Por André Vieira Publicado em 09/06/2008, às 13h35 - Atualizado em 20/02/2013, às 15h02
No fim de uma manhã chuvosa de sábado, dirijo a detonada picape de um amigo voltando do Roque Santeiro, o mais importante mercado público de Luanda, capital de Angola. De repente, um carro pequeno emparelha contra o meu, querendo me empurrar para fora da pista. Olho meio estarrecido para o louco. Seria mais fácil eu mandá-lo para o alto de um poste com uma fechada do que ele amassar meu pára-lama. Mas, em vez de gritar impropérios, ele gentilmente me pede para encostar o carro e conversar. Isso, aliado à minha incorrigível curiosidade, me desarma. Acabo parando.
Mal encosto o carro para saber o que queria o senhor camicase e um candongueiro, as vans azuis e brancas que são o transporte público de Luanda, também enlouquecido, pára atravessado à minha frente e seus ocupantes saem gritando comigo e com o senhor do carro que me forçou a encostar. "Ô branco, vai dar dinheiro pra gente comprar Omo, Omo!", grita de forma agressiva o mais exaltado passageiro, dirigindo toda sua fúria apenas contra mim.
Enquanto isso, o motorista do carro que me encostara, um senhor de seus 50 anos, ainda mantendo a educação, me mostra com a cara mais desconsolada do que irritada a camisa branca de seu uniforme de guarda de imigração respingada de lama. "Como é que vou trabalhar assim?", pergunta.
A situação é tão absurda que demoro a entendê-la. Por precaução, não saio do carro nem desligo o motor, discretamente engrenando a marcha a ré para o caso de necessidade de uma saída rápida. E, aos poucos, a ficha começa a cair.
Ao ultrapassar o senhor em uma curva larga e de trilho indefinido, em meio a inúmeros buracos e de forma um pouco ousada - coisa absolutamente normal no trânsito feroz de Luanda, onde aproveitar uma oportunidade pode significar uma diferença de horas na duração da viagem - na estrada sem asfalto e encharcada pela chuva que vai do Roque Santeiro ao centro da cidade, passei numa poça de lama, que, acidentalmente, respingou no carro do senhor da imigração. Como ele viajava, apesar da chuva, com todas as janelas abertas, a lama sujou sua camisa. Indignado, ele partiu de forma suicida em minha perseguição, saltando sobre crateras que poderiam facilmente destruir seu veículo, e nisso acabou fazendo o mesmo que fiz com ele com os passageiros do candongueiro, que também viajavam de janela aberta enquanto atravessavam o mar de lama.
Todos queriam que eu desse dinheiro para comprarem sabão em pó, evocando a popular marca, e lavarem suas roupas, apesar de eu haver sujado apenas o senhor. Minha primeira reação foi pensar em dizer que no meu país quem não quer se sujar enquanto trafega por uma rua coberta de lama fecha a janela, mas o humor dos meus interlocutores não parecia dos melhores. Acabei apenas me desculpando, educadamente, com o senhor, mas me recusando a dar qualquer dinheiro. Para o pessoal do candongueiro informei que o problema deles não era comigo, e sim com o guarda da imigração que os encheu de lama. O senhor se resignou e pediu, então, que eu o acompanhasse até seu serviço para explicar a seu chefe que o fato de ele chegar com o uniforme sujo no trabalho era culpa minha e não resultado de seu desleixo. Mas o povo do candongueiro queria confusão.
Em luanda tem que se estar preparado pra tudo. A cidade está no coração da transformação radical pela qual Angola está passando, e o ritmo dos acontecimentos desnorteia qualquer um, sobretudo os que não estão se beneficiando do processo.
Desde 2005, a economia angolana é a que mais cresce na África, a uma média de impressionantes 17% ao ano. Para este ano a estimativa é de 23%, número de fazer inveja à China em seus melhores momentos. Luanda, a capital, é hoje uma das cidades mais caras do mundo e sua paisagem está sendo drasticamente redefinida por um boom imobiliário. Conseguir lugar em qualquer vôo internacional em direção ao país só com uma boa antecedência. Os melhores hotéis só têm quartos disponíveis para o ano que vem.
Isso em uma nação que até 1990 era dominada por um sistema comunista ortodoxo e que desde sua fundação, em 1975, até 2002 viveu uma permanentemente guerra civil, que matou cerca de 1,5 milhão de pessoas, expulsou de suas casas um terço da população, hoje girando em torno de 15 milhões de habitantes, e deixou o maior número de minas terrestres que o mundo já utilizou num único conflito espalhadas pelo interior do país.
Entender exatamente o que se passa em Angola é tarefa bastante difícil. A primeira dificuldade é que há muito poucos números disponíveis. A cultura de poder em Angola ainda é a de guerra, onde qualquer informação pode servir de arma ao inimigo - e qualquer um fora de suas fileiras é um potencial inimigo. Autoridades raramente falam com jornalistas e as contas públicas são tratadas como segredo de estado, para desespero de organizações internacionais como o Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional.
Oficialmente, Angola é hoje uma democracia presidencialista e eleições parlamentares estão marcadas para setembro de 2008. No ano que vem, os angolanos também deverão poder votar para presidente. Na prática, no entanto, a coisa não é bem assim. Todo mundo sabe quem será o ganhador das eleições: o presidente José Eduardo dos Santos, já há 27 anos no poder, e seu partido, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), que continuará ocupando cada fresta do poder.
O MPLA nasceu na década de 1960, como um dos muitos movimentos armados que lutavam contra o domínio colonial português, e chegou ao poder em 1975, depois que a Revolução dos Cravos precipitou o fim dos séculos de aventura colonial portuguesa. Uma vez no domínio do país, o transformaram numa república marxista de partido único, com o apoio de Cuba e da União Soviética, o que fez com que os Estados Unidos e seu principal aliado no continente africano, a África do Sul, armassem, financiassem e apoiassem militarmente seus rivais da União pela Total Independência de Angola (UNITA), na tentativa de tirar o MPLA do poder.
O resultado foi uma sangrenta guerra civil que por décadas foi um dos principais campos de batalha quente da Guerra Fria. Em 1990, um cessar fogo entre MPLA e UNITA foi assinado e eleições foram marcadas para 1992. Observadores internacionais decretaram a eleição relativamente limpa, mas Jonas Savimbi, líder da UNITA, se recusou a aceitar o resultado, que deu vitória a José Eduardo dos Santos, presidente de Angola e do MPLA desde 1979, quando Agostinho Neto, primeiro presidente angolano, morreu.
A guerra, então, recomeçou, com o MPLA financiando a luta com petróleo enquanto a UNITA o fazia com diamantes. Os combates duraram até 2002, quando Savimbi finalmente foi morto em combate ao norte de Luanda. Sem o líder e com sua capacidade de combate drasticamente reduzida por uma série de derrotas, o que restou da UNITA finalmente baixou as armas e reconheceu a derrota poucas semanas depois.
A vitória deu ao MPLA poder praticamente absoluto, mas também um país devastado, alguns dos piores indicadores sociais do planeta, uma enorme dívida externa e inflação de mais de 100% ao ano. Para piorar a situação, um relatório interno do FMI de 2002 constatou que cerca de US$ 1 bilhão simplesmente desapareceram das contas públicas angolanas do ano anterior, três vezes mais do que o país recebeu em ajuda humanitária internacional. O relatório, aliado à resistência do governo em dar mais transparência à sua contabilidade, afastou os principais doadores estrangeiros, justamente no momento em que o país mais precisava deles.
Para sorte de Angola, a China vivia o auge do explosivo crescimento de sua economia e precisava de todo o petróleo que pudesse conseguir para manter a máquina a todo vapor. E petróleo Angola tem de sobra. Em troca de acesso irrestrito a essas reservas, os chineses ofereceram ao governo angolano um pacote de reconstrução de alguns bilhões de dólares. Hoje, Angola é o maior fornecedor de petróleo da China.
O exato montante da ajuda chinesa, como qualquer número em Angola, é difícil de descobrir. Oficialmente falam-se em US$ 5 bilhões, mas em círculos diplomáticos comenta-se sobre mais outros nove bilhões extra-oficiais.
Parte da ajuda financeira está sendo fornecida diretamente em serviços. São trabalhadores chineses que estão reconstruindo boa porção da infra-estrutura do país. A velocidade do trabalho deles é impressionante. Os canteiros de obras parecem funcionar 24 horas por dia, sete dias por semana. Em Luanda, é inevitável esbarrar num grupo de chineses trabalhando em algum buraco no chão. A qualidade do trabalho, no entanto, não tem impressionado tanto.
Num domingo de março fui ao principal estádio esportivo de Luanda, o da Cidadela, recém-saído de uma reforma de milhões de dólares feita pelos chineses, para assistir à final do campeonato angolano de basquete. A primeira ida a uma Copa do Mundo da seleção nacional de futebol, na França, tornou o esporte imensamente popular no país, mas é o basquete que realmente mexe com a paixão dos torcedores locais. E o jogo era o maior clássico angolano: Petros contra o 1º de Agosto, clubes que praticamente dividem entre si a seleção local de basquete, considerada uma das dez melhores do mundo.
O ambiente parecia de Fla x Flu no Maracanã, e os times não decepcionavam suas torcidas. O ritmo da partida era de tirar o fôlego, com o Petros dominando o placar desde o início. No último quarto, o 1º de Agosto começou a tirar a diferença, que já tinha chegado a 18 pontos e, faltando quatro minutos para o final, conseguiram uma cobrança de lance livre que finalmente poderia colocá-los em vantagem. Nesse exato momento um forte temporal desabou sobre a cidade. A primeira cobrança empatou o jogo. A segunda não chegou a ser cobrada. Uma enorme goteira despejou uma forte cachoeira exatamente sobre a cesta onde o arremesso seria feito, alagando a quadra e interrompendo o jogo.
Saindo do estádio, tentando arrumar um caminho seco até o carro em meio ao enorme lago em que o estacionamento se transformou, pude ouvir uns torcedores comentando: "O melhor fiscal de obras é a chuva".
Angola é o segundo maior produtor de petróleo da África, mas pode possuir as maiores reservas do continente, caso se confirmem as suspeitas de que uma camada de pré-sal nas águas profundas ao longo de sua costa norte abrigue um reservatório semelhante ao gigante campo de Tupi, que os brasileiros acabam de descobrir na Bacia de Santos.
No mundo do petróleo gosta-se de dizer que Angola não é uma Nigéria, hoje o maior produtor africano e símbolo maior da chamada maldição do petróleo, fenômeno em que as enormes riquezas extraídas do subsolo não se traduzem em uma melhora na vida das populações dos países produtores, apenas na vida de seus líderes.
O principal motivo para a distinção é a Sonangol, empresa estatal que controla o setor no país. Ao contrário de seu equivalente nigeriano, e em contraste com o resto da máquina pública, a petrolífera angolana funciona como uma agressiva empresa global, competitiva e em plena expansão internacional, a ponto de suas investidas pelo setor bancário português já estarem causando preocupação ao governo do ex-poder colonial. Seus técnicos são reconhecidos como extremamente competentes na negociação dos contratos com as empresas multinacionais que exploram os campos de óleo e gás angolanos, e a empresa a cada dia se aventura por mais setores da economia local, não se limitando apenas ao petróleo e seus derivados.
No quesito corrupção, angola e nigéria se igualam, dividindo um vergonhoso 147º lugar (de um total de 179) no ranking dos países menos corruptos do mundo compilado pela organização Transparência Internacional. Mas enquanto na Nigéria o destino nebuloso dos rendimentos do petróleo está levando o país a uma perigosa instabilidade, com a ação de grupos armados na principal região produtora de petróleo freqüentemente afetando a produção, que diminui ano a ano, a ponto de levar algumas empresas produtoras estrangeiras a repensar seus investimentos no país, Angola vive um período de incrível estabilidade política.
O fim da guerra, que privou Angola da eterna desculpa que nada no país funcionava por causa dela, somado aos bolsos recheados, deu ânimo ao governo angolano para finalmente tirar a nação do enorme atraso em que viveu por tanto tempo. Além dos trabalhadores chineses, o país foi invadido por um enorme exército de consultores estrangeiros, pagos a peso de ouro, tentando fazer a máquina pública finalmente funcionar. Muitos desses consultores são brasileiros.
Ninguém que trabalhe com o governo angolano gosta muito de falar sobre o assunto. A máquina do governo praticamente se confunde com a máquina do MPLA e o poder é extremamente centralizado nas mãos de pouquíssimas pessoas. Praticamente nenhum quadro está ali por competência, e sim por relações políticas. Como um burocrata contrariado pode facilmente resultar num contrato cancelado, o silêncio é uma estratégia de sobrevivência.
O sucesso dos consultores depende de ministério para ministério. Em alguns lugares eles têm carta branca para fazer o que acharem melhor e a coisa começa a andar, em outros têm suas vidas complicadas a cada passo.
As áreas que lidam com a dinamização da economia tendem a ter mais liberdade que as que tratam do social. Uma agência de investimentos, a ANIP, foi criada para estimular empresas estrangeiras a se instalarem no país, dando isenção total de impostos para investimentos acima de US$ 50 mil. O porto, com sua fila de 15 dias para um navio poder atracar e de onde contêineres simplesmente desaparecem de uma hora para a outra, teve sua administração recentemente entregue a uma empresa inglesa, também responsável por modernizar o sistema alfandegário do país. A Fundação Getúlio Vargas auxilia o governo na criação de uma escola de Administração Pública e o BNDES serve de modelo para a criação de um banco de fomento da economia.
Com a invasão estrangeira, Luanda, onde se concentra toda a atividade, está vivendo uma transformação de tirar o fôlego. Só fui ter idéia de como a cidade está mudando quando fui à embaixada portuguesa assistir ao documentário angolano Miopio, filmado na cidade em 1991. Quase não reconheci as avenidas arborizadas e praticamente vazias que serviam de pano de fundo para as entrevistas sobre a vida em Angola naquele breve período de paz.
Luanda já foi um dia uma cidade agradável, quando sua população ainda era próxima do que tinha sido construída para abrigar cerca de 500 mil pessoas. Hoje, com 6 milhões e ainda a mesma infra-estrutura, praticamente sem manutenção há 30 anos, é o mais completo e absoluto caos.
Como cheguei num sábado, dia de torpor coletivo para os angolanos, tive que esperar até segunda-feira para ter a real dimensão da confusão. Das calçadas, transbordando de veículos estacionados, jorram água e esgoto, enquanto os carros se derramam para a rua em fila dupla, tripla, quádrupla ou em qualquer buraco onde seu motorista julgue poder encaixá-lo. Como boa parte das esburacadas vias de circulação, a maioria sem ver asfalto novo há algumas décadas, está ocupada por carros parados, normalmente sobram apenas duas faixas para o trânsito fluir, quando este não fica confinado a apenas uma. Apesar disso, angolano que pode prefere dirigir a ter que encarar uma viagem de candongueiro, que não é transporte para aqueles de coração fraco. Com a economia explodindo, a cada mês são cerca de 800 novos carros a mais nas ruas disputando os escassos espaços disponíveis. Uma volta no quarteirão pode facilmente levar mais de uma hora. Talvez só o trânsito de Luanda seja capaz de fazer um paulista sentir saudades de um entardecer de chuva em uma das marginais da cidade em véspera de feriado. Infelizmente, sou carioca.
Uma boa maneira de compreender o momento que Angola vive é observar o trânsito em Luanda. Seja pelas avenidas Friederich Engels, Ho Chi Min ou Che Guevara, a filosofia reinante superou há muito o dogma marxista que deu origem à nação. Não há o menor vestígio de planejamento central ou respeito a qualquer regra. Os sinais de trânsito são poucos e raramente funcionam. Os obstáculos à circulação são inúmeros e variados, entre eles uma enorme quantidade de obras espalhadas caoticamente que tentam, tardiamente, melhorar a infra-estrutura da cidade enquanto ela cresce de forma alucinada. O estado, representado pelos inúmeros guardas de uniforme azul-escuro que normalmente olham indiferentes o caos, parece mais preocupado em predar o bolso dos motoristas atrás de uma "gasosa" do que em dar um mínimo de ordem à situação. A franqueza da abordagem dos representantes da lei chega a surpreender.
Numa tarde, já estava há horas parado no trânsito, debaixo de um calor sufocante, pacientemente respeitando minha faixa enquanto carros ao meu redor levantavam nuvens de poeira tentando avançar pelas calçadas, pela contramão, pelo acostamento da pista oposta e por onde mais houvesse algum espaço onde fosse possível se mover para a frente, quando um guarda resolveu me parar. Eu era presa fácil, devo admitir. Como a maioria dos estrangeiros, sobretudo a serviço de empresas internacionais, só se aventura pelas ruas em carros com motorista, algumas vezes ainda escoltados por seguranças armados, um branco sozinho num carro, mesmo uma picape detonada como a que dirigia, emprestada por um amigo, atrai um grau elevado de atenção.
Como minha paciência já estava bem esgarçada, assim que abri a janela para falar com o guarda explodi. "Tem carro passando pela calçada, pelo acostamento, pela contramão, mas você resolve parar justamente o único carro que está respeitando todas as regras!" Ele se constrangeu um pouco com a bronca inesperada, mas não se abalou. "Desculpe, mas o senhor poderia fazer uma contribuição para o diretor-geral?" Fiquei sem ação, sem saber se ele estava brincando comigo ou falando sério. Como não havia o menor traço de humor em seu rosto, julguei que era sério. Resmunguei que estava sem dinheiro e ele resignadamente me mandou seguir. Sem ressentimentos.
Nas ruas de Luanda, direitos e deveres são negociados caso a caso, no calor do momento, e quem tem carro maior e mais caro tende a ter mais direitos do que têm os motoristas dos veículos mais modestos. E o que não falta são enormes Hummers, Range Rovers e Land Cruisers tentando afirmar o seu poder. A julgar pela frota nas ruas é difícil imaginar que e expectativa de vida não passa de 43 anos, uma criança em quatro morre antes dos 5 anos e que mais de 50% da população esteja desempregada. A lógica dominante é uma combinação explosiva de laissez-faire com cada um por si, muito mais seleção natural que filosofia política. Onde antes se buscou Marx hoje se encontra Darwin.
No topo dessa cadeia alimentar está o presidente e seu grupo de aliados. Apesar de toda a aparência democrática que o governo tenta dar ao país, criticar abertamente quem está no poder ainda pode trazer conseqüências desagradáveis. A maioria das pessoas que entrevistei se mostrou reticente em falar abertamente até eu prometer não usar seus nomes. Mesmo assim são poucos os que decidem abrir suas opiniões para um desconhecido. Um dos que o fez, e de forma bem didática, foi um bem-sucedido empresário com quem almocei. "Angola mudou de sistema econômico sem mudar de governo, de presidente ou de partido. A iniciativa de mudança tem sido do poder e não da sociedade. O governo é extremamente capitalista, mas no capitalismo deles eles próprios são os principais acionistas, não o povo. A estratificação social que existe em Angola foi feita pelo poder político. Agora é que se fala de classe média, classe baixa, classe alta. Antes a única classe era quem estava no poder. Estrangeiros não têm a memória de Angola. Há uma herança autoritária que é forte, e essa herança justifica o medo."
Apesar do boom econômico, os edifícios novos e os enormes carros congestionando as ruas são seus únicos sinais visíveis. Pequenos e médios negócios como lojas, restaurantes e prestadores de serviços, motores de uma economia saudável e includente, ainda são raros em Luanda. Os esforços econômicos do governo privilegiam grandes negócios, que normalmente só conseguem prosperar com um sócio angolano bem relacionado no governo. Para os médios e pequenos a vida ainda é muito difícil. Fora o petróleo, o setor da economia que mais cresce é o bancário, com 18 bancos surgindo nos últimos cinco anos, introduzindo pela primeira vez na vida do país comodidades como contas bancárias, cheques, caixas eletrônicos, compras financiadas e, novidade das novidades, cartões de crédito. Não surpreende a ninguém que a Sonangol tenha expressiva participação acionária em todos eles.
Comprar coisa em loja é uma novidade que só agora se está tentando implementar em Angola. O único shopping de Luanda é o Bellas, que a brasileira Odebrecht acaba de construir em Luanda Sul, um lugar tão árido e sem vida que entediaria até um habitante de uma típica cidade soviética na Sibéria. Para o angolano médio não existe comércio, mas sim negócio. A não ser quando se vai aos grandes mercados da cidade, muitas vezes atrás de produtos para serem revendidos, geralmente são os produtos que vão até você, e não o contrário. Angola é a apoteose do sacoleiro.
O verdadeiro dinamismo da economia angolana está no setor informal, em que Angola é mais Angola e menos uma pretensão de primeiro mundo. Ali o capitalismo é verdadeiramente competitivo e saudavelmente selvagem. Nos grandes mercados públicos da cidade, a maioria com nome de novelas e programas de TV brasileiros, como Roque Santeiro e os Trapalhões, se encontra praticamente de tudo. O Roque Santeiro é o principal deles. "Se não se encontra no Roque, ainda não foi inventado", garante Pepetela, um dos principais escritores angolanos, em um de seus livros.
Em um único mercado se encontra de prego a sexo, passando por motos coreanas, perfumes franceses, uísques escoceses, roupas do Brás (trazendo a última moda da novela das 8), música angolana, filmes indianos, eletrodomésticos chineses, peixes do Atlântico, carne de Huambo, celulares finlandeses, quinquilharias do mundo inteiro e iPhones desbloqueados. Tudo ordeiramente organizado por setor.
Também é nos mercados que se pode consumir o principal produto cultural de angola: o kuduro, ritmo local, e o rap, feitos nos musseques, as favelas angolanas.
Angola tem uma importante produção cultural que já está se espalhando pelo mundo. Escritores como José Eduardo Agualusa e Ondjaki já estão entre os principais nomes da literatura de língua portuguesa e sendo traduzidos em vários países. Na última Bienalle em Veneza, o país teve, pela primeira vez, uma participação elogiada no pavilhão africano e Luanda já tem sua trienal de artes plásticas, cuja segunda edição será realizada em 2010, possivelmente já numa sede própria desenhada por Oscar Niemeyer, com curadoria, como a primeira, de Fernando Alvim, um dos mais destacados artistas plásticos angolanos. Mas essa produção pode ser mais facilmente apreciada no exterior do que em Luanda, onde a cena cultural ainda é extremamente limitada.
A verdadeira efervescência cultural em Angola está nos musseques, onde se vara a noite em raves de kuduro, bebendo cerveja Eka e dançando enlouquecidamente até o Sol nascer. O kuduro lembra um pouco o funk carioca, com letras praticamente recitadas de forma acelerada sobre bases simples, mas de ritmo forte, só que trazendo narrativas menos agressivas, mais crônicas sociais cheias de humor do que exaltações de sexo e violência. Por muito tempo relegado aos CD players dos candongueiros (a verdadeira rede de rádio popular de Angola) e bancas de CDs dos mercados angolanos, o ritmo recentemente começou a virar mainstream, com o governo se animando a promovê-lo como "o ritmo nacional", pegando carona com o sucesso que o kuduro já começa a fazer em algumas pistas da Europa.
A crítica social mais pesada fica a cargo do rap, esse ainda maldito, mas tornado poderosa arma política não partidária na voz de Mc K, um tranqüilo e simpático estudante de filosofia que mora num dos musseques mais perigosos de Luanda. Rodando a cidade em alto volume nos alto-falantes dos candongueiros, sua voz consegue romper a polarizada linha que divide as simpatias políticas dos angolanos entre MPLA e UNITA e atingir fundo a todos com uma crítica precisa e afiada não dos partidos, mas do sistema sufocante que se perpetua independentemente de quem esteja no governo. Suas letras incomodam tanto o poder que um fã foi assassinado por um integrante da guarda presidencial simplesmente por cantar uma de suas músicas.
Apesar de todos os problemas, anos de sofrimento parecem terem feito dos angolanos irremediáveis otimistas. Sem dúvida para eles a maior conquista foi a chegada da paz. É grande o número de jovens bem formados que estão abandonando bons empregos na Europa e Estados Unidos, para onde foram para escapar dos anos de conflito, retornando ao país em busca de aproveitar o bom momento e ajudar a fazê-lo andar para a frente.
Nástio Mosquito, um artista multimídia e agitador cultural que teve seu trabalho entre os selecionados para a última Trienalle, ele mesmo de volta a Angola depois de anos na Inglaterra e abrindo o primeiro escritório de gestão de patrocínio cultural do país, foi quem melhor traduziu o espírito que move essa geração. "Meu país tem praticamente a minha idade, não é em qualquer lugar que se pode dizer isso. Quantos anos países como o Brasil levaram para encontrar seu rumo? Angola vai encontrar o seu próprio caminho, que não é nem virar uma Europa ou uma América. Angola vai ser Angola. Se o resultado de toda essa transformação vai ser bom ou ruim eu não sei, vou ter que esperar uns 20 anos pra ver."
Vai ter que dar dinheiro, branco!", gritava ainda o mais exaltado dos passageiros da van angolana enquanto continuávamos parados na estrada de lama. O motorista do candongueiro, que até ali estava preocupado apenas com o senhor que o sujou, ainda tentou colocar pressão. "Mas isso lá é maneira de dirigir?!"
Ouvindo meu sotaque brasileiro dizer de forma enfática, mas educada, que não daria porra nenhuma e que a última pessoa do mundo que poderia criticar alguém por dirigir de forma descuidada - o que nem era o caso - era um motorista de candongueiro, cantados em verso e prosa como os maiores facínoras do trânsito de Luanda, quatro dos cinco passageiros desistiram da argumentação, mas o mais exaltado partiu para cima de meu carro gritando que ia quebrar tudo. Antes que ele chegasse perto, larguei a embreagem e andei uns 50 metros para trás. Foi o suficiente para ele desistir da valentia e voltar, junto com seus colegas, para o Toyota Hiace azul e branco, sem Omo, dinheiro ou desculpas.
Depois de se acalmarem ainda tive que lidar com o senhor, que queria que eu lhe entregasse meus documentos e a chave do carro e fosse com ele até seu emprego dar explicações. Era quase uma ordem de prisão. Uniforme em Angola é poder ou ao menos quem os usa crê que seja. Mas valentia de angolano, sobretudo sem colegas ao redor para lhes dar confiança, é curta. Quando disse que de meu carro não sairia, mas que se ele realmente fizesse questão poderia fazer a gentileza de segui-lo até seu chefe para explicar a situação, não como obrigação, mas como um favor, ele se resignou e aceitou.
Fomos então até o porto de Luanda, onde não apenas contei a história ao chefe como tive que assinar um papel confirmando-a. O senhor ainda tentou me intimidar na frente do superior, usando a condição de oficial de imigração para exigir que lhe desse meu passaporte para averiguação. Diante de meu argumento de que nem no Brasil nem em Angola sujar alguém de lama é crime ou violação de qualquer lei de imigração, e que eu estava ali fazendo um favor e não sob ordem judicial, ele acabou capitulando e se conformando apenas com um pedido de desculpas. "Então me dê mil kuanzas [cerca de 13 dólares] para lavar meu carro", ainda tentou, como se a sujeira do automóvel fosse culpa minha e não das enlameadas ruas da cidade. "Desculpe, mas vou precisar do dinheiro para lavar o meu", respondi. Entrei no carro e parti.
Como bem colocou o escritor Agualusa, num e-mail de boas-vindas pouco depois de minha chegada a Angola: "Chegar em Luanda é um choque, mas depois a gente acostuma".
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