Ao chegar aos 70 anos de idade e 50 de carreira, o guitarrista segue expandindo a linguagem do instrumento – e jamais pensou em parar
Paulo Cavalcanti Publicado em 24/06/2014, às 16h09 - Atualizado às 16h29
Houve uma época, especificamente nas décadas de 1960 e 1970, em que Jeff Beck tinha fama de ser difícil e temperamental. Se isso foi verdade, então é possível afirmar que ele suavizou consideravelmente com o passar do tempo. Hoje, Beck parece apreciar o papel de venerável embaixador da guitarra britânica. Em meados de maio, o músico esteve em São Paulo – foi a terceira passagem dele por aqui –, desta vez como a atração principal do Samsung Galaxy Best of Blues, festival criado por Pedro Bianco, presidente da produtora Dançar Marketing.
Apesar das inevitáveis marcas do tempo no rosto, Beck parece não ter mudado nada desde os anos 1970. Permanece cool e elegante. Tem o jeito típico de um astro de rock, mas não é espalhafatoso. Segue com o mesmo estilo de cabelo “ninho de corvo” que ele, Rod Stewart, Keith Richards e Ron Wood imortalizaram há quatro décadas. Fala tranquilamente e não tem problemas em discorrer sobre o passado, além de contar animadamente sobre o que vem pela frente. “Percebo que os lugares onde eu toco no Brasil ficam maiores”, ele diz logo de cara, abrindo um sorriso discreto e fazendo gestos com a mão. “Na primeira vez, era desse tamanho. Depois, só foi aumentando.”
Neste mês, o guitarrista, nascido em 24 de junho de 1944 em Surrey (Inglaterra), completa 70 anos. O ano de 2014 também marca oficialmente os 50 anos de carreira de Jeff Beck. E ele é afeito a honrarias: em 2011, foi eleito o quinto maior guitarrista de todos os tempos pela Rolling Stone Brasil. Talvez outros instrumentistas sejam mais técnicos, ou mais rápidos, mas em termos de ecletismo, fluidez e influência poucos se comparam a Beck. Quase sempre utilizando uma Fender Stratocaster personalizada, ele já passou pelo blues, proto-metal, fusion, rockabilly, new age, experimentou música eletrônica e ainda não parece estar satisfeito. Ao contrário de outros ícones virtuosos como Jimi Hendrix, Eric Clapton, Keith Richards e Jimmy Page, Beck nunca frequentou as colunas de fofocas. O músico não gosta de ser uma mera celebridade do rock, e tirando o interesse em colecionar carros raramente surge na imprensa algum escândalo ou detalhe sobre interesses pessoais ou a vida particular dele. O fato mais importante é que ele nunca parou de tocar. Grava discos em longos intervalos, mas está sempre na estrada, tocando com diferentes bandas, abrindo ou fechando para artistas de inúmeros estilos e procurando diversificar as apresentações.
Beck é também o “músico dos músicos” – já tocou ou colaborou com gente de gêneros musicais tão
díspares quanto Stevie Wonder, Brian Wilson, David Gilmour, Jan Hammer, David Bowie, Joss Stone (com quem tocou uma música no show de São Paulo), e muito outros.
Beck adianta que neste ano de celebrações dará um presente aos fãs – e a ele mesmo. O guitarrista já prepara um novo álbum, o primeiro de estúdio desde o bem-sucedido Emotion & Commotion (2010), e garante que será um marco na carreira, com um tipo de som totalmente diferente do que já fez. “Praticamente acabamos agora os trabalhos. Eu procurei fazer tudo em segredo. Vai ser um tipo de disco em que não só a gravação em si vai contar. Vai ter muito a ver com a mixagem, overdubs e pós-produção. Estou trabalhando nele há três anos”, ele explica, justificando o empenho. “Vai ter uma sonoridade diferente, nada a ver com música ocidental. Vai ser um reflexo do trabalho da minha nova banda, especialmente explorando a experiência e a técnica do [guitarrista] Nicolas Meyer.”
Ainda hoje, Beck colhe os louros de Emotion & Commotion, um dos campeões de vendas do catálogo dele. O chamariz é a versão de “Nessun Dorma” (de Giacomo Puccini), que é atualmente um dos pontos mais celebrados das apresentações ao vivo. “A proposta desse disco foi ser um trabalho popular e comercial. E conseguimos. Ele foi muito bom para mim”, Beck diz. “Realmente, todos gostaram da minha versão de ‘Nessun Dorma’. Gostaria de tocá-la ao vivo com orquestra, do jeito que ela foi gravada, mas resolvemos tudo com o teclado.”
Apesar de ter experimentado estilos e ter o nome marcado pelo blues e pelo fusion, Beck nunca
se esqueceu dos primórdios, quando foi incentivado por outro tipo de som. Logo cedo, descobriu o estilo de Les Paul, um dos grandes mestres pioneiros da guitarra. Quando era adolescente, Beck se encantou pelo rockabilly.
“Minha irmã era uns cinco anos mais velha do que eu,” ele comenta, dissecando um relato cheio de detalhes. “No começo do rock, ela comprava os compactos do Gene Vincent. Quando ouvi esses discos, fiquei louco – não necessariamente pelo Gene, mas sim pelo cara que tocava guitarra para ele, o Cliff Gallup, que morreu totalmente esquecido. Só anos mais tarde o nome dele passou a ser divulgado. Quando vi Gene Vincent and the Blue Caps tocando ‘Be Bop a Lula’ no filme Sabes o Que Quero, deu um clique e percebi que era aquilo que eu gostava e queria fazer. Isso foi antes de eu entrar de cabeça no blues, ouvindo Muddy Waters, Howling Wolf e toda aquela gente.”
Com 20 anos, Beck se tornou um nome conhecido quando fez parte do Yardbirds, em que entrou para substituir Eric Clapton e permaneceu por dois anos. A banda emplacou inúmeros hits, como “Heart Full of Soul”, “Evil Hearted You” e “Shapes of Things”, com a guitarra de Beck sempre fazendo a diferença. Ao contrário de alguns artistas que não gostam de avaliar os primeiros passos da carreira, o britânico ainda sente orgulho da época. “Ah, os Yardbirds. Nós éramos incríveis”, ele afirma. “Quem nos viu ao vivo sabe muito bem disto. Eu arrisco a dizer, não, eu afirmo: nós éramos melhores do que os Rolling Stones. Claro, eles eram legais, mas nós levamos a música para a frente, juntando blues com psicodelismo, e colocando toques de música oriental. A guitarra no rock nunca foi a mesma depois do Yardbirds.”
Beck ainda mantém um relacionamento próximo com Jimmy Page. Os dois eram amigos antes de Beck entrar para o Yardbirds, e quando o baixista Paul Samwell-Smith saiu, Beck chamou Page para o lugar dele. Logo o guitarrista Chris Dreja assumiu o baixo, o que liberou Beck e Page para que assumissem a dobradinha de guitarras. Uma pena que a parceria dos sonhos só tenha durado por poucos meses de 1966. Os resultados foram o single “Happenings Ten Years Time Ago”/ “Psycho Daisies”, uma breve turnê nos Estados Unidos e uma lendária aparição no filme Blow Up – Depois Daquele Beijo, de Michelangelo Antonioni, tocando “Stroll On”. A dupla tem tocado junta de forma intermitente durante os anos – a última vez foi em 2009, na cerimônia do Hall da Fama do Rock and Roll, onde executaram “Immigrant Song” e “Train Kept a Rollin’”.
Ao responder sobre um boato surgido na internet que diz que ele e Page estariam planejando
uma turnê juntos, Beck fica surpreso: “Page? Ué, ele não está tocando mais! Ele passa o dia inteiro remasterizando aqueles discos antigos do Led Zeppelin. Jimmy é um cara que valoriza muito a privacidade. Nós sempre damos risada juntos. Seria legal tocarmos juntos, mas acho
que não vai rolar tão cedo”.
Depois que Jeff Beck saiu do Yardbirds, o produtor Mickie Most tentou transformá-lo em um astro pop. Ele gravou alguns singles, como “Hi Ho Silver Lining” e “Tallyman”, nos quais tentou cantar, mas logo todos perceberam que não funcionaria tão bem. “Eu odiei cada minuto quando gravei essas coisas”, Beck conta. Depois da experiência um tanto desconfortável, o próximo passo foi o Jeff Beck Group, cuja primeira formação tinha Rod Stewart no vocal e o futuro stone Ron Wood no baixo. O grupo evoluiu de uma banda de blues pesado para a fusão de jazz com rock, antecipando o trabalho posterior de Beck. “O Jeff Beck Group foi a minha maneira de liderar uma banda”, ele diz. “Não deixou de ser uma experiência interessante. Rod e Ron sobressaíram lá. Eu acho que o Rod não teria o sucesso que teve se não tivesse passado por ali.”
A década de 1970 serviu para Jeff Beck se reinventar como um dos mestres do fusion, gravando álbuns clássicos no gênero, como Blow by Blow (1975) e Wired (1976), produzidos por George Martin. “Eu sempre admirei o trabalho de George com os Beatles”, Beck afirma. “Ele conseguia criar coisas incríveis com as composições da banda. Quando eu o convidei para trabalhar comigo, pensei que ele não iria ter tempo para mim.” A conexão Beatles/George Martin se faz presente nas apresentações de Beck, por meio da versão dele para a clássica “A Day in the Life”. “George veio a público dizendo que estava perdendo a audição e prestes a se aposentar”, Beck relembra. “Em 1998, ele fez esse disco [In My Life] de despedida, com um monte de gente interpretando canções dos Beatles. Tinha Sean Connery, Jim Carrey, Bobby McFerrin... Fui convidado e pensei: ‘Puxa, não posso dizer não’. Fui para o estúdio AIR e escolhemos ‘A Day in the Life’, que para mim seria perfeita, cheia de mudanças de tempo e diferentes atmosferas sonoras.”
Em 2013, Beck fez conexão com outra lenda do rock: Brian Wilson, ex-líder dos Beach Boys. A turnê que fizeram em conjunto tinha sets separados dos dois artistas, e Beck se juntava a Wilson para dar um toque especial a canções como “Surf’s Up” e “Our Prayer”. “Antes da turnê, cheguei a gravar algumas faixas para o próximo disco dele”, conta o guitarrista. “Mas eles acabaram me chamando para fazer a turnê e tudo foi meio corrido. Eu acho que o saldo foi positivo. Mas, sinceramente, acho que Brian não está bem. Ele não tem condições de estar na estrada por tanto tempo.”
Depois da rápida passagem pelo Brasil, Beck seguiu para alguns shows na Europa. Em setembro, volta para a estrada, desta vez nos Estados Unidos, para fazer dobradinha com o ZZ Top. “Eu gostava dos caras já na década de 1970”, explica. “Sempre quis tocar com eles, mas teve uma época que eles eram tão grandes que isso era impossível. Mas agora deu certo e acho que vamos nos divertir muito.”
Quando digo que boa parte do público dos shows de Jeff Beck é constituída por aspirantes a guitarrista que olham fixamente para as mãos dele, o músico dá uma risadinha marota. “Pois é, mas para mim isso parece tão fácil...”, ele diz, tímido e modesto, relativizando o rótulo de lenda viva do instrumento. “Sou apenas um sujeito que segue tocando por aí.”
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