O jeitinho brasileiro foi essencial no processo de transição do Vale-Tudo para o MMA
Murilo Basso Publicado em 15/06/2012, às 11h56 - Atualizado às 11h56
A prática de lutas sem regra – o popular vale-tudo – existe desde a Grécia antiga. Mas foi no Brasil, em meados da década de 20, que elas começaram a ganhar popularidade.
Nascido no Pará, Carlos Gracie desejava provar que o jiu-jítsu, a arte marcial que aprendera anos antes com o mestre japonês Mitsuiyo Esai Maeda, o popular Conde Koma, era a mais completa de todas. Naquele início da década de 30, já morando no Rio de Janeiro e embora já tivesse derrotado lutadores das mais diversas modalidades, Gracie foi criticado publicamente por um estivador mestre em capoeira conhecido como Samuel. Ofendido, Gracie resolveu desafiá-lo. Sem um consenso sobre as normas do duelo, foi decidido então que não haveria regras. A luta durou dez minutos. O público, receoso de que Gracie matasse o estivador, interrompeu o combate. Como não houve desistência e Samuel manteve a consciência, oficialmente a luta não teve um vencedor.
Tais desafios se tornaram comuns na cidade. Posteriormente, Gracie ensinou o jiu-jítsu aos irmãos. O caçula, Hélio, aperfeiçoou ainda mais a técnica, dando origem ao que ficou conhecido como “Brazilian Jiu-Jítsu”.
“A família Gracie desafiava diversos atletas para provar a superioridade do jiu-jítsu”, conta João Alberto Barreto, membro da academia Gracie durante os anos 50 e aluno de Hélio. “Na verdade, na época, era a única arte marcial presente no Rio. A premissa básica era provar que se tratava da técnica mais completa e eficaz perante as demais.”
“O MMA [mixed martial arts, ou artes marciais mistas] não é apenas uma modalidade”, continua Barreto, “é, em essência, a grande marca do vale-tudo e do jiu-jítsu brasileiro. E Hélio Gracie foi fundamental para esse processo. Com 73 kg, ele vencia adversários de 120 kg. E foi derrotado uma única vez, por um aluno.”
Mesmo sofrendo o preconceito de grande parte da sociedade, o vale-tudo brasileiro teve grandes momentos nos anos 50. Personalidades políticas como Carlos Lacerda e Getúlio Vargas foram alunos da família Gracie; em 1950, na inauguração da TV Tupi, a primeira emissora brasileira, foi exibido um confronto entre a academia Gracie e três trabalhadores portuários; anos mais tarde, a TV Continental passou a exibir ao vivo o programa Heróis do Ringue, comandado por Gracie.
Nos anos seguintes, a tradição da família foi mantida. Durante a década de 70, Rickson, Relson e Rorion, filhos de Hélio, venceram lutas em um desafio entre praticantes de jiu-jítsu e de carate no Clube Olímpico do Rio. “A verdade é que os Gracie sabiam que a modalidade deles era a melhor e mais completa, em uma época em que Hollywood insistia em reforçar o modelo ‘vendido’ pelo Bruce Lee”, explica Marcelo Alonso, comentarista do canal Combate.
Alonso aponta dois eventos definitivos para a história do vale-tudo nacional: em 1983, Rickson Gracie aceitou a revanche proposta pelo mítico lutador Rei Zulu – Rickson já o havia derrotado três anos antes – e aproximadamente 15 mil pessoas compareceram ao Maracanãzinho para assistir a uma nova vitória do brasileiro. Um ano depois, outro evento ocorreu no mesmo local: cinco lutas nas quais representantes do jiu-jítsu Gracie enfrentariam oponentes de outras modalidades. “Era algo bem pessoal e, em alguns momentos, extrapolava para problemas de rua. Eles resolviam isso no ringue. A partir daí, o Rickson ganhou fama e foi para os Estados Unidos”, conta Alonso.
Rorion e Royce seguiram o mesmo caminho do irmão e começaram a ensinar jiu-jítsu na garagem de casa. Já vivendo na Califórnia, Rorion voltou a desafiar os amigos para provar a superioridade do jiu-jítsu. A garagem dos Gracie se tornou tão popular que ele passou a ensinar a arte marcial com tempero brasileiro também para atletas norte-americanos. Mais tarde, em conjunto com um dos alunos, o publicitário Art Davie, surgiu a ideia de dar origem a um torneio que pudesse apontar o melhor lutador. Em parceria com John Milius, roteirista e diretor de Hollywood (de Apocalypse Now), criaram, em 1993, o Ultimate Fight Championship.
O UFC 1 foi realizado no dia 12 de novembro do mesmo ano, em Denver (Colorado) e contou com oito participantes, que se enfrentaram em caráter eliminatório. Mais de 2.800 pessoas compareceram à McNichols Sports Arena naquele dia. Quase imbatível, Royce Gracie venceu três das quatro primeiras edições – apenas no UFC 3, foi forçado a desistir, já nas semifinais.
Os eventos foram transmitidos ao vivo, em pay-per-view, e as expectativas foram superadas: 85 mil pessoas acompanharam o primeiro evento pela televisão. Já o UFC 2 atingiu 120 mil telespectadores enquanto a terceira edição chegou à marca de 170 mil pacotes comercializados.
Outro brasileiro pode ser apontado como responsável por mudar os rumos do esporte. Em 1995, Marcos Ruas venceu o UFC 7 misturando técnicas de muay thai e jiu-jítsu, mostrando que o vale-tudo não deve provar a superioridade de determinada arte marcial, mas sim se tornar uma modalidade interdisciplinar.
Em 1996, o senador republicano John McCain inicia uma campanha contra o vale-tudo nos Estados Unidos – a prática do esporte chegou a ser proibida em 36 estados norte-americanos. “Rolou um lobby pesado contra o esporte”, analisa Alonso. “Mas então, pouco tempo depois, Dana White teve a sensibilidade de perceber a decadência do boxe, notar que não havia esporte para preencher essa lacuna e iniciou o processo de transformação do UFC.”
De fato, em 2001, após anos de tentativas, o UFC estava prestes a fechar as portas. “Eu já trabalhava para a organização nesse período e, embora soubessem que tinham um dos maiores esportes na mão, os eventos terminavam com prejuízos entre US$ 150 mil e US$ 230 mil”, conta o brasileiro Mario Yamasaki, hoje considerado um dos principais árbitros em atividade do UFC.
Dana White, um antigo boxeador amador e, na época, empresário do lutador Tito Ortiz, percebeu que o UFC passava por uma crise financeira. Ele entrou em contato com dois amigos de infância, Lorenzo e Frank Fertitta, donos de cassinos em Las Vegas, que acabaram por comprar a organização e, consequentemente, nomearam White o presidente do UFC.
“Quando eu era moleque, já dizia que o MMA se tornaria maior que o boxe. Mas o Dana percebeu isso antes”, conta o brasileiro Demian Maia, lutador peso-médio da organização. “O mérito dele foi transformar o UFC em um produto comercial, em algo vendável, e não mais tão agressivo.”
Para Maia, o MMA é mais facilmente compreendido pelo grande público quando comparado a esportes como tênis, beisebol ou futebol americano. “Mesmo quem não conhece os detalhes consegue ter uma noção”, diz. “Vem daquela suposta especialização: no Brasil todo mundo é técnico da seleção. Então, todo mundo é um pouco lutador, afinal, quando era criança, ao menos uma vez na vida teve que brigar.”
As mudanças nas regras das lutas foram fundamentais e gradativas. No UFC 14, as luvas se tornaram obrigatórias, enquanto no UFC 15 foram proibidos golpes na parte de trás da cabeça. Já no UFC 21, ocorreu a implementação dos rounds de cinco minutos. Finalmente, em 2000, foram criadas as Regras Unificadas de Conduta do Mixed Martial Arts.
“Além da visão comercial que o Dana e os Fertitta inseriram no esporte, a evolução nas regras foi fundamental para a popularização do MMA”, diz Yamasaki. “Tornou-se algo mais dinâmico, palatável e, principalmente, viável para a TV. Nenhum canal aberto transmitiria lutas de três horas. E se o fizesse, pouca gente chegaria até o fim.”
Alonso aponta mais duas “cartadas” fundamentais de White para o esporte alcançar a dimensão que tem hoje: “Ele trouxe a comissão atlética que originalmente trabalhava para o boxe para ajudar o UFC. Com isso, ganhou a crítica especializada. E, claro, criou o reality show The Ultimate Fighter”.
Exibido há sete anos nos Estados Unidos, o TUF é elemento fundamental na mudança de patamar do UFC: a partir de sua exibição, o esporte – antes visto como algo extremamente violento – passou a retratar o lado humano dos lutadores, o que favoreceu a proximidade entre o público e os combates do octógono.
“Antes do TUF, as pessoas não conheciam a fundo o esporte”, crê Maurício “Shogun” Rua, ex-campeão dos pesos-médios. “Outro fator fundamental foi quando deixamos de usar o nome ‘vale-tudo’. Pode parecer uma mudança simples, mas a ideia intrínseca a esse nome já provoca certa rejeição.”
White defende o UFC como se fosse um filho. Em 2007, comprou por US$ 70 milhões o Pride, evento concorrente que existia há mais de dez anos no Japão, apenas para extingui-lo. Já o StrikeForce, semelhante ao UFC, foi adquirido por ele no ano passado.
Para Rodrigo “Minotauro” Nogueira, peso-pesado da organização, hoje o MMA tomou grandes proporções e atingiu várias esferas de trabalho, gerando um maior número de eventos e, consequentemente, um maior interesse por parte de atletas e público. “O esporte é profissional, já é possível viver dele”, ele conta. “A aceitação do público, a humanização do atleta, desvinculação do MMA como esporte violento e a entrada de grandes patrocinadores são fatores que contribuíram e muito para todo esse crescimento.”
Hoje, o UFC é uma das marcas esportivas mais representativas do mundo; se há dez anos foi comprada por US$ 2 milhões, em 2011 teve 10% de suas ações vendidas ao xeque Tahnoon Bin Zayed Al Nahyan, dos Emirados Árabes Unidos, por US$ 200 milhões. Recentemente, a organização chegou a um acordo com a Fox para a transmissão em canal aberto nos Estados Unidos. A Zuffa, detentora da marca, tem sede em Las Vegas e escritórios na Inglaterra, no Canadá e na China.
“O nível de profissionalismo com que tudo é tratado é algo absurdo. Não deixa nada a desejar quando comparada a qualquer outra liga norte-americana, seja a NHL, a NBA ou até mesmo a NFL”, diz Demian Maia. “A verdade é que o americano sabe como ninguém aperfeiçoar qualquer esporte.”
Minotauro acredita que a popularidade do MMA serve para coroar a representatividade dos brasileiros e aponta outro fator para o sucesso no país: “O Brasil estava carente de novos heróis no esporte, e hoje temos campeões nos principais eventos de MMA do planeta”.
Embora o processo tenha sido mais rápido do que o ocorrido em solo norte-americano, para os atletas, hoje o UFC no Brasil tem a mesma dimensão do que lá fora. “Eu até brincava: ‘Vamos lutar nos Estados Unidos, é nossa semana de popstar’. Hoje somos mais reconhecidos quando lutamos aqui”, conta Shogun.
“Isso não aconteceu aqui antes porque temos um raciocínio colonizado”, define Alonso. “Precisamos que o americano torne o produto melhor para aceitarmos. A própria televisão demonizou o MMA por anos, mas agora se rendeu aos números que, na verdade, mostram que estamos falando do esporte que mais cresce no mundo.”
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