Ilustração - Lézio Júnior

Não Mexa com Ela

Após dois anos à frente do Conselho Nacional de Justiça, a ministra Eliana Calmon considera sua atuação apenas “boa”. É pouco para a pessoa que conseguiu estremecer os enferrujados alicerces da Justiça brasileira

Cristiano Bastos Publicado em 17/09/2012, às 11h49 - Atualizado às 11h51

"Não mexe comigo que eu não ando só / medo não me alcança, no deserto me acho.” Esses versos, da canção “Carta de Amor”, de Maria Bethânia, funcionaram como uma espécie de escudo no período em que a ministra Eliana Calmon esteve à frente da corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Depois de dois anos no comando do órgão – nas palavras dela, uma “luz no fim do túnel, um caminho para tornar o Judiciário mais eficiente e célere” –, Eliana entregou, em 7 de setembro, o cargo a Francisco Falcão, ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Juntando aplausos e a adesão da sociedade, a ministra de 67 anos nascida em Salvador (BA) fez do Conselho uma ferramenta de eficiência e celeridade com o objetivo de corrigir furos e defeitos da Justiça brasileira. Não antes sem topar com adversidades pelo caminho – muitas delas impingidas pelos próprios colegas de magistratura. O embate mais direto deu-se com Cesar Peluso, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), que classificou como “levianas” as acusações desferidas pela corregedora. Durante a fiscalização iniciada no Tribunal de Justiça de São Paulo, no fim do ano passado, Eliana denunciou a existência de “bandidos de toga”. Outra afirmação bombástica feita pela ministra destemida é a de que seria comum a troca de favores entre magistrados e políticos.

Em entrevista concedida no final de agosto em Brasília, em um gabinete de toque feminino e adornado com santos e símbolos católicos (embora declare-se agnóstica), Eliana Calmon declarou que a infraestrutura da Justiça brasileira está sucateada e sofre de falta de recursos e deficiência de gestão. De perfil espartano, ela também é uma cozinheira de mão-cheia, autora de Resp – Receitas Especiais –, cujo título é um trocadilho com a abreviação “recursos especiais” julgados no STJ. Sua receita mais importante, porém, não consta desse livro: a de como fazer a Justiça ser acessível aos cidadãos brasileiros.

A senhora deixa a corregedoria do Conselho Nacional de Justiça com a sensação de dever cumprido?

Em primeiro lugar, deixo uma maior abertura dos tribunais para com o CNJ. Na minha gestão consolidei alguns tribunais que estavam com muita resistência à aceitação do Conselho como “ferramenta de gestão” – isso é o que o CNJ é – ao argumento de que estávamos nos intrometendo na administração. Hoje, é diferente: a ideia é a de que estamos efetivamente para ajudar e, portanto, não há problema. O último tribunal a abrir as portas foi o de São Paulo, embora nós tenhamos ainda muita dificuldade com o Tribunal de Justiça da Bahia, mas é um caso à parte. Para mim, com certeza, a maior satisfação foi a adesão do Tribunal de Justiça de São Paulo às metas do Conselho Nacional de Justiça.

O que espera de seu sucessor, o ministro Francisco Falcão? Muitos fazem ironia com o nome (“Faltão”) e questionam a assiduidade dele na corte...

Eu conheço o ministro Falcão há muitos anos. É um homem muito empreendedor, um grande administrador. Creio que ele vá surpreender a muita gente, especialmente essas pessoas que estão pensando que será muito fácil [assumir a corregedoria do CNJ] para aqueles que querem “folga”. É, pelo menos, o que ele tem me dado a entender nas conversas que temos tido quando ele visita o CNJ. Enfim, espero que ele dê continuidade ao serviço. Eu tenho trabalhado como se não fosse sair, e estou tocando o trabalho como se estivesse no primeiro dia em que cheguei.

A senhora disse que as primeiras instâncias da Justiça no Brasil estão sucateadas. Há falta de recursos ou deficiência de gestão?

As duas coisas. Se a primeira instância não funciona, os processos não são realizados e, assim, não “sobem” para os tribunais de segundo grau, que ficam em uma situação confortável: infraestrutura maior, processos de menos – e, quanto mais ineficiente a primeira instância, menos processos. Essa é a realidade. Mas, na Justiça, as coisas acontecem no primeiro grau; não é no segundo grau. Por isso temos interesse de que haja maior investimento na primeira instância. Mas aí pergunta-se: “Por que está sucateada?” Está sucateada porque o Poder Judiciário tem verba pequena, pessimamente gerida pelos tribunais, que priorizam alguns aspectos que não têm muita importância e, em outros, são extremamente econômicos. Uma das lutas do CNJ é para que se organizem. Temos encontrado, por exemplo, inúmeros funcionários nos tribunais: servidores concursados, não concursados e cargos comissionados em detrimento da primeira instância, a qual está absolutamente desguarnecida. Qual é a ideia? Em primeiro lugar, fazer investimentos bem significativos, pesados mesmo, no sentido de informatizar dignamente toda a primeira instância. Tal medida fará com que haja a necessidade de menos funcionários. E, a partir da informatização, otimizar a lotação de cada vara. Porque se não for assim, teremos uma Justiça absolutamente capenga no tocante à primeira instância.


Nas redes sociais, há manifestações de apoio ao seu trabalho. Em algum momento sentiu como se fosse um “exército de uma mulher só”?

[Risos] Fico um pouco vaidosa, mas, ao mesmo tempo, sinto-me muito responsável. Fico preocupada em passar a imagem de uma mulher que pode fazer muita coisa, e não posso fazer sozinha... É neste sentido que, inúmeras vezes, me achei “uma só pessoa de um exército”. O que não é absolutamente verdade, pois nunca estive só. Sempre tive bastante apoio: da população, de parte da magistratura, da OAB, do Ministério Público, dos advogados públicos. Eu nem tinha ideia. Só com o tempo percebi o tamanho do leque de apoios, e fiquei surpresa. De forma que constantemente me lembro de uma canção de minha conterrânea Maria Bethânia, a qual sempre cito: “Não se metam comigo: eu não estou só. Estou sempre muito bem acompanhada”. Todas as vezes em que querem me atingir terminam não conseguindo, porque tenho este “fecho de proteção”. As pessoas saem em defesa, o que, além de me envaidecer, me engrandece. Para não decepcionar, sigo dentro dessa linha de estar sempre atenta e forte à Justiça.

A sociedade cobra muito a punição de políticos corruptos. Faltaria o mesmo tipo de crítica em relação aos magistrados corruptos?

A sociedade já começa a criticar os magistrados corruptos. Ela não sabe quem são, mais do que a própria corregedora. Porque a sociedade sofre na pele os efeitos de uma magistratura quando ela é corrupta. E as pessoas que sofrem essa injustiça não ficam caladas.

Há muitos holofotes para o Legislativo e Executivo, mas o trabalho da Justiça é pouco mostrado. O Judiciário é uma “caixa-preta”?

Já foi “caixa-preta”. Hoje não é mais. A partir do Conselho Nacional de Justiça, da transparência, que é um dos princípios da Constituição, e das tentativas do próprio Estado Brasileiro, a Justiça – ainda não posso dizer que é absolutamente aberta – já começa a tirar o véu que encobria seus passos administrativos.

A senhora declarou que só conseguiria inspecionar a Justiça de São Paulo “no dia em que o Sargento Garcia prendesse o Zorro”. O Sargento Garcia finalmente prendeu o Zorro?

Hoje eu posso dizer que o Sargento Garcia está encantado com o Zorro [risos]. O Zorro conseguiu fazer com que sua espada desenhasse um “Z” bem grande na ponta do Tribunal de Justiça de São Paulo. Eu não Eu também citaria a falta de punição, no sentido de haver maior retorno do dinheiro público que foi achacado pela corrupção. As elites, na realidade, não se preocupam com isso. Nós temos encontrado, Brasil afora, uma série de injustiças com as pessoas mais pobres.

Acredita que a Justiça foi falha em relação ao episódio do massacre na favela Pinheirinho, em São José dos Campos (SP)? No caso, as elites econômicas levaram vantagem e os direitos humanos foram desrespeitados?

Não conheço profundamente a situação, só por ouvir dizer. Eu entendo que a força só deve ser usada em caso extremo. Pelo que me falaram sobre Pinheirinho, não podia nunca ser feito daquela forma, pois era um bairro consolidado com casas, moradores, desenvolvimento. A população, então, se chocou com o que viu. Por causa disso, Pinheirinho tornou-se, podemos considerar, um episódio no qual venceram as elites.

Sobre o julgamento do mensalão, a senhora disse que “o STF não pode ceder às pressões”. Quais pressões seriam essas?

Não sei. É o que eu leio nos jornais. A pressão popular, sem dúvida, “incomoda” muito. E é com isso que fico preocupada: que haja uma pressão equivocada quanto à futura decisão a ser tomada pelo Supremo.

Há alguns anos, seria difícil imaginar uma lei de iniciativa popular como o Ficha Limpa. O próprio Supremo dividiu-se sobre sua validade e legitimidade. A Ficha Limpa avançou, mas não é o sufi ciente, com tantas brechas encontradas na Justiça Eleitoral pelos políticos com ficha suja. O que deve ser ajustado?

Não é de uma forma brusca que os avanços acontecem na sociedade. Toda forma brusca sempre gera consequências, dentre as quais, certa injustiça. As coisas devem acontecer – não digo “devagar” – levando em consideração nossa própria história. Não se sai de um regime de corrupção em dez anos. O brasileiro está com ojeriza à corrupção. O motivo é que agora os brasileiros estão tendo a noção de que aquilo que se desperdiça muito bobamente poderia estar sendo investido nele: na casa própria, educação, transporte, saúde. Existe muito o que se fazer com o dinheiro desviado. É preciso, portanto, ter um pouco de paciência.

Após ter publicado um livro de culinária, qual seria a receita para que a Justiça seja acessível aos brasileiros?

Primeiro, transparência. Depois, vontade de servir e prestar um serviço decente e eficaz à sociedade, como determina a Constituição.

Política Nacional conselho nacional de justiça Eliana Calmon

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