma das áreas que terão de evoluir com os erros e os acertos do passado. O período de transição de governo abrirá o horizonte que se anuncia. O mundo está otimista.
Ninguém questiona a imagem positiva conquistada na última década pelos brasileiros - o que é facilmente percebido nos grandes fóruns, nas páginas da imprensa estrangeira e até mesmo nas sandálias de borracha das esbeltas jovens europeias. Resultado da política econômica em curso desde 1994, aliada à conjuntura global dos anos 2000, dizem friamente os analistas do mercado financeiro e os especialistas do campo diplomático.
Os admiradores de Luiz Inácio Lula da Silva rebatem de forma apaixonada, afirmando que o país só saltou aos olhos do mundo depois de eleger um retirante nordestino que pouco domina a sintaxe da língua portuguesa. Mas que ainda assim é capaz de hipnotizar multidões em seus discursos. O conjunto desses dois fatores resultou na ascensão de uma nação que hoje tem sua opinião respeitada, e que cobra cada vez mais participação nas decisões internacionais. A política externa brasileira pode ser definida como um sucesso.
Em meados de 2008, quando os títulos podres do mercado imobiliário norte-americano sacudiram o sistema financeiro mundial, Lula não perdeu a chance de criticar os países ricos pela confusão criada na economia do planeta. "A culpa é da gente branca, loira, de olhos azuis." Os 'ricos' entenderam a mensagem. E convocaram os emergentes na tentativa de encontrar a solução do problema. Consolidava-se assim o G-20 (grupo das 20 maiores economias), bem mais representativo que o até então repudiado (pelos excluídos, é claro) G-8, clubão dos superdesenvolvidos, que se reúne anualmente no aprazível balneário suíço de Davos.
Mas nem tudo são flores nas relações diplomáticas brasileiras com os governos de estados estrangeiros. Os louros da empreitada, conquistados a partir do avanço no campo econômico, injetaram ânimo para voos maiores. E o Itamaraty decidiu que deveria tentar resolver a complexa questão do Irã. Nesse aspecto, a política externa pode ser definida como fracasso.
Em maio deste ano, Lula viajou a Teerã para se reunir com o presidente Mahmoud Ahmadinejad e o primeiro ministro da Turquia, Recep Erdogan. Sorridentes, os três líderes posaram de mãos dadas para as câmeras, anunciando acordo para enriquecer urânio de forma segura e responsável. Chegava ao fim o temor da fabricação de uma bomba atômica e o impasse que se prolongava havia anos, pensou o chefe do Planalto.
Menos de 24 horas depois, a secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, passou o recado: "Embora reconheçamos os sinceros esforços do Brasil e da Turquia, o grupo mediador vai liderar a comunidade internacional na busca de uma resolução com sanções fortes ao Irã".
Dito e feito. Pouco depois, os Estados Unidos conseguiram aprovar uma nova rodada de restrições econômicas e diplomáticas contra o governo de Ahmadinejad no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), ignorando por completo o acerto firmado entre Brasil e Turquia no Oriente Médio. Lula e o chanceler Celso Amorim não gostaram, mas aderiram às sanções aprovadas na entidade.
"O presidente Lula assinou o decreto porque tem a tradição de cumprir com as resoluções do Conselho de Segurança mesmo quando não concorde com elas, por ser fiel ao multilateralismo e por ser contra decisões unilaterais", amenizou o contrariado ministro das Relações Exteriores.
Para os críticos, o país tem investido em uma diplomacia amparada demasiadamente no prestígio pessoal do presidente Lula, que muitas vezes acaba agindo de forma atrapalhada. A conclusão natural é que, sem o estadista no Planalto, seria difícil para o próximo governo sustentar algumas das posturas adotadas nos últimos anos. O destaque no cenário mundial está assegurado, mas há uma latente necessidade de "decantamento" do que fora realizado até então. O caminho, garantem, segue no amadurecimento do plano exterior e no comprometimento em enfrentar o que ficou para trás, por exemplo, do ponto de vista doméstico. É preciso promover as reformas de segunda geração (política, tributária e judiciária) para alcançar maior crescimento econômico, desenvolvimento da infraestrutura e, com isso, um prestígio ainda mais consolidado na cena internacional.
No caso das empreitadas brasileiras nos grandes conflitos que afligem o planeta, como no Oriente Médio, teria o Itamaraty sido leniente por não conseguir falar "não" ao próprio presidente? É possível incentivar o protagonismo bloqueando iniciativas que não se mostraram saudáveis?
"A política externa do presidente foi muito criativa, abriu novos caminhos, diversificou parcerias, inventou, por assim dizer, novas fórmulas de trabalho no plano internacional. E isso foi muito positivo", avalia o diplomata Roberto Abdenur, embaixador em Washington durante o primeiro mandato de Lula.
Mas os elogios param por aí. A análise é que, sobretudo na etapa final dos oito anos de governo, o chefe da nação teve rompantes comprometedores, "certos transbordamentos, certos equívocos, certas distorções na diplomacia, que fizeram com que muito do capital político que o presidente tinha conquistado tenha sido, se não de todo perdido, pelo menos, seriamente prejudicado", considera Abdenur.
No entanto, para o diplomata, que tem mais de 40 anos de carreira, em se tratando de projeto para o mundo, os governos não podem ficar parados. Lula pôde acelerar o ritmo e ganhar terreno no cenário dos grandes debates graças ao êxito na economia, a novas iniciativas, como nas questões climáticas, e a um ambiente internacional favorável.
Ao mesmo tempo, pecou ao se aproximar de forma "excessiva e desprovida de qualquer fundamento" de governos como o da Venezuela, o da Bolívia, o da Nicarágua, o de Cuba e, principalmente, o do Irã. "No caso de Ahmadinejad, em especial, cai a palavra excessiva", aponta Abdenur, "pois qualquer confraternização desse tipo é um grave erro, que tem custado muito ao Brasil."
A investida do Itamaraty no Oriente Médio trouxe desgastes evidentes para a imagem nacional. Hillary chegou a insinuar que os brasileiros eram "ingênuos" e estavam sendo usados pelo Irã, que, na visão dela, buscava ganhar tempo para construir sua bomba atômica.
O comentário, ainda que sutil, reflete o desagrado dentro do Departamento de Estado, em Washington. Um alto diplomata do governo americano, que devido à delicadeza do tema prefere não ser identificado, vai direto ao assunto: "O Brasil tentou se envolver em um caso bastante complexo. O Oriente Médio é para iniciados. É preciso muita experiência para poder lidar com tal situação."
Nesse sentido, o Brasil teria se precipitado, segundo o ex-ministro das Relações Exteriores de FHC, Luiz Felipe Lampreia. "O caminho como protagonista mundial de maior peso está apenas no início", diz. "Estamos ainda começando a encontrar o nosso plano de atuação. Certamente, não podemos fazer como no caso do Irã, que foi uma iniciativa pouco feliz." E ele avança: "Demos um passo maior do que podíamos, nos envolvemos numa situação que não nos diz respeito."
Sendo assim, a partir de 2011, deverá a chancelaria brasileira ter uma atuação mais discreta no palco internacional? Apesar dos imprescindíveis consertos a serem realizados, Lampreia espera que não. "Isso que você chama de 'discreto', se corresponder a um certo afastamento, não será bom para o país. O Brasil deve ser presente, atuante."
Sob a ótica europeia, a análise ganha um novo sentido. O gigante sul-americano estaria mais para um articulador-chave na governança global. Um 'player' de destaque, utilizando o jargão da diplomacia. Para Julia Buxton, Ph.D em ciências políticas da Universidade de Bradford, Inglaterra, o país trouxe uma voz muito importante para o debate nuclear e deve manter essa linha.
"A Europa vê o Brasil como um contrapeso das posições e da influência dos EUA no continente americano", ela conta, "por mais que existam críticas até mesmo internas à atuação brasileira no cenário internacional, posso dizer que, na perspectiva europeia, o Brasil é um 'player' muito importante, que queremos ver cada vez mais atuante nas negociações".
O Itamaraty é respeitado, segundo ela. "Acredito que muitos por aqui ficariam preocupados se não houvesse essas negociações com Cuba, Irã, Venezuela e países como esses."
A especialista reconhece que o peso do Estado é maior que a figura do presidente Lula. E explica que a comunidade internacional, em especial a Europa Ocidental, vai receber a nova diplomacia brasileira com enorme atenção, e trabalhar com ela nas negociações globais. "Ninguém está muito preocupado com a saída de Lula do Planalto", finaliza de forma incisiva.
Não há dúvidas de que a personalidade do presidente tem um impacto muito importante do ponto de vista externo. Mas o papel como ator global se deve principalmente a questões estruturais internas e externas, de acordo com o analista político argentino Jorge Castro.
"E essa liderança não vai mudar porque Lula não estará mais em Brasília." Castro é presidente do Instituto de Planeamiento Estratégico de Buenos Aires, entidade especializada em análise de potencial de uma região e de seus personagens políticos em escala mundial.
O Brasil era apenas uma potência regional da América do Sul até oito anos atrás. De 2003 para cá, a divisão de poderes ao redor do globo mudou. E isso aconteceu de forma mais acelerada a partir da crise financeira internacional de 2008, quando os emergentes, responsáveis por 75% da expansão do PIB do planeta, ganharam voz ativa.
Atualmente, o maior parceiro comercial brasileiro é a China. Os asiáticos crescem na casa de dois dígitos há anos e invadem economias mundo afora com seus produtos que vão de inócuos parafusos a complexos semicondutores. Logo, o Dragão do Oriente também acompanha de perto o que acontece por aqui. E aguarda os rumos que o país deve tomar.
"Quando você tem, como neste ano, US$ 15 bilhões em investimentos em um lugar, é claro que vai ficar de olho", conjectura o diretor da Câmara de Comércio Brasil-China, Kevin Tang. O executivo detalha que as trocas comerciais entre as duas potências emergentes saltaram de US$ 2,5 bilhões em 2000 para quase US$ 50 bilhões em 2010. E que o comércio bilateral só tende a crescer.
Tang explica que o governo de Pequim monitora "possíveis alterações nas regras brasileiras para exploração de petróleo, participação estrangeira em determinados setores da economia, aquisição de terras para mineração" e tudo o mais que possa ajudar a China a alcançar o topo do mundo.
Palpitar sobre a política alheia? Jamais! "Até porque a China não admite que outros países queiram interferir em assuntos internos", define Tang, que também aposta na continuidade do sucesso brasileiro.
Ao que parece, o que a China quer mesmo é dinheiro. O interesse é maior para certos tipos de investimentos, como o que se destina à compra de terras produtivas ou recursos de matéria-prima. Mas o controle da economia tende a limitar a negociata estrangeira.
"Acho que isso o Brasil faz bem", avalia o diplomata Rubens Ricupero, ex-ministro da Fazenda de FHC, considerado uma espécie de 'pontífice' do Plano Real. "Não é do nosso interesse um investimento de fora
muito concentrado em áreas de recursos naturais ou de terras que escapem do nosso controle. Pode ser que ocorram novas restrições aos estrangeiros, mas isso será algo bastante razoável", prevê.
Ricupero comandou a embaixada em Washington durante o governo Fernando Collor. Ele alerta que a política externa atual pode ter repercussões também no lado econômico. Lobistas já estariam pressionando o Congresso Americano por retaliações financeiras, em resposta à aproximação do Brasil com o Irã. Mas ele não acredita que haja um prejuízo iminente. Ainda assim, é bom ter cautela.
Ricupero reforça: "A relação com Teerã pode atrapalhar, se dependermos de uma decisão dos congressistas a respeito de nossa permanência no Sistema Geral de Preferências [SGP - mecanismo que prevê isenção de tarifas de importação para determinados produtos de países em desenvolvimento] dos Estados Unidos".
Engrossa o coro de questionamentos sobre as amizades brasileiras, o diretor do Centro para o Desenvolvimento Internacional da Universidade de Harvard University, Ricardo Hausmann. Ele não se acanha na hora de criticar a postura de Lula na esfera global. "Está se automutilando porque não tem sido um parceiro confiável", dispara o especialista sem meias-palavras.
Hausmann fala que há uma certa "arrogância macroeconômica epidêmica" devido aos bons resultados na economia. Por isso, segundo ele, o governo tem acreditado que pode fazer o que bem entender nas mesas de negociação. "A política externa está sendo usada para atender às alas mais radicais de esquerda do partido", completa o professor de Harvard, citando os casos do Irã, da Venezuela e de Honduras.
Para ele, há uma confusão entre boom econômico temporário e crescimento sustentado. "Imagine-se em um mundo em que a China não está crescendo tanto, onde os preços das commoditties estão caindo, os recursos para financiamento, mais escassos, e o consumo interno desacelerando. Então, o que vai acontecer?" E ele segue: "O país vai precisar de um governo com a cabeça fria, para que possa ter uma visão clara dos obstáculos a serem enfrentados. Nós não temos visto isso no Brasil", conclui, aguardando a troca de comando no Planalto para que o governo "volte a pôr os pés no chão".
Larry Rohter é velho conhecido dos brasileiros. O jornalista norte-americano foi correspondente do The New York Times. Protagonizou o mais emblemático episódio de atrito entre o presidente Lula e a
imprensa internacional. Em 2004, Rother escreveu: "Luiz Inácio Lula da Silva nunca escondeu seu apreço por um copo de cerveja, uma dose de uísque ou, melhor, um trago de cachaça, a potente aguardente do Brasil. Mas alguns de seus conterrâneos começaram a se perguntar se a predileção do presidente por bebidas fortes está afetando sua atuação no governo".
Foi o suficiente para a Presidência tentar expulsar o repórter. Só que a canetada teve o efeito inverso e gerou mobilização. A imprensa brasileira, mesmo não tendo apoiado o texto, defendeu a liberdade de expressão. O Judiciário agiu rápido e decidiu manter o visto do norte-americano, que permaneceu no país até 2007.
"Águas passadas", ele garante. Mas não esconde o desconforto ao relembrar o assunto. "Para mim é difícil falar sobre o Lula porque todos dizem: 'Ah, você teve aquele episódio desagradável, então está sempre contra o presidente'. Não, não estou. Quero dar uma opinião neutra", desabafa.
Rohter passou quase uma década no Rio de Janeiro. É casado com uma brasileira há cerca de 40 anos. E acaba de publicar o segundo livro baseado nas experiências que teve no país, chamado The Rise of Brazil (em tradução livre, "A Ascensão do Brasil").
"Esse é um país com peso geopolítico e econômico que independe do presidente", Rohter fala. "O Brasil, como oitava maior economia do mundo, tem uma força que tende a crescer. Nesse nosso planeta, infelizmente, o dinheiro fala alto. E isso dá ao Brasil uma imagem de um país bom, pujante, que está tomando o seu lugar nas mesas das grandes potências." O jornalista enfatiza: "Talvez, a diplomacia brasileira, a partir do ano que vem, modere um pouco a sua campanha para conseguir um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Foi um esforço de oito anos que não deu o resultado desejado".
O correspondente do diário El País, Francho Barón, desembarcou no Rio de Janeiro no verão de 2006, após uma temporada de quase uma década em Bruxelas. Três anos depois, sentiu na pele que nem tudo é sucesso econômico e reflexo do carisma de Lula.
Em uma tarde de outubro de 2009, o espanhol foi rendido por traficantes fortemente armados no Morro dos Macacos, após o confronto que resultou no abatimento de um helicóptero da Polícia Militar, dias depois de a capital fluminense ser eleita sede dos Jogos Olímpicos de 2016. O repórter se identificou como jornalista estrangeiro, e chegou a implorar para que o liberassem, depois de mostrar que não tinha nenhum material que pudesse comprometer os bandidos. Depois que foi publicado nos jornais europeus, o assunto teve grande destaque na imprensa internacional.
Apesar da experiência aterrorizante, Barón acredita que começa uma nova etapa. Não só de continuidade e consolidação do que o governo brasileiro produziu, mas de questões que ainda precisam ser solucionadas, como ele aponta: "Questões de educação, fratura social e pobreza, que, mesmo tendo diminuído muito nos últimos anos, continuam em proporções preocupantes". O espanhol revela otimismo quase "lulista" ao afirmar que "tudo isso, dentro de um processo, irá melhorar nos próximos anos".
Barón ainda acha que a tendência é que o Brasil ganhe cada vez mais espaço no noticiário, "com uma cobertura que se assemelhe à de países desenvolvidos, como França, Inglaterra e Estados Unidos. Ainda não chegamos a esse nível, mas estamos nos aproximando", uma vez que "a tendência é de que os brasileiros atraiam cada vez mais audiência do mundo. Até porque à frente há eventos como a Copa e as Olimpíadas."
Será preciso aguardar o novo governo para ver as modificações na política internacional. Mas, ao que tudo indica, os interesses do Brasil serão os mesmos. Há um caminho definido. Não haverá aventuras ou o medo de que, de repente, haja uma guinada abrupta. O sistema político está consolidado. E há consenso sobre o rumo a seguir.
No geral, não há uma grande ansiedade sobre o que vai acontecer a partir do ano que vem. E isso representa uma boa e uma má notícia para o país. Boa porque o Brasil não é um problema, não é uma Venezuela, não é um Oriente Médio, o que vai aparar algumas arestas com o mundo lá fora. Por outro lado, uma postura muito mais relevante na mesa dos Estados de peso significa ter algumas cotoveladas com os Estados Unidos e outras nações.
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