Querendo sempre alimentar reflexões, Taís Araújo e Lázaro Ramos se transformaram no mais emblemático casal da dramaturgia brasileira na última década
André Rodrigues Publicado em 08/01/2016, às 16h03 - Atualizado em 20/11/2017, às 19h33
“Eu posso ouvir um amém?”, clama o reverendo Martin Luther King em um quarto de hotel em Memphis, Tennessee (Estados Unidos), horas antes de ser assassinado no dia 4 de abril de 1968. O público, emocionado, responde em uníssono: “Amém!” No palco, ao lado do ativista norte-americano, uma mulher assiste a tudo e chora. Estamos quase no fim da peça O Topo da Montanha, de Katori Hall, em um teatro de um bairro nobre de São Paulo. Dentro de instantes, Lázaro Ramos (Luther King) e sua esposa há 11 anos, Taís Araújo (a surpreendente camareira no espetáculo), serão aplaudidos de pé. Respingados por lágrimas, os dois agradecerão os gritos de “Bravo!” vindos do público. Reverberando o discurso da peça, também vão pedir a todos que passem o bastão da generosidade, do afeto e da tolerância.
Assista ao making of das fotos:
“Posso dizer um negócio? Eu acho que em 2015 nós vivemos um auge dos nossos desejos de artista. Ampliou a nossa voz e o discurso que a gente quer fazer. Pra mim é um auge”, diz Lázaro, enquanto Taís concorda com a cabeça, no camarim do teatro horas antes do espetáculo em uma sexta-feira de dezembro. Ela se acomoda no sofá enquanto ele se esparrama em um canto. Definitivamente, já entraram no panteão dos casais famosos da arte nacional, como Tarcísio Meira e Glória Menezes. E mesmo internacional. O jornal inglês The Guardian publicou extenso material há alguns meses comparando os dois aos astros pop norte-americanos Jay Z e Beyoncé (também casados na vida real). “Só que a conta bancária é bem diferente”, brinca Taís.
O polêmico texto que atualmente apresentam no palco se concentra na véspera do disparo que matou Martin Luther King, talvez o maior símbolo da luta contra a segregação racial. Porém, em vez de fazer uma hagiografia padrão, os diálogos e as ações nos conduzem por um labirinto de sensações e complexas abordagens sobre a violência, a igualdade e a morte. Tudo isso sem perder a ternura. Lázaro e Taís recebem o público antes do início da peça. É um momento em que abraçam as pessoas, fazem perguntas e em que há uma espécie de congraçamento. “Isso é muito especial num período em que você vai para a rua e só se fala de brutalidade, corrupção, roubo, violência. Aqui é um local de acolhimento”, comenta Lázaro, que também dirige e produz o espetáculo. Mesmo sabendo de cor todos os meandros da pregação de Luther King a favor da não violência, o ator admite que enfrentaria sérios problemas se tivesse vivido na época do líder que interpreta. “Se eu sentasse numa lanchonete e alguém me jogasse leite na cara e me desse um soco, eu iria revidar e morrer no primeiro protesto. Eu não aguento tomar tapa, ser ofendido e ficar calado. Eu sou um dos que iriam morrer”, afirma.
Se a gente voltar só algumas horas no tempo, no mesmo dia a dupla estava na ponte aérea vindo do Rio de Janeiro, onde moram com os dois filhos, João Vicente, de 4 anos, e Maria Antônia, prestes a completar 1. “Já passamos da exaustão”, brincam. Além de lotarem os 506 lugares do teatro onde se apresentam de sexta a domingo na capital paulistana, gravam no solo fluminense a série Mister Brau, novo trunfo da Rede Globo nas noites de terça-feira. Nos 13 episódios da primeira temporada, Lázaro é Brau, cantor e compositor de sucesso estelar. Taís faz Michelle, empresária, coreógrafa e mulher de Brau. Após alcançarem a fama, vão morar num condomínio de luxo e causam estranhamento na vizinhança.
“A série é uma loucura. Eu nunca tive tanta popularidade na minha vida”, diz Taís enquanto se serve de café e observa fotos, desenhos e agradecimentos que Lázaro colocou nas paredes. “Uma coisa que nunca me aconteceu: colega de trabalho na Globo vindo pedir foto!”, completa o marido. “As pessoas me abordam muito mais hoje do que quando fiz [a novela] Da Cor do Pecado, por exemplo”, ela arremata.
Lázaro Ramos e Criolo contracenam em Tudo que Aprendemos Juntos; veja o trailer.
Carioca, formada em jornalismo, Taís Bianca Gama de Araújo Ramos, de 37 anos, estreou na televisão em 1996 no folhetim Tocaia Grande, na extinta Rede Manchete. Ao fazer, na sequência, a protagonista de Xica da Silva, imediatamente alcançou fama nacional. Desde então foram 11 novelas, sete filmes e dez peças. Também cumpriu o papel de apresentadora do programa Superbonita, no GNT. “Eu falo que estou tendo a vida que sempre sonhei, só não sabia que dava tanto trabalho”, ri.
Todo esse sonho artístico está sendo dividido com Luis Lázaro Sacramento de Araújo Ramos, 37, nascido em Salvador, Bahia. Filho de uma empregada doméstica e de um operário, ele começou a trajetória nos palcos em 1986 no Bando de Teatro Olodum. Espalhou marcos pela carreira. No tablado, com a peça A Máquina, entrou no circuito nacional. No cinema, aos 21 anos fez Madame Satã, de Karim Aïnouz, filme sobre famoso transformista carioca. Na TV, Foguinho, de Cobras e Lagartos, ainda hoje circula pelo imaginário popular. São, no total, 20 longas, cinco novelas, 30 espetáculos teatrais e ainda dezenas de entrevistas para o programa Espelho, que comanda no Canal Brasil. Paralelamente lança livros infantis e prepara agora dois títulos adultos.
“A gente sempre teve pudor de trabalhar junto se não fosse uma coisa útil, necessária, forte, com a qual a gente se sentisse feliz, completo”, fala sobre a atual parceria com a esposa. “Hoje é fácil ficar 24 horas por dia junto porque é muito relevante. Acho muito relevante mesmo.” O casamento enfrentou uma crise em 2008. Eles chegaram a se separar, mas voltaram após alguns meses.
Entrevista: a noite em que Heliópolis invadiu a Sala São Paulo à base de música e cinema.
Além de discutirem a questão racial todas as semanas no teatro e na TV, recentemente foram alvo de ataques na internet. A página do Facebook de Taís recebeu ofensas racistas em outubro do ano passado. Ela acabou processando os criminosos. O caso segue na Justiça. “Não tem que atender demanda desse povo, né? Não devemos dar tanta importância”, ela afirma. “O fato não mudou em nada minha postura e minha atuação.” Lázaro completa falando que a página dele também entrou na mira de comentários ofensivos: “Eu botei a resposta imediatamente. Falei: para os babacas de plantão que estão vindo aqui, eu estou muito bem. E a única resposta que tenho pra vocês é a hashtag ‘#vápraputaquepariu’. Sumiram todos. Pronto”.
A peça O Topo da Montanha narra fatos e acontecimentos do final da década de 1960 nos Estados Unidos. Mas de uma forma impressionante ela acaba tocando em questões que hoje vivemos no Brasil, como a violência contra os pobres e o racismo. Por que fazer esse texto agora? Ele atingiu o público da maneira que esperavam?
LÁZARO: Para mim, é o melhor espetáculo que já fiz na vida. O espetáculo mais maduro, mais eficiente.
TAÍS: Eu acho a maneira mais inteligente e moderna de falar desse assunto [segregação]. É comunicando, aproximando, não colocando como um problema exclusivamente meu ou dele, mas sim como um problema de todos nós. Quero discutir com quem pensa diferente de mim.
LÁZARO: Eu queria fazer um espetáculo que, para além desse conteúdo reflexivo todo, fosse muito elegante e bom de assistir. E eu tenho uma tese.
TAÍS: Ele é cheio de teses.
LÁZARO: Graças a Deus. Mas eu entendi um pouco em que estágio da minha vida e da minha carreira eu estou. Eu gosto de discutir questões sociais nos meus trabalhos. Gosto de trazer uma reflexão, dar uma provocada no público para pensar um pouco além. Mas quanto mais o tempo passa, mais eu fico pensando que é importante você trazer ludicidade, entretenimento, algo de novo na carpintaria dramatúrgica. E isso é muito difícil de fazer. Porque às vezes você tem o tema político na sua arte, aí acaba fazendo uma bandeira e se esquece de trazer uma sofisticação artística maior. Não que fazer um teatro político não seja sofisticado.
Em 2015, vocês atingiram um auge tanto de popularidade quanto artístico. Como se sentem em relação a isso?
LÁZARO:O ponto em que eu me deparo com tudo isso é que a arte tem um limite. Tem coisas para mudar o país que fazem parte da política pública. Fazem parte da escolha dos nossos representantes. Porque eu me sinto num auge com tudo o que eu sempre quis como artista, mas eu tenho um limite. E não adianta ficar sonhando e achar que a arte pode ser responsável por tudo, porque não será. É uma porta de entrada importantíssima. Mobiliza e sensibiliza. Mas se a gente não tiver uma atuação política para saber escolher melhor nossos representantes, se a gente não entender quais são as políticas que esses caras estão votando para o nosso dia a dia, se a gente não souber qual é o foco principal que este país precisa... Não vai pra lugar nenhum. Aí que vem o desespero. A esperança vem da arte, da beleza, da transformação, mas o desespero é porque eu não vislumbro uma melhora. Nos nossos representantes não tem melhora.
TAÍS:Lá, não. Mas todo dia que eu estou ali, no palco, quando acaba a peça, eu vejo 506 pessoas aqui dentro deste teatro, lotando todo dia. Pô, cara, eu tenho três dias por semana 506 pessoas querendo ouvir sobre isso.
LÁZARO:Mas nós somos 200 milhões de habitantes e eu acho que o que muda mesmo o país é dinheiro, educação, bons representantes políticos...
TAÍS:Claro, amor. Mas isso a gente não tem.
LÁZARO:Mas daí é que vem o desespero!
TAÍS: Mas a esperança vem dessas pessoas que estão querendo ouvir falar sobre isso.
Tanto a peça quanto a série, por abordagens diferentes, acabam falando sobre o momento político e social que estamos vivendo no país hoje. O Lázaro comentou sobre as limitações da arte. Já pensaram ou pensam em uma atuação mais direta, sendo candidatos a algum cargo eletivo, por exemplo?
TAÍS:Deus me livre.
LÁZARO:Eu recebo uns convites... Mas estou tentando achar pessoas que não queiram entrar na política, mas que tenham um talento político, e falando para eles entrarem na política. É disso que eu estou sentindo falta, de ter uma nova geração sendo formada, um novo pensamento, uma nova proposta. Essa geração que está aí realmente tem que sair logo, correndo. A geração inteira.
TAÍS:Geração retrógrada. Quem pode parar esses caras? A gente pode parar esses caras?
LÁZARO:Tem um funcionamento muito eficiente, que foi combatido durante um tempo, mas que sempre esteve aí, dominando. Eles vão se transformando para retomar o poder. Na verdade, estamos passando por aí, pelos ex-donos do Brasil que agora querem voltar a ser donos
e que têm uma técnica de comando que é muito eficiente. Fisiologismo, propinas, é o jeito que o país foi fundado. É assim que este país funciona o tempo todo. Eu fico tentando achar pessoas que queiram refundar o país em outras bases. Essa é uma preocupação política direta agora.
Abaixo, leia a íntegra das perguntas e respostas.
A peça O Topo da Montanha narra fatos e acontecimentos do final da década de 1960 nos Estados Unidos. Mas de uma forma impressionante ela acaba tocando em questões que hoje vivemos no Brasil, como a violência contra os pobres e o racismo. Por que fazer esse texto agora? Ele atingiu o público da maneira que esperavam?
LÁZARO: Para mim, é o melhor espetáculo que já fiz na vida. O espetáculo mais maduro, mais eficiente.
TAÍS: Eu acho a maneira mais inteligente e moderna de falar desse assunto [segregação]. É comunicando, aproximando, não colocando como um problema exclusivamente meu ou dele, mas sim como um problema de todos nós. Quero discutir com quem pensa diferente de mim.
LÁZARO: Eu queria fazer um espetáculo que, para além desse conteúdo reflexivo todo, fosse muito elegante e bom de assistir. E eu tenho uma tese.
TAÍS: Ele é cheio de teses.
LÁZARO: Graças a Deus. Mas eu entendi um pouco em que estágio da minha vida e da minha carreira eu estou. Eu gosto de discutir questões sociais nos meus trabalhos. Gosto de trazer uma reflexão, dar uma provocada no público para pensar um pouco além. Mas quanto mais o tempo passa, mais eu fico pensando que é importante você trazer ludicidade, entretenimento, algo de novo na carpintaria dramatúrgica. E isso é muito difícil de fazer. Porque às vezes você tem o tema político na sua arte, aí acaba fazendo uma bandeira e se esquece de trazer uma sofisticação artística maior. Não que fazer um teatro político não seja sofisticado.
E por que essa reação tão emocionada das pessoas? Há realmente uma catarse. Creio que não é apenas da carpintaria do texto. São vocês em cena e isso representa algo muito forte.
LÁZARO: Claro, não podemos negar o que significa nós dois em cena fazendo um espetáculo falando sobre isso. Mas também acho que é o período em que a gente vive. A gente vive num período que parece que nada tem jeito, que a gente não tem para onde ir. Estamos em um período em que dizem que o certo e o bom para o mundo é isso ou aquilo, que a gente não pode ser diferente do homem padrão. Dizem assim: “Vocês já pediram coisas demais, já foram longe demais! Viado querendo casar! Preto querendo escola! Já liberou demais. O que mais vocês querem?” Aí você entra numa sala escura, fica ali com mais 506 pessoas, juntas, ouvindo essas palavras ali de frente. E a gente se doando, e a gente se doa mesmo, se rasga. A gente se rasga, rasga, rasga. Sem modéstia nenhuma, eu acho importantíssimo e fico felicíssimo de as pessoas se sentirem representadas e virem um espetáculo que não é só uma peça que vai fazer com que saiam do teatro e peçam o jantar sem nem tocar no assunto. Acho que é o que a gente sempre quis.
Em 2015, vocês atingiram um auge tanto de popularidade quanto artístico. Como se sentem em relação a isso?
LÁZARO:O ponto em que eu me deparo com tudo isso é que a arte tem um limite. Tem coisas para mudar o país que fazem parte da política pública. Fazem parte da escolha dos nossos representantes. Porque eu me sinto num auge com tudo o que eu sempre quis como artista, mas eu tenho um limite. E não adianta ficar sonhando e achar que a arte pode ser responsável por tudo, porque não será. É uma porta de entrada importantíssima. Mobiliza e sensibiliza. Mas se a gente não tiver uma atuação política para saber escolher melhor nossos representantes, se a gente não entender quais são as políticas que esses caras estão votando para o nosso dia a dia, se a gente não souber qual é o foco principal que este país precisa... Não vai pra lugar nenhum. Aí que vem o desespero. A esperança vem da arte, da beleza, da transformação, mas o desespero é porque eu não vislumbro uma melhora. Nos nossos representantes não tem melhora.
TAÍS:Lá, não. Mas todo dia que eu estou ali, no palco, quando acaba a peça, eu vejo 506 pessoas aqui dentro deste teatro, lotando todo dia. Pô, cara, eu tenho três dias por semana 506 pessoas querendo ouvir sobre isso.
LÁZARO:Mas nós somos 200 milhões de habitantes e eu acho que o que muda mesmo o país é dinheiro, educação, bons representantes políticos...
TAÍS:Claro, amor. Mas isso a gente não tem.
LÁZARO:Mas daí é que vem o desespero!
TAÍS: Mas a esperança vem dessas pessoas que estão querendo ouvir falar sobre isso.
E de onde vem todo o sucesso de Mister Brau?
LÁZARO: Quer a minha tese? Eu tenho uma tese. A gente está fazendo uma série que tem dois atores com certa popularidade, que formam um casal na vida real, mas que ao mesmo tempo têm um rosto que representa uma grande parcela da população. E fora de um contexto que normalmente a televisão coloca, que é: estereótipo de marginal, do excluído social. Não é falando sobre racismo diretamente, é falando sobre família, só que com uma direção preocupada com a questão estética. E o que o público quer ver? Quer encantamento também.
Por mais que Mister Brau seja uma comédia e não se venda como uma série sobre o racismo, há toda uma questão política sendo passada em cada imagem. As pessoas percebem isso?
TAÍS: Acho que as pessoas sempre percebem.
Acho muito representativo. Poxa, tem nós dois ali. Está falando muito. As pessoas entendem.
LÁZARO: Muita gente fala assim: “Ai, que bom ver gente tão bonita na televisão”. TAÍS: Isso é política! Passa pela estética, né, gente. Se você for pensar, tudo passa por aceitação, pertencimento, tudo o que a gente está falando: o negro, o gordo, o gay, tudo é pertencimento. E passa pela estética de alguma maneira. Então quando você vê o negro representado ali e se achando lindo e se achando capaz e se achando potente... Como não comunica? Comunica demais. Como não é político? É político demais. E as pessoas percebem, sim.
Na verdade, o humor passa de forma bem eficaz todos esses conceitos.
LÁZARO: A gente passa conceito em tudo. E humor passa conceito. Às vezes tem um tipo de humor que me incomoda muito. Aquele humor que passa que o padrão certo é você ser homem, branco e... Qual é a outra coisa?
TAÍS:Rico.
LÁZARO:Isso. Tem um tipo de humor que parece ser inocente, mas que eu acho que é danoso, que prega: se você for mulher, se você for pobre, se você for preto, não está nos conceitos desse humor, e ele te exclui. Isso forma gerações. Isso forma uma cultura. E isso se espalha por vários lugares. Nem estou falando da importância do politicamente correto, porque às vezes essa vigilância ultrapassa muito. Estou falando de você olhar para o outro e criar um novo raciocínio de vida. Não dá para a série ter a piada que todo mundo faz, a piada que reforça o estereótipo e o preconceito. Por exemplo, eu falava uma piada em toda reunião. É uma piada que eu contava no grupo de teatro Olodum da Bahia em 1998 que dizia o seguinte: o Brasil é tão preconceituoso que quem cozinha no Sítio do Pica-Pau Amarelo é a Tia Anastácia e o nome do biscoito é Dona Benta. A gente não ri de ninguém. Queremos rir juntos.
TAÍS:Tem escorregadas, claro que tem. Mas a gente percebe e muda.
LÁZARO: É um humor muito mais difícil de fazer. Eu poderia chegar num palco agora e falar para uma plateia: “E aí, gordão? Olha o careca. Que beleza, que careca lustrosa”. A plateia ri, eu iria ficar milionário, mas...
TAÍS: A troco do quê?
LÁZARO:Eu estou contribuindo com o quê? Que humor é esse?
Tanto a peça quanto a série, por abordagens diferentes, acabam falando sobre o momento político e social que estamos vivendo no país hoje. O Lázaro comentou sobre as limitações da arte. Já pensaram ou pensam em uma atuação mais direta, sendo candidatos a algum cargo eletivo, por exemplo?
TAÍS:Deus me livre.
LÁZARO:Eu recebo uns convites... Mas estou tentando achar pessoas que não queiram entrar na política, mas que tenham um talento político, e falando para eles entrarem na política. É disso que eu estou sentindo falta, de ter uma nova geração sendo formada, um novo pensamento, uma nova proposta. Essa geração que está aí realmente tem que sair logo, correndo. A geração inteira.
TAÍS:Geração retrógrada. Quem pode parar esses caras? A gente pode parar esses caras?
LÁZARO:Tem um funcionamento muito eficiente, que foi combatido durante um tempo, mas que sempre esteve aí, dominando. Eles vão se transformando para retomar o poder. Na verdade, estamos passando por aí, pelos ex-donos do Brasil que agora querem voltar a ser donos
e que têm uma técnica de comando que é muito eficiente. Fisiologismo, propinas, é o jeito que o país foi fundado. É assim que este país funciona o tempo todo. Eu fico tentando achar pessoas que queiram refundar o país em outras bases. Essa é uma preocupação política direta agora.
O ano de 2015, particularmente, foi muito conturbado.
TAÍS: Foi assustador. Muito perdido e caótico. As pessoas não estão sabendo para onde correr. Aí, talvez corram para um lado que já conheçam e que tinha certa estabilidade mentirosa e acham que essa é a grande solução. Só que acho que as pessoas não se lembram de como o país era. Existe um problema de memória. Como era antes? Era bom antes, gente? Pelo amor de Deus!
LÁZARO:E tem um problema de educação também. Quer ver? Esse tempo que a gente viveu, da esquerda no poder, trouxe vários avanços sociais, uma divisão maior de renda, isso foi importantíssimo. Trouxe também uma euforia. Pessoal começou a comprar, comprar, comprar e ficou vivendo nessa euforia sem investir em educação, sem investir adequadamente em tecnologia, em cultura, que forma um raciocínio, um pensamento. Tem muita gente que não sabe avaliar notícia, ter senso crítico. Agora estamos na ressaca da euforia. E essa ressaca bate em todo mundo. A conta chegou. O que me assusta é a incapacidade do diálogo. Um monte de gente vomitando um monte de coisa. Vomita conceito, vomita radicalismo, e não escuta nada.
E a classe política brasileira ganhou destaque justamente por tudo o que eles não deveriam fazer.
LÁZARO: Uma classe política vergonhosa. Eu tenho vergonha da classe política do meu país. Eu tenho vergonha. E eles não têm.
TAÍS:Eu tenho vergonha e nojo.
LÁZARO: O mais chato é que eles entenderam que se eles ficarem quietos o tempo suficiente, vão poder renascer em algum momento.
TAÍS: E eles têm um monte de filhotes, porque eles mesmos estão todos velhos, né? Esse é que é o problema. É assustador.
LÁZARO:Tem que agir! É por isso que eu não fico pensando muito, não. Eu fico tentando fazer. Apesar dessa desesperança, eu acho que é o momento de a gente assumir o compromisso de fazer aquilo que está ao nosso alcance. E da melhor maneira possível. Eu penso em fazer do meu trabalho uma arma para tentar melhorar a minha comunidade. Muita gente adormece na queixa e na reclamação. A minha tentativa é não adormecer naquilo que me incomoda. Essa é a atitude política que eu quero ser capaz de ter. Apesar de às vezes ser meio frustrante você ver que tem um limite. Eu tenho oscilado muito entre esperança e desespero. Tem dia que eu saio otimista, dizendo que está tudo bem. Tem dia que eu digo: “Meu Deus, não tem jeito. O que eu estou fazendo aqui neste teatro? Eu estou falando pra quem?” Aí eu vejo a reação de uma pessoa e me dá esperança. Eu antes dizia que era pessimista. Agora não sei dizer o que é que eu sou. Acho que estou navegando junto com a confusão. São tempos muito confusos.
Vocês são cobrados para participarem mais, comentarem mais sobre a questão racial?
TAÍS: Não. Até porque a gente não tira o corpo fora. Toda e qualquer entrevista, todo e qualquer lugar que a gente vai falar, nós nos posicionamos. É claro que tem uma diferença entre a entrevista que fazem comigo e a entrevista que fazem com uma atriz branca, por exemplo. Porque nunca perguntam para ela sobre a questão. Para mim sempre vem essa questão porque eu nasci negra e serei negra pelo resto da minha vida.
LÁZARO: E é importante falar [da questão racial] também. Mas às vezes eu fico me perguntando qual é a eficiência da entrevista. Ou onde é que está a limitação do jornalista que veio falar comigo e não conseguiu me ver como tudo o que eu sou. Isso que às vezes me incomoda. Às vezes a entrevista fica temática e a gente não dá um salto que eu acho muito importante.
Qual?
LÁZARO: A entrevista do sonho é aquela que olhe pra gente e veja assim: como negro, mas também como jovem, que tem dois filhos, pai nordestino, como tudo. Porque quando você oferece esse perfil mais completo, você oferece a humanidade dessas pessoas para o público. Aí tem uma eficiência impressionante. Porque oferece como ser humano e não como estereótipo de alguma coisa. Apesar de ser importante falar sobre esse tema.
TAÍS: E vamos falar sempre.
LÁZARO:Mas não pode ser tema único. E a nossa luta é essa. A gente luta pelo personagem que ofereça humanidade, nem perfeito nem estereotipado.
TAÍS: É muito mais importante para nossa causa falar o que a gente está fazendo, sobre nossa peça lotada e a série de sucesso. Isso é um serviço muito maior para a causa do que aquela que fica falando sobre a mesma coisa sempre.
LÁZARO:Às vezes é o tom. Mesmo o tom elogioso às vezes é assim: “Olha como eu sou legal porque estou valorizando. Ela não faz parte do mundo da gente, mas é legal porque estou dando esse espaço para ela, que pertence a esse gueto, a esse lugar aqui”. Conversa comigo direito, cara! Não é você que vai me dizer onde é o meu lugar, não. [A questão racial] é importante também, mas não dá humanidade completa. Quer ver uma coisa curiosa? As pessoas vêm fazer uma entrevista sobre produtos culturais. E poucas vezes perguntam sobre processo criativo. E para todo e qualquer ator vão perguntar. Será que eu não tenho isso? Meu valor artístico é só por eu estar falando e estar presente em determinado lugar? E o processo criativo, que é tão interessante? Por que isso me é negado num papo? E é uma das coisas de que mais gosto de falar. Não estou negando esse assunto, não estou negando esse lugar. Mas eu acho que é um exercício importante de a gente falar mais do que já foi dito.
Tudo isso me fez lembrar de uma frase do Malcolm X que dizia: “Se você é negro, você nasceu na prisão”. Eram outros tempos, mas isso leva para uma amplidão metafórica, porque parece que sempre o negro deve estar num determinado lugar, fazendo e falando apenas determinadas coisas.
LÁZARO: Vamos falar de cotas. E depois vamos falar de sonho. Desde que entrou o sistema de cotas, se você for ver, os estudantes são muito bem-sucedidos. Sabem da importância desse lugar, que foi conquistado, sabem que têm que se dedicar. Acho que inclusive tem uma carga pesada para corresponder a essa luta, que foi grande. Mas ao mesmo tempo a maioria dos cursos são analíticos. São muitos cursos para analisar situações. Assistência social tem muito. Isso também diz alguma coisa. Não sei exatamente o que é. Eu converso com jovens e sempre falo de sonho. Acho tão importante a pessoa poder sonhar... Às vezes falta isso. Essa procura para saber que o nosso lugar é onde a gente sonha estar. E às vezes é difícil olhar pra gente nesse lugar.
TAÍS:Chega um momento também que te colocam num lugar e você acaba acreditando que seu lugar só pode ser esse. Isso é uma luta diária. Minha e de quem trabalha comigo. Quando a gente recebe um convite, a gente procura entendê-lo, e [se for o caso] falar que não é para fazer agora porque tal convite me coloca num nicho e com a carreira que eu tenho eu não mereço estar no nicho. E fazer com que as pessoas entendam.
Até porque hoje vocês atingem um público imenso.
LÁZARO:Deixa eu te dizer uma coisa doida. Estamos fazendo uma peça, uma série, produtos que dialogam com todos os públicos, que todo mundo quer consumir. Mister Brau dá picos de audiência. Essa peça tem muitos negros na plateia, mas também tem muitos brancos. Tem um público consumidor disso. E por que na hora de vender ficam tentando colocar num nicho como se só uma parte da população consumisse? É cegueira.
TAÍS:E para tirar essa nuvem... Às vezes te colocam num outro lugar: de prepotente, arrogante.
LÁZARO: É impressionante! As quatro primeiras capas de revistas e jornal que eu fiz, todas tiveram o mesmo título: “Negro Gato” [risos]. Até estavam me chamando de bonito, mas bota que é negro! Tenho quatro capas com o mesmo título! Você está dizendo:
é gato, mas é negro.
TAÍS:E ninguém não quer dizer que é negro, porque é.
LÁZARO: É, mas não poderia pensar num outro título?
TAÍS:Uma vez um amigo meu, um cara superesclarecido, virou pra mim e falou assim: “Mas eu não conheço nenhum negro bem--sucedido que não seja arrogante e prepotente”. Aí vem, né: Tostines vende mais porque é mais fresquinho ou é fresquinho porque
vende mais? Ou você não está acostumado a ver um negro nesse lugar e acha que porque ele está nesse lugar ele é prepotente?
LÁZARO: Aqui também às vezes tem aquele conceito de que humildade é subserviência. “Ah, você é tão humilde”... Em que sentido? Eu já pergunto logo. Subserviente eu não sou! Vou conversar com você de igual pra igual. Baixar a cabeça eu não vou. Aí já virou
metido, arrogante...
TAÍS:A pessoa não quer me ver nesse lugar em que eu posso falar de igual pra igual. Aí me acha prepotente porque eu não abaixo a cabeça pra falar?
LÁZARO:O bom hoje em dia é que a gente pode rir disso. O fogo é que tem pessoas que não podem rir e que passam isso no dia a dia.
TAÍS: E eu não quero estar em capa de revista para falar de preconceito, cara.
LÁZARO: Quer ver uma coisa que eu acho um absurdo? Cinco jovens inocentes foram mortos e este país não parou [no final de novembro do ano passado, cinco jovens foram fuzilados com mais de 100 tiros no subúrbio carioca]. O país não parou! Sabe por quê? Porque a morte de um menino pretinho é aceitável. Não estou falando que a gente não deva protestar e se indignar quando um jovem branco morre. Mas acho que toda e qualquer morte é inaceitável.
TAÍS:Peraí, gente. O mendigo de olho azul vira mendigo gato. Oi?
LÁZARO: A polícia fuzilou e o país não parou. A gente aceitou. A gente se calou. Por quê? Porque não é passível de afeto, de humanidade.
E no meio de tudo isso como criar dois filhos? Quais valores vocês passam? Quais as preocupações?
LÁZARO:Criando com afeto.
TAÍS:Ensinando a ter coragem.
LÁZARO:A gostarem deles mesmos.
TAÍS:Tudo baseado na autoestima.
LÁZARO:Eles sabem que são amados. Eles não têm a menor dúvida de que são amados.
TAÍS:É isso. Afeto e limite. Porque criança sem limite é um adulto insuportável. E olhar o outro com respeito e com afeto e compaixão.
LÁZARO: E humor. Somos bem-humorados, gostamos de palhaçada e de dar risada juntos. Eu e Taís estamos casados há 11 anos e acho que o que junta a gente é que até hoje rimos juntos. Ainda temos motivos pra rir.
TAÍS:E a gente fala muito.
LÁZARO:Puta que pariu, como a gente fala.
TAÍS:Hoje ele saiu de uma reunião e eu estava provando uma roupa. Ele me ligou e perguntou onde eu estava. E disse: “Menina, faz meia hora que você saiu e já tenho tanta coisa pra te falar” [risos]. E minha família é uma gente engraçada, bem-humorada e afetuosa. E muito unida. Isso reflete na gente, na maneira de criar nossos filhos.
LÁZARO: É isso. Tem que rir. Rir salva.
Ativos e Incansáveis
Para 2016, os dois atores já têm uma série de projetos engatilhados
Além da peça O Topo da Montanha e de uma segunda temporada de Mister Brau, Taís Araújo e Lázaro Ramos também marcam presença no cinema neste ano. Porém, em telas separadas. Lázaro acompanha a carreira internacional do filme Tudo Que Aprendemos Juntos, de Sérgio Machado, que estreou no final de 2015. Nele, o ator interpreta um violinista que dá aulas na periferia de São Paulo. “Pena que não vou conseguir acompanhar o lançamento em nenhum lugar lá fora por causa da agenda de trabalho aqui no Brasil”, conta. Lázaro também estará no primeiro semestre em Mundo Cão, de Marcos Jorge, e espera a estreia do longa O Beijo no Asfalto, com direção de Murilo Benício. Além disso, até o final de 2016 pretende começar a rodar seu primeiro trabalho como diretor. Já Taís Araújo aparece em Ladrões de Caneco, de Caíto Ortiz, sobre o roubo da Taça Jules Rimet, e está de olho em um próximo texto para fazer no teatro. “Eu tenho o maior problema para negar trabalho, fico sofrendo”, comenta sobre o excesso de convites. Já Lázaro diz que tem “toda uma técnica para negar: mando flores, ajoelho, peço perdão”. Ele acabou de lançar o livro infantil Caderno de Rimas do João e prepara dois novos títulos adultos. “O próximo passo é empreender. Igual a gente é dono dessa peça. Ser dono das próximas coisas, junto e separado. Temos que ser donos da nossa carreira”, ela completa.
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