Em 3D, em movimento, sem joysticks: de olho no futuro e esbanjando inovações, feira E3 proclama a inevitável evolução da indústria dos games
Por Pablo Miyazawa Publicado em 17/08/2010, às 07h29
Apesar de sustentada pela infalível tríade "sexo, drogas e rock and roll", a indústria da música não possui um grande evento que a represente em caráter mundial. O mais próximo disso talvez sejam os festivais de verão que ocorrem aos diversos no hemisfério norte, mas a vasta diversidade de palcos, estilos e artistas não deixa que uma verdadeira unidade se caracterize. Parece contraditório, mas a relativamente comportada indústria dos videogames há anos possui uma festa exclusiva para chamar de sua. A Electronic Entertainment Expo - mais conhecida pela sigla "E3" - ocorre anualmente em Los Angeles (Califórnia), sempre entre os meses de maio e junho, e reúne em um único centro de convenções os principais fabricantes de consoles e jogos eletrônicos do planeta.
A entrada no evento é restrita a jornalistas, varejistas e profissionais do segmento, mas o clima generalizado é de balada em plena luz do dia. À sua maneira, cada empresa tenta atrair a atenção com telões robustos, mulheres em trajes mínimos e elaboradas alegorias baseadas em seus futuros lançamentos.
Já faz tempo que os videogames não são mais considerados produtos endereçados só ao público infantojuvenil. O fenômeno, se é que pode ser descrito assim, é gerado pelo fato de a maior parte do público de jogos ter entre 25 e 35 anos atualmente. Seriam, então, integrantes da primeira geração a conviver com games desde o berço (o primeiro lampejo de sucesso dos games domésticos ocorreu no final da década de 70, com o finado Atari). Crianças são facilmente contaminadas pelo poder persuasivo da diversão digital, mas são os consumidores adultos e com poder de compra que determinam as ações e reviravoltas do segmento mais rentável do mundo do entretenimento.
E, no que depender das três maiores fabricantes de videogames, ninguém mais irá jogar sentado no sofá nos próximos anos. Muito menos utilizando um joystick. E não iremos mais enxergar as coisas da maneira a que estávamos acostumados. A edição 2010 da E3 foi um evento marcado pelas quebras de alguns tabus. Um deles, o chamado "paradigma do joystick", já havia começado a cair em 2006, quando a empresa japonesa Nintendo introduziu no mercado o Wii, cujo maior diferencial é o controle equipado com sensores, que capta os movimentos físicos do jogador e os reproduz dentro do game. Já as fabricantes Sony e Microsoft, seguindo pelo caminho oposto, investiam no chamado público "hardcore", com jogos cada vez mais realistas, complexos e com temáticas adultas.
Porém, contrariando qualquer expectativa, a trilha percorrida pela Nintendo se mostrou tão mais interessante quanto lucrativa: o Wii se tornou em pouco tempo o console mais vendido do mundo, capturando fatias de público que pareciam adormecidas ou pouco interessadas nos jogos tradicionais - idosos, mulheres e crianças em idade escolar, além de adultos que jamais tiveram contato com games anteriormente. O inesperado sucesso deixou seus rivais com uma questão de difícil solução em mãos: seguir o que já faziam ou correr se arriscar a copiar (e falhar)?
A E3 deste ano respondeu a essas questões com ações efetivas tanto de Microsoft como de Sony. A primeira propôs a eliminação do joystick com o acessório Kinect, uma espécie de câmera para o Xbox 360 que captura imagens tridimensionais e as transporta para dentro do jogo (foto ao lado). Trocando em miúdos, basta o jogador se mover ou falar diante da câmera para suas ações aparecerem na tela. A Sony, por sua vez, desvendou detalhes sobre o Move, um controle em formato cilíndrico de uso exclusivo no PlayStation 3, que responde a movimentos da mesma forma que o do Wii (abaixo).
O que se viu este ano em Los Angeles mais se assemelhou a uma batalha campal entre as duas gigantes do home entertainment, com a Nintendo correndo por fora, como se não tivesse nada a ver com a briga. A troca de insultos e ironias se tornou praxe nas edições passadas da feira, quando um fabricante tenta provar ao mundo que a tecnologia apresentada pelo concorrente é mais defasada ou menos interessante.
Na noite de domingo, 13 de junho, a Microsoft abriu os serviços da E3 em um evento pompo no ginásio Galen Center, que contou com o toque místico da trupe do Cirque du Soleil e foi marcado pelo tema "vida selvagem": havia dançarinos vestidos de maneira carnavalesca, trilha sonora movida a tambores tribais, utilização de recursos de luz e ilusionismo, telões de alta definição e até mesmo um elefante mecânico em tamanho real. A plateia presente também tomou parte da demonstração: posicionados de pé no meio da arena montada no ginásio, centenas de convidados vestiam túnicas brancas cujos ombros brilhavam em cores diferentes, conforme o ritmo da apresentação. Nome oficial do produto antes conhecido como "Project Natal", o Kinect teve a criação supervisionada pelo engenheiro brasileiro Alex Kipman (o nome é uma referência à cidade onde ele viveu, no Brasil) e será lançado em novembro no mercado mundial, ao preço de US$ 149 (o valor por aqui ainda não foi divulgado). Obviamente, o Kinect - leia-se "cãnéquiti" - só será compatível com games criados especialmente para ele e precisa ser acopla- do ao console Xbox 360 para funcionar.
"O Kinect faz os games se tornarem mais sociais e interativos para você e sua família", definiu o canadense Don Mattrick, vice-presidente do setor de entretenimento da Microsoft. Realmente, são indiscu- tíveis as referências dos novos games ao caráter mais familiar e casual dos games do Nintendo Wii. Entre os jogos revelados, todos com poucas pretensões rea- listas (além da interação física em si), destacaram-se os de exercícios físicos e os esportivos. Cada gênero exigirá um estilo diferenciado de movimentos. Para correr, por exemplo, o jogador precisa dar piques sem sair do lugar. Para saltar obstáculos, se deve tirar os dois pés do chão ao mesmo tempo. Para marcar gols no futebol, é preciso chutar o a r p ara a tingir u ma bola invisível. "Acreditamos que o entretenimento eletrônico é a melhor forma de entretenimento", afirmou Mattrick. "Por isso mesmo, deveria ser aberto e acessível para todos." Segundo a Microsoft, o Kinect será lançado no Brasil antes do final de 2010. Para o mesmo período, também está prevista a aguardada estreia nacional da rede online Xbox Live, que permitirá interações e disputas de jogadores pela da inter- net - um atraso de "apenas" quatro anos em relação à chegada do Xbox 360 ao mercado brasileiro.
Aqui ninguém precisará vestir ponchos. Faremos tudo ao natural." Fazendo graça com a mise-en-scène elaborada pela Microsoft dias antes, Jack Tretton, presidente do braço norte-americano da Sony Computer Entertainment, deu pistas do clima carregado da disputa entre as duas companhias. Como o mestre de cerimônias da coletiva para imprensa da Sony, no Shrine Auditorium, o executivo gorducho de fala firme apresentou detalhes sobre a investida da empresa no terreno dos games físicos: o Move, um acessório que também visa transformar a experiência de jogo por meio de movimentos com a utilização de uma câmera e um joystick equipado com sensores. Por exemplo, em jogos de ação como Sorcerer, o controle é utilizado como uma varinha mágica; já no game estrelado pelo golfista Tiger Woods, o jogador deve mover o joystick como se fosse um taco para acertar uma bolinha imaginária.
Apesar de notavelmente mais avançada, a tecnologia exibida pela Sony também não se diferenciou tanto do que a Nintendo já havia mostrado com o Wii em 2006. Demonstrações burocráticas do Move em ação, que deve ser Lançada em outubro a U$99 (o kit com controle e a câmera mais um jogo ) não se mostraram muito apuradas, mas a empresa guardou para o final a cartada que estabelece a transição da atual geração de consoles para a próxima: 3D.
Tão em voga hoje em Hollywood - e que aos poucos se populariza em aparelhos de TV -, a transmissão em três dimensões chega ao Playstation 3, mas não sem certo custo: para enxergar a imagem em 3D, o jogador será obrigado a utilizar óculos especiais durante as partidas, além de adquirir um modelo de televisão próprio para isso (atualmente bem mais caro do que os aparelhos tradicionais). Pelo menos 15 games que farão uso da tecnologia serão lançados até 2010, mas ainda não houve menção de um lançamento do equipamento no mercado brasileiro. "O 3D junto ao Move constroem a experiência mais próxima de estar fisicamente no jogo", alegou Tretton. "A sala de estar não é mais a mesma que era há dez anos." Pelo que parece, as salas também deverão ser mais espaçosas e não poderão conter móveis que atrapalhem a jogatina.
Aparentemente seguindo em uma eterna contra- mão, a também japonesa Nintendo não aproveitou tanto o fato de ser a principal precursora dos games "físicos". E m sua apresentação para a imprensa n a manhã do dia de abertura da E3, no Nokia Theater, a empresa divulgou a produção de um punhado de jogos para o Wii estrelados por suas franquias consagradas - Super Mario, Zelda, Donkey Kong, Kid Icarus, entre outros -, mas não apresentou qualquer tipo de upgrade para o console (o Wii é tecnicamente menos avançado que o PS3 e o 360). Talvez o fato de liderar com folga a corrida desta geração tenha contribuído para a relativa discrição com que seus novos produtos foram revela- dos. Ou talvez porque houve preferência por deslocar as atenções do público para um outro segmento também do- minado p ela Nintendo: os videogames de bolso.
A novidade ficou por conta da evolução do consagrado portátil Nintendo DS. O principal recurso do novo modelo, batizado 3DS (ao lado), é a capacidade de simular a experiência tridimensional sem a necessidade da utilização de óculos especiais. "Literalmente, adicionamos uma nova dimensão ao produto que você já conhece", definiu Reggie FilsAime, presidente da Nintendo of America, um robusto marqueteiro de origem haitiana com um gosto peculiar por agressivas frases de efeito. Com duas telas e do tamanho de um celular, o 3DS vem equipado com duas câmeras, conexão Wi-Fi embutida e é compatível com os jogos lançados para os modelos anteriores do DS. A tela inferior é sensível ao toque, enquanto a superior traz uma película que oferece as sensações de profundidade e de objetos saltando para fora da tela. Uma tecla lateral possibilita a escolha ou não da utilização do recurso 3D. "O que importa nos games é a experiência", decretou Fils-Ai- me. "Nosso objetivo é trazer novas experiências para todos." Com lançamento previsto para março de 2011, o custo dessa "revolução" ainda permanece como um bem guardado segredo.
Que a verdade seja dita: se havia dúvidas de que o mercado fonográfico e os artistas ainda precisam dos games, a edição deste ano da E3 dissipou todas elas. Em 2009, a vedete da feira norte-amercana foi The Beatles: Rock Band, simulador baseado na carreira da mais importante banda da galáxia. Apesar de todo o alarde com que foi revelado ao mundo (Paul McCartney e Ringo Starr deram as caras no evento para promover o jogo), as vendas não corresponderam à s altas expectativas. A sim mesmo, jamais houve melhor exemplo da sinergia eficiente entre a música e os jogos eletrônicos. Como equiparar tal proeza? Só escalando o maior artista pop de todos os tempos. Michael Jackson, o game, será um simulador de performance com elementos de dança e canto, atualmente em produção pela empresa francesa Ubisoft. É improvável que o projeto visse a luz do dia se Jackson ainda estivesse vivo, mas o fato é que o re- torno do Rei do Pop aos games (ele já havia estreado um jogo em 1990, Moonwalker) evidencia o inevitável: tal como foi Hollywood na década passada, a indústria da música (e seus artistas) continuam sendo a fonte de inspiração essencial para empresas
que desejam lucro fácil vendendo joguinhos.
Entre as produtoras que sabem navegar conforme a maré, nenhuma é tão bem-sucedida quanto a Activision. Uma das poucas sobreviventes do início dessa indústria (foi fundada em 1979 como a primeira desenvolvedora independente de jogos), ela conseguiu se estabelecer como uma irresistível máquina de fazer dinheiro, muito graças ao sucesso de marcas como Guitar Hero e Call of Duty. Esta última, aliás, rendeu em 2009 o game mais rentável de todos os tempos, o thriller Call of Duty: Modern Warfare 2, que alcançou US$ 1 bilhão em vendas apenas dois meses após a chegada às lojas.
Com muita verba para gastar e quedinha para a megalomania, a Activision passeia sozinha em meio à concorrência e é conhecida por arroubos de excentricidade que surpreendem mesmo na sempre superlativa indústria de videogames: este ano, em vez de montar um estande no pavilhão da E3, gastou estimados US$ 7,7 milhões em uma festa-show no ginásio esportivo Staples Center, com o simples intuito de divulgar seus lançamentos para o final de 2010. Milhares de convidados presenciaram apresentações de nomes como Eminem, Rihanna, Chris Cornell e Jane's Addiction, que tocaram seus sucessos enquanto cenas dos novos games apareciam nos telões - entre eles, DJ Hero 2, que simula a performance de um DJ; e o game de guerra Call of Duty: Black Ops, desta vez situado no Vietnã. Esse artifício de se valer de artistas de ponta para chamar a atenção também não é novidade para a produtora. Durante a E3 2009, um evento semelhante foi capitaneado pelo rapper superstar Jay-Z com participação do mesmo Eminem.
O fato de a mania dos simuladores musicais dar sinais de cansaço não impede a Activision de explorar o filão com afinco: também revelado durante a E3, Guitar Hero: Warriors of Rock será o 14 o game da série de simulação de banda com instrumentos- joystick de plástico. A nova investida d e s eu concorrente no setor, o jogo Rock Band, porém, mostrou mais empenho em superar as últimas fronteiras da experiência musical virtual.
Capitaneada por Alex Rigopulos, um nerd de topete e costeletas formado em composição musical pelo MIT, a desenvolvedora Harmonix ganhou notoriedade (e muito dinheiro) somente apos o lançamento de Rock Band em 2007, bastante semelhante a Guitar Hero na essência, mas com um viés mais pop e acessível. Após três anos também explorando o filão até o limite (além de dois Rock Bands e o game dos Beatles, uma homenagem ao Green Day acabou de ser lançada), a empresa se dispôs a contra-atacar a principal crítica desfe- rida aos jogos musicais: a de que não passam d e u ma simulação rasteira a ideia de tocar um instrumento. Há também quem diga que, mais do que perder tempo jogando Rock Band, o jogador deveria tomar vergonha na cara e montar uma banda de verdade.
Rock Band 3, que sai em outubro, permanecerá fiel às raízes - o jogador ainda "toca" músicas com joysticks de plástico que simulam instrumentos, como guitarra, baixo e bateria. Mas há novidades significativas na nova versão, como a introdução de um modo de jogo para a utilização de instrumentos verdadeiros, como teclados e uma guitarra "híbrida", parte joystick, parte instrumento. Fabricada em parceria com a Fender Squier, a guitarra em questão (abaixo) é uma imitação perfeita do modelo Strato- caster eternizado por Jimi Hendrix e Eric Clapton: tem seis cordas, captadores e corpo de madeira (o preço não foi divulgado). O jogador deve agir como se estivesse realmente tocando: pressionando a s cordas no braço da guitarra com a mão esquerda e golpeando as cordas com a mão direita (isso se for destro). Se jogado no modo "Easy", o jogo pede que poucas notas sejam tocadas ao longo da música. Já na dificuldade "Expert", tocar se assemelha à vida real, só que sem espaço para o improviso: é preciso tocar exatamente da maneira que o game propõe, já que somente a pressão exercida nas cordas é captada, e não o som emitido por elas. E, quando a brincadeira enjoar, é possível pegar a mesma guitarra, plugar em um amplificador e tocar pra valer. Talvez seja esse o sopro de ânimo necessário a um gênero que parece fadado à mesmice e que há poucos anos havia sido considerado "a salvação da indústria musical". O que parece mais provável é que parte do público se inspire a montar bandas de verdade a partir do contato com Rock Band 3. Ao longo de mais de 30 anos de existência dos videogames, fomos instruídos a manter uma relação respeitosa e distanciada com o ambiente digital - uma sinergia incompleta e cheia de restrições , limitada ao já envelhecido esquema "joystick, televisão, sofá". A indústria do entretenimento eletrônico, pelo que suas ações recentes nos levam a crer, se cansou da mesmice de sempre, ou se viu forçada a evoluir para acompanhar seu público. Em questão de anos, talvez meses, a experiência de jogar um game irá se assemelhar mais e mais com as previsões estabelecidas pelos filmes de ficção científica. Sob o ponto de vista de eventos como a E3, encarar o futuro de frente parece algo inevitável.
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